sábado, 31 de agosto de 2019

LINDO, LINDO, ESTE TÍTULO QUE TE DOU


 Ela diz que eu fui um caso muito sério
Mas eu só sei que há nisso algo de anormal
Havia um tempo, um olhar, um sorrir, um começo
Mas agora tudo perdeu seu brilho.
Na minha vida só houve um abraço como o teu
Um sonho, um livro, uma aventura sem igual
Linda, linda, esta balada que te dou.

Armando Gama

A 4 de Março de 1983, no Coliseu do Porto, mil e novecentos espectadores viram Armando Gama, ao vivo, vencer o Festival RTP da Canção com “Esta Balada Que Te Dou”, da qual ele próprio foi o autor. A apresentar o evento, transmitido em directo pela televisão, Eládio Clímaco e a estreante Valentina Torres; as audiências televisivas superaram os dez mil espectadores. Este Festival da Canção deu que falar, por um lado porque a canção vencedora não era uma das favoritas, e, por outro, porque teve início a história de amor entre Armando Gama e Valentina Torres. O casal viria a protagonizar uma dupla musical de sucesso, principalmente nos anos 90 e também um longo casamento de vinte e seis anos preenchido com muitas baladas e actuações ao vivo. O casamento terminou após vinte e seis anos, apesar de tantas lindas baladas partilhadas pelos dois.


Valentina Torres e Armando Gama

Um facto curioso sobre esta balada foi recordado por Rui Cardoso Martins na sua crónica na Antena 1 de 28 de Fevereiro do ano passado: Armando Gama ter-se-ia inspirado numa outra canção para compor a sua mediática vencedora, transformando “steel crazzy, after all this years” de Paul Simon (datada de 1975) numa “linda, linda, esta balada que te dou”! Na época não havia internet e ninguém se teria apercebido das fortes coincidências melódicas, nem em Portugal, nem em Munique, mesmo quando Armando Gama levou a sua linda balada – uma aventura sem igual – ao Festival Eurovisão da Canção, a 23 de Abril de 1983.

Numa das minhas frequentes visitas a espaços onde se vendem livros, observei discretamente um senhor de cerca de 50 anos interessado num livro intitulado “Um Amor Imenso”; parecendo hesitar, largou-o e pegou “Uma Prova de Amor”; não estando ainda satisfeito, agarrou-se ao “Faz-me Ficar”, com um semblante angustiado. Com os três livros dispostos em cima da bancada, o homem observou as capas demoradamente (nunca lendo as contracapas, as badanas ou o conteúdo), a fim de tomar uma decisão sobre o livro que iria comprar, estabelecendo as devidas relações com o destinatário ou a destinatária. A sua história poderia ser a seguinte: “Armando”, um homem prestes a comemorar as Bodas de Prata do seu então precário casamento, na ânsia de fazer renascer o amor perdido algures ao longo dos vinte e cinco anos naquela linha do tempo da sua vida matrimonial, compra um livro pelo título, na tentativa de fazer passar ao destinatário ou à destinatária uma mensagem inequívoca: eu amo-te e quero salvar o nosso casamento, por favor, diz que também me amas e faz-me ficar.

O “Armando” acabou por levar os três livros, o que corrobora a minha tese hipotética: na verdade, o homem tinha um problema sério para resolver e não quis deixar nada ao acaso. Enquanto ele se encaminhava para a caixa de pagamento e pedia um embrulho de presente, eu fazia um exercício de imaginação, no qual o jogo ficcional me encaminhou até uma espécie de epifania, uma conclusão que, apesar de empírica, ia ao encontro de outras observações similares que tenho feito na mesma livraria: há pessoas que compram os livros apenas pela mensagem do título, sem se preocuparem com o autor ou sequer com o conteúdo narrativo, concretizando uma espécie de auto-ajuda que envolve duas pessoas muito especiais, a que oferece e a presenteada, ou seja, os armandos e as valentinas em processo de remediação amorosa. Dei-me conta que este raciocínio também serviria para diferentes tipos de desejos. Por exemplo, qual é o objectivo de oferecer a outra pessoa o livro “Viver o Sexo Com Prazer”? Ou “O Novo Kamasutra Ilustrado”? Ou ainda “A Bíblia do Prazer”? É bastante óbvio, certo? É interesse reflectir e aceitar que é possível que o escritor (e por vezes o próprio editor) pense maduramente sobre o título do seu livro e também sobre o público a que o livro se destina, no sentido de potenciar as vendas de exemplares. Afinal, as bancadas dos livros são também palcos mútuos de esperança: “lindo, lindo, este título que te dou”.

