terça-feira, 26 de setembro de 2017

7 UNIVERSOS DE POESIA | CASIMIRO DE BRITO

LÓGOS – Biblioteca do Tempo realizou uma série de entrevistas a 7 poetas portugueses, cujo questionário (com base em citações de autores universais) foi igual para todos excepto a última questão, mais pessoal. A particularidade deste projecto foca-se no facto de nenhum dos poetas contactados ter tido conhecimento das respostas dos seus pares. As 7 entrevistas serão posteriormente publicadas na revista LÓGOS – Biblioteca do Tempo.
 

LÓGOS: Paul Éluard disse (e cito de memória) que poeta é aquele que inspira, e não aquele que é inspirado. Ora, como parece haver mais “poetas” do que leitores de poesia, somos efectivamente um país de “inspirados”?

CASIMIRO DE BRITO: A chamada inspiração dá-me alegria, reconheço, mas a sua origem tem-se transformado ao longo do tempo. Acontece-me algo, sinto em cada momento, que pede para ser contado (ou cantado) de outra maneira. E algo é tudo quanto vem desse vasto mundo, seja ele o das coisas naturais (animais, vegetais, tutti quanti) ou das coisas humanas (arte, filosofia, ciência) — algo inesperado rebentou, e é preciso dizê-lo de outra maneira. É aqui que entra o ofício, as mãos e o rigor do artesão. Não me deixo sobrestimar em nenhuma circunstância.

LÓGOS: “O que distingue um grande poeta é o facto de ele nos dizer algo que ninguém ainda disse, mas que não é novo para nós.” Partindo deste pressuposto de Ortega y Gasset, qual é o teu «ponto de partida» para a construção de um poema?

CASIMIRO DE BRITO: Começa com uma espécie de música que, penso eu, não existe ainda. Sobre a música que flutua no poema, aquática flutuação entre a música mundi que o poeta ouviu e a música profana que o poema oferece a cada visitante, tudo está dito: ritmo, cadência, metro, aliteração, elipse, assonância, paranomásia, onomatopeia e, ao fundo de cada palavra, envolvendo-a de aura, o silêncio. Esse silêncio, mas posso chamar-lhe também vazio, que devolve a palavra a uma origem perdida; esse vazio que, assinalando o poder mágico da palavra no poema, a opõe ao ruído pragmático do medium linguístico quotidiano. Sobre a música do poema nada direi. Ou o poema é a sua própria boca ou não haverá leitura (legere é também "escolher", "roubar"), errância, interrogação.

LÓGOS: A maior verdade de um poeta é pôr o mundo a falar nos seus versos? É uma tragédia se não o entendem no seu tempo? Tens consciência da «utilidade» da tua poesia no mundo?

CASIMIRO DE BRITO: Deixei escrito há dezenas de anos que o meu poema servirá, espero, a quem for tão pobre como eu. Pobre no sentido de despojado. E é curioso que, por vezes, ficamos mais ricos — e não será apenas o meu caso — com a aproximação do pouco. O mundo está cheio de “muito” e é preciso esvaziá-lo quanto possível.

LÓGOS: “O poeta não exagera profundamente, mas amplamente” (Mattew Arnold). És tentado, como poeta, a destruir a linguagem para criar outra linguagem?

CASIMIRO DE BRITO: A construção de uma linguagem (sem a qual a poesia não existe) não pressupõe a destruição de outras linguagens. Disso se ocupará o tempo, a que alguns até poderão chamar de morte — coisa que evidentemente não existe. Quando falo na morte, canto. Canto a passagem do rio do tempo. Um tempo que não olha para trás mas deixa um rasto de luz. Ou é de barro?

LÓGOS: Nadine Gordimer disse que “A poesia é ao mesmo tempo um esconderijo e um altifalante”. Quanto da tua poesia é mistério e «leitura infinita»?

CASIMIRO DE BRITO: O meu trabalho acaba quando o poema (e tantas formas de poemas há) sai do seu casulo. Já não é meu. Tal como a espuma do mar já não pertence ao mar que dela se libertou. Tal como a “Paixão de São Mateus” (BWV 244), que neste momento me invade, já não pertence a J. S. Bach.

LÓGOS: “Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo” (John Keats). Qual é a tua opinião sobre esta floresta de poetas que cresce imparável numa eterna falsidade de vozes?

CASIMIRO DE BRITO: Não concordo, de modo nenhum, com as palavras de Keats. A poesia nem sempre surge “naturalmente”, pois a poesia não é só uma arte, á também um ofício. Requer rigor, e muito. Sabes quem foi o meu segundo mestre de poesia (o primeiro foi o António Aleixo, em cujo colo me sentei em criança): o oleiro da minha rua! Eu ficava a olhar fascinando a ver as suas mãos e os seus olhos modelarem um simples vaso. Talvez a poesia seja, antes de mais, um vaso.

LÓGOS: A poesia é confissão? Ou uma filosofia do espírito que nomeia a vida?

CASIMIRO DE BRITO: “Sinto até transbordar”, escreveu Pessoa. Admirei-me ao ler esta confissão na medida em que procuro sentir até me esvaziar — e não sei se este sentimento é influência das “doutrinas” orientais, que há muitos anos frequento ou se as frequento porque era esse o meu sentimento original.

LÓGOS: Nathalie Sarraute: “A poesia numa obra é o que faz aparecer o invisível.” Já algum crítico conseguiu evidenciar na tua obra o que pretendeste, deliberadamente, que permanecesse invisível numa primeira leitura?

CASIMIRO DE BRITO: Deixo de desejar o quer que seja quando lanço um poema. Ele terá (ou não terá) vida própria. O que interessa à árvore sob a qual neste momento escrevo o que vai acontecer às folhas que dela caíram. Ela cumpriu o seu papel, eu cumpri o meu. 

LÓGOS: “A poesia não é uma questão de sentimentos, é uma questão de linguagem. É linguagem que cria sentimentos” (Umberto Eco). Consideras que a verdadeira poesia é uma arte cheia de regras e técnicas e que procura ter uma boa relação com os sentimentos?

