sábado, 20 de abril de 2019

A FOTOGRAFIA DE UMA DEMOCRACIA ENCENADA


25 de Abril de 1974. Um dia ameno que parecia não mais acabar, infinito como o céu que transbordava esperança. A abóbada azul clara, cor da narrativa da liberdade. O ar livre e libertador, sobre as cabeças de todos nós, os que vivenciámos esse dia. Eu tinha apenas 15 anos e não percebi muito bem o alcance da Revolução dos Cravos, mas andei com os outros que andavam na rua, empunhando cartazes e gritando palavras de ordem. Guardei um desses cartazes, o meu preferido, na parede do meu quarto, durante muito tempo. Sabia-o de cor, era a minha bandeira de Abril: de olhos fechados, recordo um fundo azul onde se inscrevia a vermelho o nome do meu país e o dia que o definiu: Portugal – 25 abril 1974. Vejo a imagem de um menino belo como um pequeno anjo, de pé, descalço, a pele clara e os cabelos louros encaracolados, vestido com roupas sujas e esfarrapadas: é o protagonista daquela cena; três mãos (onde se percebe a indumentária dos três ramos das Forças Armadas) seguram firmemente uma arma apoiada na vertical e o menino pequenino esforça-se para colocar um cravo vermelho no cano da arma, tal como lhe pediram para fazer. Sinto que ele quer obedecer, e obedece porque todos queremos obedecer àquela nova ordem das coisas, como se fossemos crianças crédulas e inocentes: caía a Ditadura e renascíamos livres, os novos e os velhos, os militares, os trabalhadores, os estudantes, os homens e as mulheres de todas as condições sociais. Não sabíamos naquele dia que afinal iriamos continuar a obedecer. No entanto, a fotografia apresenta uma rara e criativa mudança de paradigma: o instrumento bélico é agora uma jarra de flores. E isso é possível?

Bilioteca Nacional, acervo de cartazes:
Portugal 25 Abril 1974/Sérgio Guimarães/Lisboa

Onde andará o Diogo, a nossa "bandeira" de Abril? Há uns anos, foi tornado público que ele estaria a viver numa casa de tijolos vermelhos e jardim, no sul do Tamisa, em Londres, sendo um homem de família e director financeiro de uma empresa de distribuição... Um homem de "sucesso"?...

Façamos então uma viagem ao passado e entremos dentro da fotografia que se tornou o símbolo da Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974. A criança pequena chega ao estúdio fotográfico acompanhada pela mãe e pelo pai, ambos visivelmente orgulhosos, pela expectativa do acontecimento que se seguirá. O menino está entusiasmado. Disseram-lhe que vai tirar uma fotografia muito importante, mas que tem de fazer exactamente o que lhe pedirem, tem que obedecer. Num espaço mais reservado, despem-lhe as suas roupas janotas de menino rico, as quais são substituídas por outras, sujas e esfarrapadas. Descalçam-lhe os sapatos e as peúgas. Ajeitam-lhe os lindos caracóis louros. Está finalmente pronto. O menino rico está agora disfarçado de menino pobre. O menino de caracóis louros e roupa esfarrapada, descalço (é importante que se repitam estes pormenores), chama-se Diogo Bandeira Freire e tem 3 anos. Foi fotografado por Sérgio Guimarães, a enfeitar o cano de uma G3 com um cravo vermelho. O simbolismo da imagem resultou em pleno e perdurou no tempo: um golpe publicitário de uma Democracia encenada que para sempre fará parte da nossa memória particular e colectiva. Mas fomos todos enganados. Na verdade, Diogo não era o menino de classe humilde que o cenário da fotografia sugeria. Como o seu nome indica, é filho de Pedro Bandeira Freire que, naquela altura, era o proprietário dos cinemas Quarteto e a sua família vivia de acordo com um estilo de vida burguês.

Em 2006, aquando das comemorações do dia 10 de Junho, o Presidente da República Aníbal Cavaco e Silva, encontrou-se com Diogo Bandeira Freire, na época com 35 anos, em Serralves, no Porto, para o homenagear. Ficámos então a saber que a
té àquela data Diogo nunca tinha votado, nem em Portugal nem em Inglaterra, mas afirmava envergonhar-se desse facto.
Numa entrevista concedida ao Correio da Manhã, em 2010, surgiram as seguintes questões, onde Diogo admite a sua falta de interesse pelo tema:
«CM – “25 de Abril, sempre.” O que significa para si?
DBF – Nunca pensei nisso, mas se o 25 de Abril representa democracia, liberdade e a consciencialização das pessoas sobre deveres, como o de votarem, a frase é válida.
CM – Mas já a tinha ouvido?
DBF – Já, mas nunca tinha pensado sobre ela. Há milhentas maneiras de interpretá-la: se significa nacionalizar todas as indústrias, tirar os bens às pessoas, não muito obrigado. O 25 de Abril, de certa forma, também tem duas faces.»