Mais tarde, enquanto bebia uma água fresca na esplanada e lia o livro de poesia que tinha trazido de casa, “O Livro das Tréguas” de Lídia Jorge, vi o senhor “Armando” passar com um grande ramo de flores, as tréguas perfumadas da esperança. Muito bem senhor “Armando”, vale sempre a pena tentar salvar o amor, usa todos os teus trunfos. Eu usei os meus e venci.

Adília César

terça-feira, 27 de agosto de 2019

BIBLIOTECA DO TEMPO Nº 5

Colaboram neste número: António Carlos Cortez, António Ferra, Francisco José Craveiro de Carvalho, Guilherme Pinto, Helder Teixeira, Izidro Alves, João Luís Barreto Guimarães, José Pascoal, Luis Alberto de Cuenca, Maria de Fátima Rocheta Bastos, Maria José Santos, Margarida Vale de Gato, Ocean Vuong, Rui Diniz Monteiro, Rute Castro, Sara F. Costa, Sandra Costa, Sérgio Ninguém.

Direcção editorial: Adília César | Fernando Esteves Pinto
Imagem de capa e ilustrações: Guilherme Pinto
Design e concepção gráfica: Inês Ramos
 
Géneros: conto * ensaio * entrevista * poesia * poesia traduzida (por Francisco José Craveiro de Carvalho) * ilustração

Formato: 21/14,5 cm | Nº págs: 202

ENCOMENDAS:
logosbibliotecadotempo@gmail.com
ou por mensagem privada para Adília César e Fernando Esteves Pinto
(9 € com portes incluídos em Portugal Continental)


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sábado, 24 de agosto de 2019

BESTSELLERS E ASTERISCOS


Aquilo que passa por sabedoria muitas vezes não é mais do que as ideias disparatadas do nosso tempo.

James M. Russell

Quando estou de férias, tenho mais tempo para dedicar à leitura e chego a ser uma compradora compulsiva de livros e nesse sentido, visito regularmente livrarias e alfarrabistas. No entanto, leio para conhecer e não propriamente para me distrair. Assim, acredito que devo ter todo o cuidado em relação aos livros pelos quais me interesso: será que aquele livro em particular que tenho entre mãos vale o meu dinheiro e o meu tempo?

Top de Vendas de livros na FNAC (Agosto de 2019)

Há poucos dias visitei o espaço Fnac da minha cidade. À entrada, o escaparate dos livros top de vendas da semana chamou por mim, estranhamente, o que não é comum; de um modo geral, as escolhas que faço têm a ver com outro tipo de critérios, mais pessoais, críticos, e até desconfiados em relação às sugestões “da moda”. No 1º lugar deste podium literário, há mais de 500 dias e com cerca de 90 mil exemplares vendidos, está o bestseller do escritor americano Mark Manson e o primeiro livro deste autor a ser editado em Portugal – “A arte subtil de dizer que se f*da” – o qual parece ter inaugurado, no panorama literário internacional, uma moda de livros mais ou menos de auto-ajuda, com invocações histórico-sociológicas e apelos filosóficos: os que têm a palavra f no título e um número estonteante de palavrões espalhados pelo texto. Ao longo de quatro capítulos recheados de humor, experiências de vida e palavrões em todas as páginas, através de um “estilo brutalmente honesto” (segundo uma nota do editor), o autor pretende ajudar o leitor a lidar com a adversidade, a conhecer os seus limites e a reconhecer receios, falhas e incertezas, para começar a enfrentar as verdades dolorosas e focar-se no que realmente é importante. O livro apresenta “uma abordagem contraintuitiva para viver uma vida melhor”. Afinal, no dialecto de Mark Manson, “Que se fod*” quer apenas dizer “Ignorar o que não interessa na vida”.  E dá as suas instruções bem focadas num discurso sem desperdícios linguísticos de estilo ou de estética, carregado de lugares comuns, através de “palpites”: “não tente”, porque “a felicidade é um problema” e “você não é especial”, aprenda comigo “o valor do sofrimento” de uma vez por todas; por outro lado “estamos sempre a escolher”, tendo em conta que “você está errado acerca de tudo” e “o fracasso é o caminho para a frente”, não esquecendo “a importância de dizer não”, porque “…e depois morremos”.  Pronto. Mark Manson aponta problemas do cidadão comum e quer ensinar-nos a viver, através de uma narrativa popularucha que se assemelha a uma filosofia quotidiana de consolo. Mas as suas directrizes consolam quem?