CASIMIRO DE BRITO: Se, "em norma", o poema passa pela escuta do mundo (ou do Tempo) e pela sua experiência, antes de ser letra, no corpo/coração do poeta, aqui o poema parece anteceder o sentimento contido no prometido "coração". Tudo está até certo, em nome das ideias luminosas que há muito correm, de que "poemas não são sentimentos mas experiências", mas o ofício aqui deixa em exibição (numa espécie de surrealismo après la lettre) todas as alfaias do prazer do mundo, uma indepuração de materiais, organizados em poema, mas o coração virá (estará) depois. Depois do poema!

LÓGOS: Até que ponto o género Haiku influenciou a tua sensibilidade poética de sentir o mundo?

CASIMIRO DE BRITO: Já na minha austera infância eu havia iniciado um caminho de austeridade (que mais tarde associei a raízes judaicas e árabes da minha família) e comecei desde logo a coleccionar ditos sobre tal matéria. Por exemplo, e ouço o meu avô: “Se um figo te basta não comas dois”. E do meu pai (era o rescaldo da guerra): “Não há, não faz falta”. E isto que já me corria no sangue só alcançou expressão poética, reconheço, quando em 1958, no Westfield College de Londres, num curso de Verão, tendo ficado nos aposentos de um professor de Poesia Oriental, tomei conhecimento (um pasmo!) da arte do pouco, do mínimo, do essencial. Mas como se sabe não fiquei só por aí — pois cada um de nós é mais do que um. Senti a necessidade de perseguir outros rios (as lutas sociais, as veredas da música, o amor, que não obedece a regras, as minhas peregrinações por vários mundos) e como é evidente isso implicou a dedicação a vários “estilos”, e ainda não parei. Disso se terá conta quando, muito brevemente, for editado o primeiro volume da minha Poesia Completa, que se intitulará “Negação da Morte”, que foi sempre uma constante na minha obra literária.

BREVE BIOGRAFIA

Poeta, romancista, contista e ensaísta. Nasceu no Algarve, em 1938, onde estudou (depois em Londres) e viveu até 1968. Depois de uns anos na Alemanha passou a viver em Lisboa. Teve várias profissões mas actualmente dedica-se exclusivamente à literatura. Começou a publicar em 1957 (Poemas da Solidão Imperfeita) e, desde então, publicou mais de 40 títulos. Dirigiu várias revistas literárias, entre elas "Cadernos do Meio-Dia" (com António Ramos Rosa), os Cadernos "Outubro/ Fevereiro/ Novembro" (com Gastão Cruz) e "Loreto 13" (órgão da Associação Portuguesa de Escritores). Actualmente é responsável pela colaboração portuguesa na revista internacional “Serta” e faz parte da direcção do Festival “Voix Vives” de Sète bem como da World Haiku Association, sediada em Tóquio. Esteve ligado ao movimento "Poesia 61", um dos mais importantes da poesia portuguesa do século XX. Ganhou vários prémios literários, entre eles vários prémios nacionais, o Prémio Internacional Versilia, de Viareggio, para a "Melhor obra completa de poesia", pela sua Ode & Ceia (1985), obra em que reuniu os seus primeiros dez livros de poesia. Colabora nas mais prestigiadas revistas de poesia e tem obras suas incluídas em 236 antologias, publicadas em vários países. Participou em inúmeros recitais, festivais de poesia, congressos de escritores, conferências, um pouco por todo o mundo. Foi director de festivais internacionais de poesia de Lisboa (Casa Fernando Pessoa), Porto Santo (Madeira) e Faro. Foi fundador e vice-presidente da Associação Portuguesa de Escritores, presidente da Association Européenne pour la Promotion de la Poésie, de Lovaina e foi fundador e presidente da direcção depois da Assembleia Geral do P.E.N. Clube Português. Obras suas foram gravadas para a Library of the Congress, de Washington. Foi agraciado pela Academia Brasileira de Filologia, do Rio de Janeiro, com a medalha Oskar Nobiling por serviços distintos no campo da literatura — entre outras distinções. A Académie Mondiale de Poésie (da Fundação Martin Luther King) galardoou-o em 2002 com o primeiro Prémio Internacional de Poesia Leopold Sédar Senghor, pela sua carreira literária. Ganhou o Prémio Europeu de Poesia Sibila Aleramo-Mario Luzi, com a sua antologia Libro delle Cadute, publicada em Itália em 2004. E o prémio “Poeteka” na Albânia. Tem traduzido poesia de várias línguas, sobretudo do japonês e foi traduzido para galego, espanhol, catalão, italiano, francês, corso, inglês, alemão, flamengo, holandês, sueco, polaco, esloveno, servo-croata, grego, romeno, búlgaro, húngaro, russo, árabe, hebreu, chinês, albanês, macedónio e japonês. Em 2006, foi nomeado Embaixador Mundial da Paz, no âmbito da Embaixada Mundial da Paz, sediada em Genebra. E foi agraciado com a Ordem do Infante pela Presidência da República. Últimas obras editadas: Livro das Quedas, Arte de Bem Morrer, Amar a Vida Inteira, Amo Agora (com a cantora argentina Marina Cedro), Eros Mínimo, Aimer Toute la Vie (em Paris) e Apoteose das Pequenas Coisas (fragmentos), Flor Interior, Música Nua.


domingo, 24 de setembro de 2017

7 UNIVERSOS DE POESIA - RITA TABORDA DUARTE

LÓGOS – Biblioteca do Tempo realizou uma série de entrevistas a 7 poetas portugueses, cujo questionário (com base em citações de autores universais) foi igual para todos excepto a última questão, mais pessoal. A particularidade deste projecto foca-se no facto de nenhum dos poetas contactados ter tido conhecimento das respostas dos seus pares. As 7 entrevistas serão posteriormente publicadas na revista LÓGOS – Biblioteca do Tempo.


LÓGOS: Paul Éluard disse (e cito de memória) que poeta é aquele que inspira, e não aquele que é inspirado. Ora, como parece haver mais “poetas” do que leitores de poesia, somos efectivamente um país de “inspirados”?

