sábado, 25 de novembro de 2017

ESPAÇO NÃO PÚBLICO DA LITERATURA

A propósito do conceito de "espaço público", que José Gil ("O medo de existir", 2005) caracteriza como "espaço aberto de expressão e de trocas, essencial para que a liberdade e a criação circulem num campo social" (...), tenho vindo a reflectir com outras pessoas sobre o espaço público da literatura, e cheguei à conclusão de que o que existe é um "espaço não público da literatura" (utilizando o conceito de José Gil), por ser o cenário que prevalece actualmente:
- toda a populaça que escreve é excelente escritor ou grande poeta 
- prémios literários com critérios que passaram da observação da qualidade da obra aos meandros do compadrio
- prémios literários subsidiados pelos próprios candidatos
- prémios literários que premeiam os autores que dão prestígio ao próprio prémio
- críticas literárias sobre os amigos que se portam bem e são "acessíveis", silenciando outros porque incomodam e são inconvenientes
- festivais literários "internacionais" em território nacional com colaboradores de qualidade intermitente: bons (poucos), assim assim (alguns), maus e péssimos (muitos), onde os autores portugueses são apenas figurantes
- publicações pagas por inúmeros pseudo-autores, sem validação de qualquer espécie, que vão desde livros em papel a e-books
- bajulação de intervenientes com algum poder de decisão e intervenção
- exclusão de promotores da cultura que lutam por princípios de elevação de obras, autores, arte.

E é esta última circunstância a que mais me choca, porque ignora o óbvio: a Literatura não é "isto" que me rodeia e não é para todos. Há coisas escritas que são para todos, mas não lhe chamem literatura... A Literatura é outra coisa que apenas alguns escritores e leitores alcançam, é a possibilidade de iluminar e ser iluminado.

Escreve José Gil: (...) "não há espaço público porque este está nas mãos de umas quantas pessoas cujo discurso não faz mais do que alimentar a inércia e o fechamento sobre si próprios da estrutura das relações de força que elas representam. Os lugares, tempos, dispositivos mediáticos e pessoas formam um pequeno sistema estático que trabalha afanosamente para a sua manutenção" (...) No que diz respeito à arte, "as pessoas vão às exposições e aos espectáculos,«gostaram» ou «não gostaram», e voltam para casa, ou seja, para as suas preocupações. (...) A literatura não entrou no espaço público, porque não há espaço literário que exista por si. Não há uma comunidade literária como não há uma comunidade artística ou científica ou filosófica. Há nomes, há mediatização de alguns desses nomes, há a grande preocupação de ser reconhecido no estrangeiro e, sobretudo, de transportar para Portugal o reconhecimento internacional" (...) O espaço público, no sentido em que empregamos esta expressão algo inadequada, não é o lugar da «opinião pública» nem de manifestações colectivas, políticas ou outras. Mais mesmo do que um espaço de comunicação, é um lugar de transformação anónima dos objectos individuais de expressão. É a palavra «público» que não convém: porque esse espaço de transformações contém zonas de sombra, pontos imperceptíveis de ligações de forças, linhas invisíveis que traçam trajectos de energia. Esse espaço «público», sendo aberto, não se expõe necessariamente à luz." (in "O Medo de Existir", 2005, p. 25-28)
Adília César
O surrealismo metafórico de Vladimir Kush