Diz-nos o mesmo autor: “Vivemos numa época estranha. Apesar de termos mais liberdade, saúde e riqueza do que em qualquer outra época da história, tudo à nossa volta parece terrivelmente f*dido: aquecimento global, queda de governos, economias em colapso e todos permanentemente ofendidos nas redes sociais. Temos acesso a tecnologia, a educação e a formas de comunicar que os nossos antepassados nem sequer imaginavam, mas ainda assim sentimos uma esmagadora desesperança. Afinal, o que é que se passa connosco?” Esta é a grande questão patente no segundo livro de Mark Manson editado em Portugal, “Está tudo f*dido”, que já se posiciona no quinto lugar do mesmo top de vendas. Aqui, a abordagem é “contraintuitiva à esperança”, chegando mesmo o editor a sugerir que é “um livro de leitura obrigatória que nem todos merecemos, mas de que todos precisamos”! Realmente, nem todos merecemos.

Sim, vivemos numa época estranha. Temos tanto conhecimento relevante nos livros ao nosso dispor, mas é a espuma da literatura que atrai as moscas. Como se não nos bastasse estas duas subtilezas, ainda temos no escaparate, em nono lugar, um livro escrito pelo coach de desenvolvimento pessoal Gary John Bishop, outro bestseller mundial e nacional: o “Não te f*das” trata o leitor por “tu”, apresenta-se como “um verdadeiro manifesto para uma mudança real e significativa, e avisa que “se és do tipo que se ofende facilmente, é melhor não continuares a ler: este livro não é para ti.” As sinopses dos livros de filosofia de asterisco estão tão bem escritas, que são como sinais vermelhos de disfunção emocional, e ainda bem: esta filosofia quotidiana não me serve de consolo e o estilo demasiado coloquial com palavrões à mistura também não! Agora vou ler Friedrich Nietzsche, Santo Agostinho, David Hume, Ludwig Wittgenstein, São Tomás de Aquino, Georg Hegel, René Descartes, Platão, Immanuel Kant e Aristóteles. Apetece-me saber como falava Zaratustra, conhecer a Cidade de Deus, investigar os princípios da moral, a suma teológica, a fenomenologia do espírito, encontrar um discurso do método, mergulhar na apologia, criticar a razão pura e invocar a ética a Nicómaco. Esta sim, é filosofia consoladora para o meu quotidiano e ensina-me a viver melhor sem asteriscos. 

Adília César
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__216

sábado, 17 de agosto de 2019

DESAGOSTO


Num mundo realmente às avessas, o verdadeiro é um momento do falso.

 (Guy Debord, in “A Sociedade do Espectáculo”, 1967)


Kiss Andrea © 2019

 Agosto é o mês menos importante das nossas vidas, nele perdemos o ensimesmamento rotineiro, a circunstância confortável de outros meses de calendário. O sol arde no fogo, nos olhos, nas serras, nas cidades. Apesar das paredes altas que seguram o mundo, os pés arrastam a gravidade emocional da expectativa de descanso forçado. Tantos modos de acontecer, tanto ruído, tanta febre, tantas celebridades, tantas feiras e festivais, tanta gente concentrada no mesmo desejo de felicidade efémera: a antevisão dos eventos, as pequenas tragédias que se transformam num ápice em grandes desastres. Agosto é o espaço emocional de desconforto, é um tempo para sobreviver e depois esquecer.

Estamos todos juntos, estamos todos de costas voltadas para não nos vermos, mas envergamos, gulosos, as máscaras de quem queríamos ser. Agosto congestiona as estradas, as esplanadas, as expectativas, a filosofia do quotidiano; contudo, se todos os desejos são precários, não é menos verdadeira a certeza de que as férias chegarão rapidamente ao seu fim. Existe uma circularidade nos elementos que compõem os nossos dias e noites, as horas reconduzidas ao seu lado excessivo e… inútil. Olhamos em volta e percebe-se que os sentidos lato e específico da produção de bens e serviços (não só em agosto, mas durante todo o ano), é a procura obrigatória de horizontes substituíveis. E nós obedecemos.