RITA TABORDA DUARTE: Em tempos de antanho escrevi qualquer coisa como esta num livro já antigo, de 1998, editado na Black Sun Editores, pelo Fernando Guerreiro, este, sim, um poeta que inspira: «um poema/ a cemporcentimento/ respirado/ é cinquenta por cento inspiração/ e outros cinquentital/ de expirado». A poesia é coisa autofágica que se consome a si mesma: provoca as  próprias feridas, esgatanha-as quase até ao osso das palavras e põe-se a lambê-las, com a aspereza da língua que lhe coube. Os poetas serão, naturalmente, os únicos leitores de poesia. Nisso, a poesia é muito similar aos tratados de engenharia mecânica; regra geral, só os engenheiros mecânicos os lêem. Um poeta escreve por cima dos poemas que lê e rasura os versos alheios com versos próprios, que podem, por sua vez, inspirar outro poeta, nessa fadiga absurda de encavalitar palavras no meio de uma folha. Quem mais, senão os poetas, suportaria este cansaço de tentar dar sentidos (vacuíssimos) a versos, frases encolhidas, arremessados ao centro da página, ao arrepio das margens, largas. Sim, é verdade que estou a fazer vista grossa à pergunta, desconversando como se nem fora comigo. Mas, acatei a provocação das aspazinhas a mosquear a palavra «poeta». Que se pode dizer sobre isto senão que os poetas são como as pessoas: há umas que são excepcionais, outras meramente excelentes, há boas pessoas, coitadas, e há malta do piorio. E, sim, no geral, haverá gente em demasia neste mundo.

LÓGOS: “O que distingue um grande poeta é o facto de ele nos dizer algo que ninguém ainda disse, mas que não é novo para nós.” Partindo deste pressuposto de Ortega y Gasset, qual é o teu «ponto de partida» para a construção de um poema?

RITA TABORDA DUARTE: Ou é isso, como diz Ortega e Gasset, ou outra coisa que tal, sendo também verdade o seu contrário. O Herberto declara sobre a poesia (a grande, claro): «A propósito da poesia pode dizer-se: A lâmpada faz com que se veja a própria lâmpada.». Mas bem sabemos que assim pode não ser: a lâmpada, como a poesia, pode ofuscar e ocultar, em vez de desvendar. É certo que haverá poemas que nascem não sei onde, vêm não sei como e que se escrevem não sei porquê. A outros, no entanto, consigo perseguir-lhes o rasto: uma palavra que teima em deslaçar-se da mole esgotada da língua, saltando para os rebordos do dicionário; a resposta urgente a um verso demasiado bem feito, dos tais que dizem o que ninguém disse, mas que todos sabíamos, sem saber que o sabíamos antes de o poema o dizer. Ou, por vezes, a voz poética germina como «o desenvolvimento de uma exclamação», para usar a expressão de Paul Valéry: um certo reparar que surge num repente e a consciência imediata de que há tão poucas palavras para o dizer.

LÓGOS: A maior verdade de um poeta é pôr o mundo a falar nos seus versos? É uma tragédia se não o entendem no seu tempo? Tens consciência da «utilidade» da tua poesia no mundo?

RITA TABORDA DUARTE: Manuel Gusmão, num livro de ensaios brilhante intitulado Tatuagem e Palimpsesto responde à primeira pergunta e prossegue para além dela: «(…) a poesia não é uma palavra cheia de silêncio em volta; pelo contrário e, contra uma longa tradição, eu julgo que ela não só responde, como pede resposta. Fingindo, emendando ou obscuramente esclarecendo a vida de quem escreve, ela espera activamente co-mover o viver de quem lê quem a diz». Nem é tanto o caso de pôr o mundo a falar nos versos, nem sequer de o invocar, simplesmente, ou de o pôr em movimento. Trata-se de uma forma de criar mais mundo no mundo; por isso, será a poesia quase naturalmente incompreendida; por isso, pertencerá a um tempo mais além, algures num futuro. Seamus Heaney diz-nos que «o objectivo da arte, da poesia, é de alguma forma reparar o que está danificado.» Da minha poesia, não me atrevo a ter a pretensão de reparar coisa alguma e certamente que, assim, não posso ter a consciência da sua utilidade, mas os poemas alheios são-me bem úteis; por exemplo, para responder a perguntas em entrevistas. Como este de Ramos Rosa, que arrebata (mesmo contrariando parte do que acabei de dizer), e de uma penada, a questão do mundo, das verdades da poesia e suas contingências ou utilidades:       
                                  
                                   Escreve-se para que algo aconteça
                                   Sem acrescentar nada ao mundo
                                   Por isso um pássaro de pedra se levanta
                                   E logo se recolhe ao ninho da sua leve sombra

                                   Assim a palavra se abre e fecha como uma concha
                                   ou como um leque de um muro que respira
                                   Quando a palavra parte é já um retorno ao sono
                                   Quando a voz se levanta é já o frémito de uma queda

                                   O poema recebe o alento com que se move
                                   E a si mesmo se abraça quando abraça o tronco
                                   de um deleite branco ou de um puro devaneio
                                   O seu lugar é o seu movimento azul ou branco
                                   e o que nele canta é uma pedra trespassada
                                   pela sombra que acompanha a sua voz

LÓGOS: “O poeta não exagera profundamente, mas amplamente” (Mattew Arnold). És tentada, como poeta, a destruir a linguagem para criar outra linguagem?

