sábado, 1 de fevereiro de 2020

CONTRA O ESQUECIMENTO


“Desde que comecei a desenhar a carvão, percebi que carvão e cinzas são iguais. E que esses seres humanos foram reduzidos a cinzas.”
Manfred Bockelmann*


Erdmann Schmidt, 7 anos, assassinado a 12 de Junho de 1943
  
O berço errado dos filhos do Holocausto. Talvez não haja uma injustiça maior do que a de nascer vítima da sua própria inocência e fragilidade. Crianças invocadas como impuras, vítimas das trevas da repressão. Não são mártires despojados da sua individualidade, os seus rostos não estão marcados pela fome, doença ou exaustão, os seus corpos não estão amontoados sobre outros cadáveres. Elas estão vivas e ainda enfrentam o martírio. Não sabendo o que as espera, “sabem” o que já não as espera: uma infância transfigurada pela crueldade.

O médico, de bata branca e lábios finos, prepara o equipamento fotográfico e as tabelas de registo. Recebeu ordens para documentar todo o processo experimental. Na sua frente, mais uma “praga popular” que precisava de ser eliminada para garantir a suposta “pureza do sangue alemão”: Erdmann tem 7 anos e ainda está a usar a roupa que trazia quando entrou no campo de Auschwitz. Tenta ajeitar o botão que parecia segurar um mundo de incerteza e submissão ao medo. O médico pergunta-lhe o nome e o rapaz responde “Erdmann Schmidt”, tentando mostrar-se afável e obediente. Apesar do ambiente aparentemente calmo e inócuo, o seu olhar vai ganhando uma dimensão inquiridora perante o desconhecido, abrindo-se à imaginação. O homem insiste na posição que ele deve tomar para ser fotografado, olhando-o de frente. Erdmann ainda sorri. Está tão nervoso que não consegue sequer pestanejar. Os olhos abertos, tão abertos como fontes de água começam a secar, a desvanecer a memória de outros tempos mais felizes. Erdmann já não sorri. Ele “sabe” da inevitável tragédia daquele lugar, já ouviu contos de fadas em que homens maus impossibilitavam os finais felizes.

Estou a ver-te, meu pequeno Erdmann, apesar de não estar aí contigo para te poder salvar. Tu és “o outro”, mas és o “outro-em-mim”. És tão belo, pareces emanar uma claridade própria da infância perante a tragédia irreparável. Vestes a tua melhor roupa. És todo luz de vida, mas hoje, perante o flash da máquina fotográfica, a esperança abandona-te, escurece as paredes brancas e imaculadas do espaço. Não sabes explicar porquê. Não sabes o que te farão, mas tens frio, sentes um frio palpável por dentro, levas as mãos ao peito e logo a enfermeira vem colocá-las, prontamente, onde elas estavam antes, encostadas ao teu corpo, como se fosses uma máquina. Talvez aqueles braços já não fossem os teus e por isso deixaste-os caídos, separados dos ombros, inaugurando uma nova posição aliada à força da gravidade que é agora a mãe da angústia, a tua única mãe. Os pesadelos abrem-se como desenhos da infância, apagando-se à medida que vão sendo feitos: inúteis, portanto, os pensamentos e os acontecimentos desenhados. Um conflito entre a utilidade e o propósito da existência. Os minutos passam encostados à porta, querem entrar à força para te levarem de uma vez por todas.

Perdoa-me, mas não te posso dizer que a tua carne será cortada e cosida. Que o teu sangue secará sobre as tuas dores perversas. Que chorarás o terror dos dias e das noites, o tempo eterno desse lugar. Que o teu espírito enfrentará o duro desígnio do esquecimento. Perdoa-me, meu querido Erdmann, mas não te posso dizer que serás assassinado no dia 12 de Junho de 1943.

Ninguém chorou por ti. Seria maravilhoso se pudessem fazê-lo agora, para que a tua vida tenha um desenho mais colorido. Porque se os seres humanos não se lembrarem da sua história, é porque não viveram.

Atelier de Manfred Bockelmann

Exposição «Manfred Bockelmann. Desenhar Contra o Esquecimento»

Manfred Bockelmann

A exposição especial «Manfred Bockelmann. Desenhar contra o esquecimento» foi inaugurada em Maio de 2013 no Museu Leopold de Viena e recebeu cerca de 100.000 visitantes nessa primeira exibição pública. Mostrou retratos em larga escala, feitos com carvão quebradiço sobre juta, de crianças e jovens que foram vítimas do maior genocídio do século XX, às mãos dos executantes do regime nazi. Os seus desenhos deixam-nos sem palavras, horrorizados e abalados. Manfred Bockelmann usa como modelo as fotografias tiradas pelas SS, nas quais a vida que se reflete nos olhos e rostos das inúmeras crianças assassinadas tanto nos emociona. Os retratos, de aparência “inacabada”, provocam precisamente o drama da infância interrompida, logo “inacabada”. O projecto "Drawing against oblivion” do artista austríaco Manfred Bockelmann pretende arrancar da anonimidade algumas das vítimas mais desprotegidas do maior genocídio do século XX. A ética humanística da exposição e do documentário exibido em 2015 proporciona a empatia com o espectador e torna-a uma das mais significativas para a história do Holocausto, no sentido de dar um nome e uma identidade aos rostos antes fotografados nos campos de concentração. O filme leva-nos numa viagem através de arquivos nos Estados Unidos, no campo de concentração de Auschwitz e de testemunhos de sobreviventes do Holocausto, que na altura eram crianças. A exposição e o documentário são apelos à tolerância e à humanidade, e tornam visível a única coisa que podemos fazer: tomar consciência do que aconteceu para evitar que algo semelhante se repita.

Em Portugal, por ocasião do Dia Internacional da Lembrança do Holocausto (2019) foi inaugurada no dia 31 de Janeiro, no Andar Nobre da Assembleia da República, a exposição "Desenhar contra o esquecimento". Ficou patente até 8 de Março de 2019.


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