A substância das relações sociais que ligam as pessoas umas às outras modificou-se, passando a ser menos autêntica, especulativa e ficcional: simulada. Temos prova desta premissa na encenação do teatro da vida – a irrealidade virtual – como uma representação dessa mesma vida da qual fomos expropriados na omnipresença da cultura do estrelato, onde as celebridades se pavoneiam perante os nossos olhares de cobiça. E nós, os pobres espectadores, somos meros figurantes nos cenários de agosto e vivemos as nossas vidas em segunda mão. A cultura do excesso, do espectáculo, conduz a um grande vazio na ruptura com a nossa essência humana: a emoção, o pensamento e a acção enfiados no buraco sem fim da lógica do consumo, a disciplina do parecer a qualquer preço. O “ser pessoa” é agora o processo quantificador na busca da uma miragem, o “parecer ser outra pessoa” que acumula. O “ser” é “ter”: mais coisas, mais experiências, a um ritmo avassalador e à imagem de um deus qualquer com os pés enfiados nuns chinelos.

As personagens construídas com vista ao engodo global e com as quais somos levados a identificar-nos, não são, elas próprias, um fragmento dessa enorme miragem que é a escalada social da vida moderna? Até as nossas crianças sonham com a fama, identificam-se diariamente com as personagens célebres das séries que visualizam nos écrans. Exigem ser como elas, querem possuir os adereços que compõem a personagem que admiram. Imitam, apropriam-se, iludem-se. E depois substituem por outra qualquer, mais apelativa ou mais presente, por via do espectáculo que lhes é oferecido através da publicidade, da nova série produzida precisamente para esse efeito: assim se educa para a omnipresença de um novo mundo virtual e infinitamente descartável, para sermos dependentes de uma imagem criada não à nossa própria imagem, mas de acordo com a lógica da disciplina económica e a-politizada, tão perigosa porque não a compreendemos.

Agosto até pode ser um mês de calendário como outro qualquer, mas também é o “desagosto” da vida, o tempo dito livre que acaba por não nos dar nenhuma liberdade de pensamento-acção, pois andamos distraídos, queremos andar entretidos. Pelo contrário, é um sujeito colaborador e pactuante no enorme cinismo da manipulação colectiva num mundo saturado de imagens: «tudo o que aparece é bom e tudo o que é bom aparece», disse Guy Debord, preconizando que nós, os espectadores, ao não encontrarmos o que desejamos, desejamos o que encontramos. Cuidado, muito cuidado, o perigo apenas espreitava, mas agora vive entre nós, é o elo servil e invisível que nos liga e aprisiona.

Adília César

sábado, 10 de agosto de 2019

PRONTO-A-DESPIR


Um tipo atípico e, no entanto, cheio de arquétipos.
Um sonho das superfícies. Moldável. Serve de moldura.
Aproximem-se. O vosso photomaton também cabe aqui.

Golgona Anghel

Ainda o mês de agosto do meu descontentamento. Ano após ano, agosto volta e traz com ele os exageros estilísticos. Claro, o mês dourado da estação veranil serve para os dois lados: o que tem de bom tem de mau, mas não é essa dicotomia que pretendo discutir aqui. E não nos debrucemos sobre legislação em vigor relativamente ao decoro do traje, pois essa matéria é, pela certa, areia movediça…

Arte de Isabel Afonso

No Algarve, o sol arrebatador implica roupas leves e frescas, adereços coloridos, óculos escuros, chapéus de palha e os clássicos chinelos de enfiar nos pés. Não podemos esquecer os decotes e as transparências para completar a grande onda algarvia da moda. Neste sentido, a moda equilibra-se no fio da bainha e cada pessoa sai à rua exibindo um-estilo-que-não-é-bem-um-estilo. Observando com atenção, todos podemos ser, afinal, estilistas inovadores, de acordo com as conjugações possíveis ou impossíveis entre peças, imbuídos do espírito crítico de que somos capazes no exercício do direito à liberdade de expressão.  No campo traiçoeiro da moda, os homens, de um modo geral, são mais discretos: t-shirt, calção, óculos escuros, chinelos, boné; às vezes descalços, outras de tronco nu. Já as mulheres, seres complexos e de extremo bom ou mau gosto, dependendo do ponto de vista do apreciador com quem se cruzam, são capazes de assumir uma predisposição intrínseca para o inusitado, o provocador, o exagerado: a calça branca transparente com a cueca opaca de dimensão reduzida, o vestido tipo lingerie, o short que destapa as nádegas… e muitos outros casos flagrantes com os quais tropeçamos todos os dias, não esquecendo, como é evidente, a indumentária das figuras mais andrógenas; também ao referir o homem e a mulher enquanto sexos diferenciados, não estou a excluir a construção histórico-cultural dos diferentes géneros existentes (o heterossexual masculino e feminino, o homossexual masculino e feminino e o bissexual) e as respetivas correlações com as roupas que envergam… No entanto, o que me interessa agora realçar é que os exageros da arte do vestuário, independentemente dos sujeitos em questão, parecem tão naturais que já ninguém liga: não aquecem nem arrefecem, apesar das temperaturas altas que se fazem sentir.