RITA TABORDA DUARTE: Agora, sim, há qualquer coisa a dizer; qualquer coisa do espanto: O ser humano é um estranhíssimo animal. Não foi fácil, nada fácil com certeza, construir um sistema de comunicação tão complexo como são as nossas línguas, não para comunicar e transmitir informações de modo mais certeiro, mas precisamente com o intuito de as desarranjar e complicar e intricar e ocultar, que é o que amiúde fazemos quando falamos, mais ainda quando escrevemos. Mesmo na nossa língua do quotidiano, comportamo-nos como se estivéssemos num permanente combate contra a linguagem, a retorcer o vocabulário, a sintaxe, a gramática: a cada frase, uma rasteira à língua, a ver se a contornamos, como se não nos conformássemos à sua fórmula original: servimo-nos de metáforas, apuramos ironias, ambiguidades, arquitectamos labirintos verbais, equilibramos malabarismos estilísticos, e dizemos umas tantas coisas, não para dizer o que dizemos, mas para dizer outra coisa ainda. Provoca-me imensa perplexidade estarmos sempre, enquanto falantes, a tentar passar a perna à linguagem. Na verdade, ser poeta é só ir um tudo nada mais longe, quase ao limite, nesta convicção de que a nossa própria língua está sempre aquém daquilo que nem sequer sabemos que queremos dizer. Não procuro, quando escrevo, destruir a linguagem para criar outra (é uma maçada, mas na verdade andamos sempre algemados à nossa língua; aliás pior do que a usarmos, nós somos a nossa língua), mas que há um irritado braço de ferro contra ela, isso sim. Talvez isso possa consistir uma possível definição de poesia (mais uma): uma permanente resistência à língua: a poesia, assim, como uma forma de atrito.

LÓGOS: Nadine Gordimer disse que “A poesia é ao mesmo tempo um esconderijo e um altifalante”. Quanto da tua poesia é mistério e «leitura infinita»?

RITA TABORDA DUARTE: Posso deixar as perguntas difíceis para o fim? Ou como me perguntam os meus alunos em cada exame: «Posso alterar a ordem das perguntas»?..
Penso que se pode dizer, a partir da citação de Nadine Gordimer, que um poema é uma espécie de pedra atirada ao charco da linguagem: ouvimos e vemos o embate, não sabemos bem como se vão propagar as ondas concêntricas e até onde. No entanto, num grande poema, fica a sensação de que a pedra vai alterar qualquer imo, qualquer âmago, que é como quem diz agitar algo lá no lodo, no fundo do charco. É essa a profundidade de um bom texto poético; a sensação de que deixa lastro. E é isto; agora responder à pergunta, isso é que não, assobio, pois, para o lado. Responder? Responda quem lê, ora.

LÓGOS: “Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo” (John keats). Qual é a tua opinião sobre esta floresta de poetas que cresce imparável numa eterna falsidade de vozes?

RITA TABORDA DUARTE: O argumento de autoridade de Keats não me convence por aí além. A poesia que surge assim naturalmente, numa espécie de messiânica fatalidade ou aparição mística, pode dar poetas mais inspirados do que inspiradores, para usar a expressão de Éluard com que se inicia a entrevista. A poesia que me interessa nasce do espanto, de certa perplexidade perante as coisas do mundo que se nos aparecem, que nos confrontam; nasce de uma espécie de irritação contra a linguagem, que constrói o mundo à sua semelhança e imagem, é certo, mas que simultaneamente se revela pobre e rasa para o dizer nas suas complexidades e contradições e ambiguidades. Quanto à questão…na verdade estas perguntas parecem-me sempre uma rasteira. Quando penso na frase de Sartre que nos dizia que o inferno são os outros, não deixo nunca de ter esta incómoda consciência do inferno que eu —um outro para os outros—  posso ser também relativamente aos demais.. É importante ter isto em mente, com alguma regularidade… de resto, penso que os poetas têm uma enorme vantagem relativamente às árvores falsas, as de plástico: demoram muito menos tempo a desaparecer e reciclam-se com bem mais facilidade.

LÓGOS: A poesia é confissão? Ou uma filosofia do espírito que nomeia a vida?
           
RITA TABORDA DUARTE: Não sei se os padres aceitam poemas quando os fiéis se põem em genuflexão, às portas dos confessionários, mas a verdade é que eu percebo muito pouco, quase nada, dos rituais eclesiásticos. Aí, há que perguntar a quem de direito. Quanto à filosofia que me nomeia a vida, poderei dizer que é muito pouco poética e tendo a ver com o espírito, será essencialmente com o espírito de sacrifício. Primms uiuere, deinde philosophare. E à mesa prefiro enterrar os dentes no pão, no pão sem literatura, como diria o Luiz Pacheco. E no meio de tudo isto poetar, claro, de preferência do lado de fora da vida…da outra, a que tem menos sem filosofia do que contas por pagar.

LÓGOS: Nathalie Sarraute: “A poesia numa obra é o que faz aparecer o invisível.” Já algum crítico conseguiu evidenciar na tua obra o que pretendeste, deliberadamente, que permanecesse invisível numa primeira leitura?

RITA TABORDA DUARTE: Bem hajam os críticos que não andam a esgatanhar os poemas, à cata de implícitas intenções autorais que deliberadamente, ou não, o autor tivesse querido ocultar. Ora, acontece frequentemente (e já me aconteceu) descobrir-se uma referência, uma alusão velada, que, numa primeira leitura, pareceria estar escondida e que o acto crítico tornou evidente. Voltando à metáfora da pedra no charco, que vale para tudo e para o seu contrário (e curiosamente é sempre a um charco que a pedra vai parar, mesmo nestas coisas da poesia, nunca a um lago de águas límpidas), sempre é mais interessante quando o crítico mostra as águas mais turvas, ao arremeter ao poema pedregulho do seu olhar. Desse confronto, sim, é que podem resultar alguns salpicos e uma boa leitura crítica.  

LÓGOS: “A poesia não é uma questão de sentimentos, é uma questão de linguagem. É linguagem que cria sentimentos” (Umberto Eco). Consideras que a verdadeira poesia é uma arte cheia de regras e técnicas e que procura ter uma boa relação com os sentimentos?