terça-feira, 14 de novembro de 2017

LÓGOS | INTERTEXTUALIDADES

LÓGOS – Biblioteca do Tempo tem vindo a reflectir sobre a experiência literária desde há algum tempo. O grupo no facebook, o blogue e a revista literária com o mesmo nome constituem-se enquanto plataformas de comunicação, estratégias de intervenção e objectos estéticos. Neste sentido, estamos atentos a possíveis pontes entre a literatura e a vida. No caso específico que hoje divulgamos, encontrado no repositório da Universidade Aberta, verifica-se que a Poesia consegue ilustrar uma pesquisa técnica na área da Administração e Gestão Educacional, iluminando com pequenos pontos de luz a investigação levada a cabo pelo Professor Pedro Fernando Oliveira Tavares, intitulada “A gestão da escola na promoção da Interculturalidade no agrupamento”, com vista à obtenção do grau de mestre em Administração e Gestão Educacional pela Universidade Aberta e sob a orientação da Doutora Darlinda Maria Pacheco Moreira, em 2016. https://repositorioaberto.uab.pt/bitstream/10400.2/6400/1/TMAGE_PedroTavares.pdf Nas palavras do professor, este é “um trabalho que pretende contribuir para uma reflexão sobre a importância que a gestão escolar pode representar na sociedade intercultural em que vivemos e que nos coloca, constantemente, perante novos, singulares e complexos desafios”. Assim, Pedro Fernando Oliveira Tavares recorre a inúmeros excertos de poemas dos livros “Humanidade” de Fernando Esteves Pinto e “Os Rapazes Rebeldes” de Uberto Stabile, além de outros, para lançar os capítulos da sua dissertação, estabelecendo as tais pontes entre a arte e a vida, a partir das suas próprias concepções estéticas. No nosso entender, este também é um desafio que a boa Poesia consegue atingir, consubstanciando o pensamento humano relativo a diferentes áreas do conhecimento, sem necessidade dos superficialismos fáceis e tentadores da bajulação exacerbada a este ou aquele poeta, a este ou àquele poema. A dissertação de Pedro Fernando Oliveira Tavares merece ser lida, quer pelos conteúdos explicitados, quer pela lucidez com que são construídas as pontes poéticas acima referidas.

Como informação adicional, deixamos mais dois links exemplificativos de possíveis utilizações educativas da poesia e da literatura de Fernando Esteves Pinto: o conto «O rapaz das árvores» foi trabalhado na Escola António Arroio em 2011, e a Dissertação de Mestrado em Estudos Anglo-Americanos, sob orientação da Professora Doutora Graça Capinha, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, em 2010, por Cristina Isabel Rodrigues Néry Monteiro, intitulada «A “Palavra Larga” mulheres nas revistas portuguesas de poesia contemporânea: três estudos de caso na “outra tradição”».

Adília César



sexta-feira, 3 de novembro de 2017

LÓGOS | ESCREVER CRIAR

As palavras escritas são imagens em movimento, viajantes. Objectos com densidade e corpo. Lemos a palavra e vemos a imagem do que ela significa. Pensamos sobre ela de imediato. Quando não sabemos o significado de uma palavra, não temos imagem, é como se a palavra não existisse, e não conseguimos pensar sobre ela. Por vezes, apesar de sabermos o que a palavra significa, não gostamos da imagem que ela nos provoca. E foge-nos, não a retemos na paisagem revelada pela leitura.
Em relação às pessoas, o processo é similar. Quando olhamos uma pessoa e ela não tem imagem, porque a sua leitura/compreensão em nada acrescenta à nossa interioridade, é como se essa pessoa não tivesse direito à existência afectiva e real, pelo menos na nossa paisagem interior. É uma não-pessoa. Este processo selectivo dos humanos que passam e ficam ou não em nós, contribui para o nosso equilíbrio, para a nossa viabilidade como mulheres e homens sãos e criativos.
O mesmo se passa com os autores e os livros que lemos. Alguns desses autores e livros, ficam. Com eles viveremos o resto das nossas vidas. Outros, banais ou medíocres, não. Passam por nós e desaparecem. É um autor sem expressão que escreve um não-livro. Um divórcio estético.
Haja coragem para tomarmos as atitudes certas em relação aos autores e aos livros que lemos. Nem tudo é bom (muito menos "excelente" ou "extraordinário", como se apregoa com frequência). Nem tudo é Arte. Então o que é Arte Literária?

Esta foi uma das reflexões que levou ao aparecimento da Revista LÓGOS - Biblioteca do Tempo, através da iniciativa de Fernando Esteves Pinto, Adília César e Adão Contreiras, que se assume como um ponto de vista em relação àquilo que a Literatura deve ser - expressão artística. O tempo será o juiz desta ousadia.

Adília César

LÓGOS 10 - MAIO 2022 (ÍNDICE)