Na praia, dá-se continuidade a este processo descontínuo de estilismo, é o destapa-se-quem-puder: vale tudo, mostra-se todos os possíveis centímetros de pele, para os besuntar de bronzeador e usufruir de um belo escaldão; frequentam-se os cafés e os restaurantes despidos da mesma forma. Outro exemplo caricato é a atitude estilista assumida nas viagens de mota, ao que chamo o-esperar-que-corra-tudo-bem-e-não-se-tenha-um-acidente: usa-se capacete como medida de segurança, mas eles conduzem frequentemente de manga curta, calção e chinelos e elas de vestidinho ou páreo, short e chinelos, o que provavelmente dificultará a protecção dos corpos em caso de queda...

Ainda há quem ainda se vista a rigor, tendo em conta peças de vestuário e de calçado cuidadosamente escolhidos para cada ocasião, o que é tão válido como o seu contrário. Por aquilo que tenho observado, há um número considerável de pessoas que não perde tempo a pensar sobre a vestimenta, pois parece que muitos homens e mulheres saem à rua envergando o que estava à mão, o que às vezes é quase nada… Esta atitude, tão frequente nas regiões mais quentes e costeiras como a bela região algarvia, resulta em imagens risíveis que ilustram bem a tese que pretendo defender: o Algarve é um enorme Pronto-a-Despir. E como ponto de partida para a reflexão deixo um exemplo extremo e real, com o qual um amigo se deparou há uns dias, enviando-me a fotografia que captou de um casal em férias no Algarve: um homem descalço e uma mulher de bikini tipo fio dental faziam compras numa grande superfície comercial que se situa ainda longe da praia. Descontracção? Abuso? Anedota?


Foto cedida por Franscisco B.

Cada um veste o que quer vestir e ninguém tem nada que ver com isso, ou seja, a crítica alheia não deve ser a bitola do nosso estilo de moda: as necessidades e o gosto pessoais, sim. Além disso, as roupas que cobrem ou descobrem a nudez do corpo são tecidas, em primeiro lugar, com preconceitos e pudores; e também com seda, linho, lã, algodão. As roupas e restantes adereços são um vestuário emocional que nos protege das intempéries meteorológicas e sociais, mas que também nos expõe perante os outros, o que quer dizer que podemos despir as roupas, mas nunca ficamos completamente nus. A nudez é sempre interior. A pele é apenas o contorno do corpo que nos pertence, nu ou vestido, sobre o qual deveríamos ter domínio absoluto, com o devido respeito por nós e pelos outros.

Provavelmente, o-estilo-que-não-é-bem-um-estilo não é um problema sério para reflexão. O tempo de férias também é o tempo para descontrair: é só sair à rua e soltam-se umas boas gargalhadas à custa das indumentárias alheias! E de mim riem os outros.

Adília César

sábado, 3 de agosto de 2019

MÁQUINAS DE PESTANEJAR


É o império da emoção contra a chateação, da excitação contra o tédio, da rapidez contra o tempo natural das coisas, da festividade contra a tranquilidade, da ebriedade contra a sobriedade.
Marcia Tiburi


Erica, o estranho robô japonês

Agosto é o mês dourado do tempo de férias: festas, petiscos, festivais, feiras, cocktails, sunsets, viagens. Muito tempo perdido: disparates, superficialidades, indiferenças, devaneios, amores e amizades sem futuro. Planeiam-se as férias, imaginando um mundo que não existe, ao qual se chama paraíso, geralmente tornado real através de uma fotografia – verdadeira ou falsa – partilhada nas redes sociais. Outros mundos mostram-se tal como são desenhados, nos meios de comunicação social: loucos e cruéis, muito distanciados dos tais paraísos de férias dos folhetos publicitários de propaganda demagógica e turística. Ainda assim, ansiamos pelas férias de verão.