RITA TABORDA DUARTE: Sou muito pouco platónica no que toca a essa versão de mundo (seja poético ou não), que contrapõe o verdadeiro ao falso e que embarca num maniqueísmo, em que me movo com certa dificuldade. Mesmo sabendo, intuitivamente, o que considero a grande poesia, dificilmente sou capaz de a descrever, com critérios sequer definíveis, quanto mais definitivos. O conceito de «grande poesia» pode ser, talvez, descrito através de metáforas (a poesia a fazer-se a si mesma); foi o que se buscou fazer (aproximações ao conceito de poesia), no fundo, com as citações (Eco, Sarraute, Keats, Éluard) de que, ao longo desta entrevista, se abusou em cada pergunta. Vivemos neste paradoxo em que a linguagem que diz o mundo cria em simultâneo esse mundo que, por seu turno, vai dizendo, e que por isso, de imediato, nos surge já de um modo diverso, exactamente porque foi dito. A resistência contra esta língua que constrói e diz mas que, ainda assim, ou por isso mesmo, fica aquém, é para mim uma boa definição de poesia. Mais do que o domínio de regras e técnicas, cada poema deve ser o resultado de um trabalho árduo (e perplexo) sobre a linguagem: há que conhecê-la bem, para a minar por dentro, como ela bem merece.

LÓGOS: És também autora de literatura para a infância, já com uma obra considerável. A tua linguagem poética influencia de algum modo a escrita de histórias para crianças?

RITA TABORDA DUARTE: Poderá parecer uma frase feita, mas, na realidade, não faço uma verdadeira distinção entre o que procuro na escrita poética e o que busco nos livros que escrevo para miúdos. Entre os meus livros infantis e a minha poesia, existirá a mesma pulsão: o mesmo espanto diante das palavras e a sua relação, estranha, tão estranha, com as coisas do mundo. O poeta é, no fundo, um escritor um bocadinho infantil, ou seja, necessita de ter, face à linguagem, a mesma atitude da criança, que adapta a língua que fala à lógica da sua interpretação do mundo. Trata-se de uma capacidade de receber a linguagem sem o lastro de um uso gasto, prefabricado, de acolher as palavras como se as ouvíssemos pela primeira vez. É isso que faz a criança perante a língua, perante o mundo. É o que a faz olhar para o símbolo de Lisboa e reconhecer no bojo da caravela a boca escancarada de um gigante; aquele mesmo princípio que a faz dizer «partida, "lagarta" [em vez de largada], fugida»; o mesmo princípio que a faz sorrir, quando alguém lhe fala das asas da chávena, quando toda a gente sabe, até ela, que uma chávena não pode voar. Quase nunca.

Biografia:

Rita Taborda Duarte nasceu em 1973. É poeta, crítica literária, professora do ensino superior e escritora de livros para a infância. Foi membro da Comissão de Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian e escreve regularmente sobre poesia e ensaio, nas mais diversas publicações. Tem integrado júris de prémios para originais de literatura infanto-juvenil (Prémio Branquinho da Fonseca – Expresso/Gulbenkian), de poesia e de ficção (Prémio PEN-Club português). Em 1998, publica o seu primeiro livro de poesia Poética Breve, Black Sun Editores, a que se seguiram outros dois: Na estranha Casa de um Outro e Dos Sentidos das Coisas (co-autoria de André Barata). Em 2003, vence o prémio Branquinho da Fonseca Expresso-Gulbenkian, com o livro A Verdadeira História da Alice. A partir daí, tem escrito com regularidade para crianças e jovens, contando com uma dezena de obras publicadas, muitas delas incluídas no Plano Nacional de Leitura.
Em 2015 publica o livro de poesia Roturas e Ligamentos (Abysmo) em parceria com André da Loba (ilustrações).
Certa vez, num encontro numa biblioteca escolar, um menino chamou-a «Escritora Infantil». Desde esse dia, assumiu o epíteto e diverte-se a brincar, infantilmente, com as palavras.

Poesia publicada:

Roturas e Ligamentos. Lisboa, Abysmo, 2015 (com ilustrações de André da Loba).
Elogio do Outono, Lisboa, o homem do saco, 2014 (concepção gráfica Luís Henriques).
Experiências Descritivas: Dos sentidos das coisas/Círculos, Lisboa, Editorial Caminho, 2007 (Co-autoria de André Barata, com ilustrações de Luís Henriques).
Na Estranha Casa de Um Outro: Esboço de uma biografia poética, Lisboa, Asa, 2006.
Poética Breve, Lisboa, Black Sun Editores, 1998.


quinta-feira, 21 de setembro de 2017

7 UNIVERSOS DE POESIA | LUÍS QUINTAIS

LÓGOS – Biblioteca do Tempo realizou uma série de entrevistas a 7 poetas portugueses, cujo questionário (com base em citações de autores universais) foi igual para todos excepto a última questão, mais pessoal. A particularidade deste projecto foca-se no facto de nenhum dos poetas contactados ter tido conhecimento das respostas dos seus pares. As 7 entrevistas serão posteriormente publicadas na revista LÓGOS – Biblioteca do Tempo.


LÓGOS: Paul Éluard disse (e cito de memória) que poeta é aquele que inspira, e não aquele que é inspirado. Ora, como parece haver mais “poetas” do que leitores de poesia, somos efectivamente um país de “inspirados”?

LUÍS QUINTAIS: Toda a poesia (toda a literatura) é interpelação. Nesse sentido, os poetas e os seus leitores coincidem também nesse ponto. São inspirados e inspiradores. O Éluard não tem razão. A afirmação de que há mais poetas do que leitores, de que somos um país de inspirados, só pode ser irónica. De facto, nunca se publicou tanta poesia como hoje. Tanta poesia má, diga-se. Aliás, os melhores poetas do nosso tempo devem estar soterrados sob pilhas de lixo. Como não sabemos o que é poesia (mesmo que sejamos capazes de reconhecer o que é má poesia), com tanto lixo ficamos a saber ainda menos. Ou seja, é o desnorte total. O marasmo. E veio para ficar. 

LÓGOS: “O que distingue um grande poeta é o facto de ele nos dizer algo que ninguém ainda disse, mas que não é novo para nós.” Partindo deste pressuposto de Ortega y Gasset, qual é o teu «ponto de partida» para a construção de um poema?

LUÍS QUINTAIS: Não tenho um ponto de partida. Não existe conhecimento, apenas aventura e experiência (diz, mais ou menos sob esta forma, Virginia Woolf em The Waves). Ou seja, os poemas são o resultado de uma longa e densa imersão na linguagem. Como diz também Auden, o poeta é alguém profundamente apaixonado pela linguagem. Acho que é basicamente isso que me move, o que não constitui um ponto de partida.

LÓGOS: A maior verdade de um poeta é pôr o mundo a falar nos seus versos? É uma tragédia se não o entendem no seu tempo? Tens consciência da «utilidade» da tua poesia no mundo?

LUÍS QUINTAIS: Acho que não tem utilidade nenhuma. A mim, preenche-me os dias. Ler poesia e escrever poesia são parte dessa aventura na linguagem. Aliás, o que me interessa é inútil. Não gosto particularmente desse mundo de utilidade e função que parece estar por todo o lado, com resultados catastróficos para a inteligência, sensibilidade e bom senso.

LÓGOS: “O poeta não exagera profundamente, mas amplamente” (Mattew Arnold). És tentado, como poeta, a destruir a linguagem para criar outra linguagem?

LUÍS QUINTAIS: É impossível criar outra linguagem. Não existem linguagens privadas, como nos mostrou Wittgenstein. As palavras estão gastas. É a nossa aceitação desse dado que nos pode tornar, hoje, poetas mais atentos às possibilidades da linguagem. Já tudo foi dito, redito, feito, refeito.

LÓGOS: Nadine Gordimer disse que “A poesia é ao mesmo tempo um esconderijo e um altifalante”. Quanto da tua poesia é mistério e «leitura infinita»?

LUÍS QUINTAIS: Ela permanece um mistério para mim desde o início. Eu não controlo os meios de expressão integralmente, e tudo o que escrevo é também uma discussão ou interpelação dessa falha. Uma falha que habita a linguagem. Que habita o pensamento. Uma falha é uma abertura para esse infinito, para essa possibilidade.

LÓGOS: “Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo” (John keats). Qual é a tua opinião sobre esta floresta de poetas que cresce imparável numa eterna falsidade de vozes?

LUÍS QUINTAIS: É ruído, confusão, marasmo. Apesar de defender que a poesia é uma manifestação do irracional ou do inconsciente – «Poetry must be irrational» (Wallace Stevens) –, eu não acredito muito na espontaneidade. Hoje há muita espontaneidade, para não dizer impulsividade. Daí o carácter manifestamente falso e equívoco do que aparece sob o rótulo de poesia.

LÓGOS: A poesia é confissão? Ou uma filosofia do espírito que nomeia a vida?

LUÍS QUINTAIS: Pode ser isso tudo, e muito mais. Em boa verdade não sei. Sei apenas que é uma procura na linguagem, e que essa procura não é um derrame (o que, por vezes, aparece sob a designação de confissão) nem é filosofia, isto é, uma indagação em nome do conhecimento ou da virtude. Seja como for, há poetas confessionais e poetas com preocupações filosóficas que me interessam muito.

LÓGOS: Nathalie Sarraute: “A poesia numa obra é o que faz aparecer o invisível.” Já algum crítico conseguiu evidenciar na tua obra o que pretendeste, deliberadamente, que permanecesse invisível numa primeira leitura?

LUÍS QUINTAIS: Nada se esconde na minha poesia. Tudo está à superfície. Mesmo o invisível ou o opaco é aparente. Depois há significados partilhados, nomes, objectos, referências intertextuais, situações, contextos. Até aí chegam sempre os leitores atentos (um crítico não é mais do que isso). O invisível é visível sem mediação.

LÓGOS: “A poesia não é uma questão de sentimentos, é uma questão de linguagem. É linguagem que cria sentimentos” (Umberto Eco). Consideras que a verdadeira poesia é uma arte cheia de regras e técnicas e que procura ter uma boa relação com os sentimentos?

LUÍS QUINTAIS: Como disse atrás, a poesia é experiência na linguagem. Nada escapa à linguagem. A poesia pode trair as regras e as convenções linguísticas (sintáticas, semânticas), mas não pode trair a experiência na linguagem. Como deve ter reparado, prefiro falar de experiência (e não de sentimentos).

LÓGOS: Que recordações mais te marcaram na tua passagem pelo D.N Jovem, tendo em conta que eras nesse tempo (década de 80) um jovem poeta que revelava publicamente os seus primeiros poemas?

LUÍS QUINTAIS: O DN Jovem está muito associado à minha vida em Lisboa nos idos anos oitenta. Tempos de uma certa inocência que, para o bem e para o mal, desapareceu quase integralmente. Aos vinte anos é-se muito inocente.

Biografia:

Luís Quintais nasceu em 1968. Poeta, ensaísta, antropólogo e professor junto da Universidade de Coimbra. Publicou treze livros de poesia: A imprecisa melancolia (1995); Lamento (1999); Umbria (1999); Verso antigo (2001); Angst (2002); Duelo (2004); Canto onde (2006); Mais espesso que a água (2008); Riscava a palavra dor no quadro negro (2010); Depois da música (2013); O vidro (2014); Arrancar penas a um canto de cisne, Poesia 2015-1995 (2015) e A noite imóvel (2017). Foi distinguido com os prémios Aula de Poesia de Barcelona, PEN Clube Português, Prémio Fundação Luís Miguel Nava, Prémio Fundação Inês de Castro, Prémio António Ramos Rosa, e Prémio Associação Portuguesa de Escritores (Teixeira de Pascoaes). A sua página pessoal na web pode ser encontrada em: 

luisquintaisweb.wordpress.com

terça-feira, 19 de setembro de 2017

7 UNIVERSOS DE POESIA | AMADEU BAPTISTA

LÓGOS – Biblioteca do Tempo realizou uma série de entrevistas a 7 poetas portugueses, cujo questionário (com base em citações de autores universais) foi igual para todos excepto a última questão, mais pessoal. A particularidade deste projecto foca-se no facto de nenhum dos poetas contactados ter tido conhecimento das respostas dos seus pares. As 7 entrevistas serão posteriormente publicadas na revista LÓGOS – Biblioteca do Tempo.