É no verão que nos aproximamos a largos passos do precipício que é o nosso vazio interior, enquanto seres humanos. Porque cumprimos as ordens do sol, da publicidade, do calendário, do consumismo, das ideias prontas, temos propensão para esquecermos a nossa essência de pessoas. Ser pessoa é um verbo formado por três conceitos – pensamento, emoção, acção – veiculados, por um lado, pelas pseudo-necessidades redimensionadas pela ditadura do consumo e, por outro, pelas necessidades reais substanciadas pela decisão pessoal ou colectiva que deveria ter em conta – mas não tem – a reflexão, o questionamento, a crítica e o discernimento.

A linguagem e a comunicação assumem outras formas numa contemporaneidade caracterizada pelos vazios do pensamento, da emoção, da acção, em grande parte devido ao papel social imposto pelas redes virtuais. As redes são sociais porque estão a mudar a sociedade, mas também são, em grande parte, demolidoras da própria comunicação entre as pessoas, parecendo um enorme manicómio onde cada “louco” diz o que lhe apetece: os outros parecem estar lá, mas não o ouvem, logo, não lhe respondem, ignoram-no, ostracizam-no, bloqueiam-no. Estas acções de causa expectante e efeito negativo promovem insatisfação, desalento, raiva e fazem surgir outros fenómenos psicológicos de esvaziamento do conteúdo emocional que parece não terem ainda nome clínico.

Cartoon de Pawel Kuczynski

Por outro lado, muita gente partilha infinitamente um enorme fluxo de ideias feitas, que assume como apelativas, sendo consumidas de imediato e não questionadas pelos destinatários; nessa viagem virtual levamo-las connosco na bagagem, esse excesso de peso que nos torna menos humanos. As pessoas procuram emoções em todos os cenários ditos radicais ao seu alcance: espectáculo, sexo, comida, droga, álcool, desporto, etecetera, mas não descodificam as emoções quando as encontram, assumem-nas levianamente como “mais uma experiência” e rapidamente partem para outra caça ao tesouro, como uma deambulação anestesiada pela procura do êxtase. Pelo caminho, os acidentes, as catástrofes e os desastres noticiados nos meios de comunicação social e redes sociais já não os comovem, parecendo existir um estado de frieza generalizada face ao sofrimento dos outros, nada fazendo para o minimizar. É difícil manter a lucidez no meio do caos, mesmo após um agradável mergulho nas águas cristalinas do oceano. As solicitações são tantas, que não sobra tempo para olhar o mundo com a percepção nítida de que realmente vimos alguma coisa comovente e nos faz intervir como cidadãos cívicos.

A violência e a banalidade do mal referidas por Hannah Arendt não têm como base a malignidade, a perversão ou o pecado humano. Ela argumentou que os seres humanos podem realizar acções extremas de destruição e de morte sem qualquer motivação maligna, sem razão aparente ou justificável, tendo em conta os processos de naturalização da sociedade e de artificialização da natureza, ambos decorridos da massificação, da industrialização e da “tecnificação” das atitudes no seio das organizações humanas, ou seja, o mal é abordado numa perspectiva ético-política e não na visão moral ou religiosa. Se o pensamento, a emoção e a acção constituem o triângulo de forças que dá corpo à essência do ser humano, também é verdade que estamos a ser invadidos pelos vazios correspondentes, para os quais em muito contribui o tempo perdido com as novas formas virtuais de relacionamento e de comunicação: porque o que procuramos já lá não está, quando nos transformarmos em máquinas de pestanejar, quando formos menos humanos, por vontade e responsabilidade própria.

É urgente tomarmos consciência de que o desenho da realidade já não é figurativo nem abstracto: é real, confuso, literal, a mudar os conceitos éticos que tudo justificam, esquecendo que todos viajaremos a caminho da eternidade no mesmo barco, pois todas as coisas se compram menos a passagem para o tempo da morte. Paradoxos da civilização a impor novos conceitos éticos. Não há soluções à vista. Na verdade, não necessitamos de profetas da luz ou da escuridão, mas sim de amor incondicional ao próximo e do regresso às coisas simples, antes de chegarmos ao ponto sem retorno: a água pura e o pão que a terra nos dá, a abelha e o lobo, o silêncio da solidão os gritos do sofrimento alheio; abolir preconceitos; e esperar um big bang que nos traga um novo mundo mais humano, depois do grande desastre. Há uma indiferença latente que ainda nos é permitida, uma espécie de falsa inocência, tendo em conta a facilidade com que nos apropriamos dos vazios que nos chegam através do prolongamento da nossa mão: o smartphone e a sua divina omnipresença. Até quando?

Adília César

LÓGOS 10 - MAIO 2022 (ÍNDICE)