LÓGOS: Paul Éluard disse (e cito de memória) que poeta é aquele que inspira, e não aquele que é inspirado. Ora, como parece haver mais “poetas” do que leitores de poesia, somos efectivamente um país de “inspirados”?

AMADEU BAPTISTA: Não acredito na inspiração. O que faço com a minha criatividade advém de um longo e aturado trabalho, que se tem vindo a desenvolver durante toda a minha vida. O toque de diferença reside, talvez, na obstinação com que me meto à tarefa de escrever, o que é, presumo, pouco comum, ou só comum aos artistas.

LÓGOS: “O que distingue um grande poeta é o facto de ele nos dizer algo que ninguém ainda disse, mas que não é novo para nós.” Partindo deste pressuposto de Ortega y Gasset, qual é o teu «ponto de partida» para a construção de um poema?

AMADEU BAPTISTA: Parto para o poema em busca do fascínio, porventura em busca do que também possa ser novo na minha experiência. Para me surpreender e para me fascinar; e para meu gozo pessoal, sem dúvida. Se essa busca resultar, fico de bem comigo – e melhor ficarei se o resultado coincidir com a experiência do potencial leitor.

LÓGOS: A maior verdade de um poeta é pôr o mundo a falar nos seus versos? É uma tragédia se não o entendem no seu tempo? Tens consciência da «utilidade» da tua poesia no mundo?

AMADEU BAPTISTA: Não tenho verdades e não sou dos que definem a poesia como uma inutilidade, nunca fui. Cada um dos nossos gestos empreende sempre alguma coisa, mesmo que venha para destruir, mesmo que almeje à destruição. Por mim, dou apenas o que posso e sei, um modesto contributo para a minha satisfação e a satisfação dos outros, se é que isso é possível.

LÓGOS: “O poeta não exagera profundamente, mas amplamente” (Mattew Arnold). És tentado, como poeta, a destruir a linguagem para criar outra linguagem?

AMADEU BAPTISTA: Escrevo com a minha linguagem. A minha linguagem resulta de uma dialética que tem como pressupostos a construção e a desconstrução. Exactamente como me foi dado observar na aprendizagem da vida. Pensar, escrever e rasurar – um ciclo que nunca se completa, mas que é a pedra de toque do que faço.

LÓGOS: Nadine Gordimer disse que “A poesia é ao mesmo tempo um esconderijo e um altifalante”. Quanto da tua poesia é mistério e «leitura infinita»?

AMADEU BAPTISTA: Mais uma definição de poesia, esta – como milhões de outras, que já foram enunciadas. Quando Safo saltou da Falésia Branca em Lefkada saberia o que fosse a poesia a ponto de a definir? Não será o mistério o que todos procuram, poetas ou não? Convivo mal com o meu mistério, só isso sei; mas é a leitura infinita que me resta, a frágil tábua a que precariamente me agarro para me iludir e para me desiludir.

LÓGOS: “Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo” (John keats). Qual é a tua opinião sobre esta floresta de poetas que cresce imparável numa eterna falsidade de vozes?

AMADEU BAPTISTA: Adoro bosques e florestas, recintos sagrados. E adoro clareiras. Quanto aos outros poetas, não me cabe julgá-los e incito-me a aceitar cada um o mais abrangentemente possível. Quem sabe se um deles consegue ou conseguirá acertar o verso que eu nunca acertei…

LÓGOS: A poesia é confissão? Ou uma filosofia do espírito que nomeia a vida?

AMADEU BAPTISTA: É isso, e uma via para o auto-conhecimento. E o mais que se não sabe o que seja, e o que é, e o que não é, etc., etc.

LÓGOS: Nathalie Sarraute: “A poesia numa obra é o que faz aparecer o invisível.” Já algum crítico conseguiu evidenciar na tua obra o que pretendeste, deliberadamente, que permanecesse invisível numa primeira leitura?

AMADEU BAPTISTA: Não tenho o que se chama grande fortuna crítica. Mas já tive a sorte de ter críticos que me mostraram o que eu não vi no que deixei escrito. Não o que escondi deliberadamente, mas o que a minha ignorância não foi capaz de surpreender. E ainda bem que assim aconteceu.

LÓGOS: “A poesia não é uma questão de sentimentos, é uma questão de linguagem. É linguagem que cria sentimentos” (Umberto Eco). Consideras que a verdadeira poesia é uma arte cheia de regras e técnicas e que procura ter uma boa relação com os sentimentos?

AMADEU BAPTISTA: A poesia é uma técnica, e é uma atitude, e é uma caixa de ressonância dos sentimentos. Tudo está ligado. Não concebo uma obra de arte que não toque o coração, de alguma forma. Assim como não concebo que uma obra de arte não tenha subjacente alguma técnica.

LÓGOS: O reconhecimento é a eternidade do poeta?

AMADEU BAPTISTA: Respondo assim: 70 anos após a morte de Shakespeare a sua obra estava praticamente esquecida; por outro lado, Guimarães Rosa dizia só entender a eternidade como um período de 600 anos, com início no dia da sua morte. Por mim, não acredito numa coisa nem noutra: nem no reconhecimento, que nunca senti (nem creio que venha a sentir, ou acredite que tal me interesse), nem na eternidade, pela simples facto de quando a chegar eternidade eu já não estarei cá há muito tempo.

Biografia:
Amadeu Baptista nasceu no Porto, a 6 de Maio de 1953.

OBRAS
Poesia
As Passagens Secretas. Coimbra, Fenda Edições, 1982
Green Man & French Horn. In Vários, A Jovem Poesia Portuguesa /2. Porto, Limiar, 1985.
Maçã. Prémio José Silvério de Andrade – Foz Côa Cultural, 1985. Porto, Limiar, 1986.
Kefiah. Viana do Castelo, Centro Cultural do Alto Minho, 1988.
O Sossego da Luz. Porto, Limiar, 1989.
Desenho de Luzes. Corunha, Amigos de Azertyuiop, 1997.
Arte do Regresso. Pelo primeiro capítulo deste livro, Cúmplices, recebeu o Prémio Pedro Mir, na  categoria de Língua Portuguesa, promovido pela revista Plural, da Cidade do México, em 1993. Porto, Campo das Letras, 1999.
As Tentações. Santarém, Edição «O Mirante», 1999.
A Sombra Iluminada. In Vários, Douro: Um Percurso de Segredos… S/l, Instituto de Navegabilidade do Douro, Campo das Letras, 2000.
A Noite Ismaelita. Guimarães, Pedra Formosa, 2000.
A Construção de Nínive. Porto, Edições Mortas, 2001.
Paixão. Prémio Vítor Matos e Sá, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2001 e Prémio Teixeira de Pascoaes, 2004. Porto, Afrontamento, 2003.
Sal Negro. Com fotografias de Rosa Reis, sob o título Sal Branco. Almada, Íman Edições, 2003.
O Som do Vermelho – Tríptico Poético sobre Pintura de Rogério Ribeiro. Porto, Campo das Letras, 2003.
O Claro Interior. Prémio de Poesia e Ficção de Almada – 2000 / poesia. Almada, Íman Edições, 2004.
Salmo. Porto, Edições Asa, 2004.
Negrume. Lisboa, & Etc, 2006.
Antecedentes Criminais (Antologia Pessoal 1982-2007). Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições, 2007.
O Bosque Cintilante. Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, 2007. Vila Nova de Azeitão, edição das Juntas de Freguesia de S. Lourenço e S. Simão, 2007.
O Bosque Cintilante. Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama, 2007. Maia, Cosmorama, 2008.
Outros Domínios (Clamor por Florbela Espanca). Prémio Literário Florbela Espanca, 2007. Vila Viçosa, edição da Câmara Municipal de Vila Viçosa, 2008.
Sobre as Imagens. Prémio Internacional de Poesia Palavra Ibérica, 2008. Maia, Cosmorama, 2008.
Poemas de Caravaggio. Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, 2007 e Prémio Literário João Lúcio, 2008. Maia, Cosmorama, 2008
Os Selos da Lituânia. Prémio Edmundo Bettencourt/Cidade do Funchal – 2008. Lisboa, & Etc, 2008.
Doze Cantos do Mundo. Prémio Oliva Guerra, 2008. Sintra, edição da Câmara Municipal de Sintra, 2009.
Escalpe. Lisboa, & Etc, 2009.
O Ano da Morte de José Saramago. Lisboa, & Etc. 2010.
Outros Domínios (Clamor por Florbela Espanca). Prémio Literário Florbela Espanca, 2007. Coimbra, Temas Originais, 2011.
Açougue. Lisboa, & Etc, 2012.
Atlas das Circunstâncias. Prémio Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage, 2009. Póvoa da Santa Iria, Lua de Marfim, 2012.
Fragmentos Tunisinos. Nazaré, Volta d’Mar, 2014.
Sistina. Prémio Literário António Cabral, 2011. Porto, Edita-me, 2014.
Um Pouco Acima da Miséria. Prémio de Poesia Cidade de Ourense, 2013. Lisboa, &Etc, 2014.
Vida Breve. Fafe, Labirinto, 2014.
Fragmentos de Veneza. Póvoa da Santa Iria, Lua de Marfim, 2016.
O Arco Sírio. Póvoa de Santa Iria, Lua de Marfim, 2016.
Caudal de Relâmpagos (Antologia Pessoal 1982-2017).  Viseu, Edições Esgotadas, 2017.

Prosa:
Estrela De Bizâncio. Prémio de Poesia e Ficção de Almada – 2005 / prosa. Torres Vedras, Edições Livro do Dia, 2010.

Infanto-juvenil:
Os Cavalos a Correr. Com ilustrações de Estela Baptista Costa. Vila Nova de Gaia, Trinta por uma Linha, 2008.
O Sonho do Elefante Tomé. Com ilustrações de Isabel Rocha Leite. Porto, Trinta por uma Linha, 2009.
Zoo Musical. Com ilustrações de Ana Biscaia. Vila Nova de Gaia, Calendário de Letras, 2010.
O Poeta e o Burro. Com ilustrações de Raquel Pinheiro. Matosinhos, QuidNovi, 2010.
A História Maravilhosa dos Três Pastorinhos de Fátima. Com ilustrações de Raquel Pinheiro. Matosinhos, QuidNovi, 2011.

Poesia - livros publicados no estrangeiro:
Negrume. São Paulo, Brasil, Lumme Editor, 2007.
Balada da Neve e Outros Poemas. Maputo, Moçambique, edição da Escola Portuguesa de Moçambique, 2007.
Açougue. Prémio Espiral Maior, 2008. Culleredo, Galiza, Espanha, Espiral Maior, 2008.
Um Pouco Acima da Miséria. Prémio de Poesia Cidade de Ourense 2013. Galiza, Espanha, Culleredo, Espiral Maior, 2014.

Inédito:
Ondina. Prémio Literário Maria Ondina Braga, 2017.

Organização de antologias:
Quanta Terra!!! – Poesia e Prosa Brasileira Contemporânea. Almada, Casa da Cerca, 2001.
Álbum de Acenos – Antologia de Poesia e Fotografia. Almada, edição Imaginarte, 2001.
Poesia Digital – 7 poetas dos anos 80. Em colaboração com José Emílio-Nelson. Porto, Campo das Letras, 2002.
Divina Música – Antologia de Poesia sobre Música. Viseu, edição do Conservatório Regional de Viseu, 2009.

Colaboração dispersa em jornais, revistas, livros colectivos e antologias nos seguintes países; Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, E.U.A., Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, Luxemburgo, México, Portugal, Roménia e Uruguai. Alguns dos seus poemas foram traduzidos para alemão, castelhano, catalão, croata, francês, hebraico, inglês, italiano e romeno. Tradutor de poetas espanhóis, gregos e escandinavos. É membro da Associação Portuguesa de Escritores e do PEN Clube Português.

https://escritores.online/escritor/amadeu-baptista/ 

LÓGOS 10 - MAIO 2022 (ÍNDICE)