Das muitas faces que o 25 de Abril de 1974 desde logo exibiu, realço a da própria fotografia simbólica de Diogo Bandeira Freire, uma das primeiras ficções históricas do Dia da Liberdade, da qual resultou de uma encenação irónica da Democracia: um menino rico a fazer de conta que era pobre. Apesar de todo o Povo estar na rua – os pais, as mães e os seus filhos – ninguém se lembrou de dar protagonismo a uma criança de origem humilde, ou seja, ao Povo. E assim, dificilmente posso admitir que num dos primeiros actos dessa peça monumental que foi a Revolução, tenha existido um 25 de Abril destinado às classes desfavorecidas – “O Povo é quem mais ordena”, mas só às vezes, como se foi verificando ao longo dos anos. Em palco, ainda é possível assistirmos hoje ao grande evento que é esse “Teatro” das Comemorações do Dia da Liberdade. Mas o rescaldo da festa é o que já existia antes: “eles” – o Governo – é que têm o poder e não sabem governar, diz o Povo (ainda) sofredor. Daí o estado actual deste massacrado Portugal.

Mas ainda bem que os Capitães de Abril nos ofereceram a Revolução dos Cravos. Encheram-nos de esperança pela constituição efectiva de uma Democracia onde todos podemos exercer plenos direitos de cidadania. Esta foi e é a ideia fundamental que poderá condicionar as nossas vidas, num sentido de intervenção positiva. No entanto, depois de tantos anos, causam mau estar e até alguma perplexidade inúmeros “cenários” e “figurantes” da sociedade portuguesa onde impera a corrupção e a pobreza, onde muitos políticos fazem de conta e nós fechamos os olhos porque estamos fartos de esperar uma Democracia mais democrática que tarda em chegar, estamos cansados de obedecer. Mas este é um outro 25 de Abril. Afinal de contas, é ainda necessário escrever outra narrativa da liberdade, mais justa e verdadeira., sem armas, sem cravos e sem bandeiras fictícias.

Adília César, in Algarve Informativo Nº 198

sábado, 6 de abril de 2019

FRIEDRICH, O PASTORZINHO


«A vida tornou-se-me leve, a mais leve, quando exigiu de mim o mais pesado.»
Nietzsche, Ecce homo

1844 e a criança é o filho primogénito no pequeno colo, na pequena casa, na pequena aldeia. A janela aberta de par a par recebe a brisa do outono e convida o menino a fazer voar as suas ideias pelo mundo inteiro. Friedrich.

1855 e o menino lia e escrevia compulsivamente. Saber mais, fazer melhor, ser o seu próprio pai severo e exigente. Anos e mais anos. Depois, a música poderosa de Wagner e a filosofia pessimista de Schopenhauer indicam o foco de luz, a matéria pensante contida na sua primeira obra: O Nascimento da Tragédia, o prenúncio de tudo.

1879 e Friedrich já não era Friedrich. Ele conhecera o olho do abismo e transformara-se no próprio abismo, caindo naquela monstruosidade muito devagar. «Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para ti». E ele ouvia este chamamento abismal e profundo; caía numa realidade supra-sensível imaginada pelos idealistas, um mundo racional e moral. Mas não, afinal não existia sequer o mundo das aparências. Definitivamente, já nada existia. Apenas ir e vir de nenhum sítio e para nenhuma parte, o Eterno Retorno: oh eternidade… O inverno ao sul e o verão ao norte, assim, em círculos concêntricos e eternos feitos de deterioração. Uma combinação hipnótica para a sua a-realidade, a sua não-vida.

Mas eu sou ainda eu a viver a minha vida assim uma e outra vez, eternamente?

Nietzsche_Nietzsche fotografado por Hans Olde no verão de 1899

1885 e Also spratch Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen. Quem és tu, Zaratustra? Porque falas assim, para todos e para ninguém? E se o além-do-homem é uma transição entre as linhas da morte de deus? És um preguiçoso, falas, falas, mas não dizes nada. Olhas o sol ao amanhecer vindo do fundo do horizonte como se fosse uma poderosa entoação da melodia wagneriana da vitória. Mas é apenas a simplicidade do dia não eterno.


1889 e Friedrich habita o quarto do delírio. Massacra as teclas do piano rangendo melodias macabras. Subitamente, levanta-se e escreve palavras perturbadas em papéis espalhados por todo o quarto: cartas, prefácios, notas, panfletos, irracionalidades, poemas, epílogos, pensamentos filosóficos, heresias. Ele é o crucificado, o assassino e grita Arianna ich liebe dich. O amor soa bem melhor noutras línguas, noutras salivas pérfidas. A canção que trauteia continuamente é um afecto que se envolve no lençol dos mortos. Percorre sem destino as ruas de Turim e abraça cavalos açoitados por cocheiros. Não há regresso desse lugar, dessa língua demente, dessa escrita desfigurada. Ainda hoje o cavalo de Turim vagueia repetidamente os dezoito minutos de cena no filme do genial Béla Tarr.

1897 e o colo da mãe é ainda o néctar que lhe corre nas veias, mas os seus pensamentos são como uma lucidez encarnada na demência pensada, falada e escrita. Friedrich é uma sombra no corpo da humanidade, um olho branco que se perdeu no abismo a apontar para o vazio da alma. Ele pensa a poesia de outrora. Queria não ter medo. Porque um poema é sempre demente ainda que calado em murmúrio traiçoeiro. Suster a respiração do poema e ele a cair em câmara muito lenta. Não há forças de gravidade no plano irracional, mas quando cai o poema parte-se devagar e eu parto-me com ele. Às vezes conserto o poema com a baba da minha demência e ele aceita o curativo, entende a sua própria resignação como vitória das palavras humedecidas. Mas não. É apenas um episódio surreal: um triste e anónimo poema colado com cuspo. Eu, cada vez mais partido. E não consigo consertar-me https://www.facebook.com/TheQuintessence1/videos/2122410314717034.

1890 e o homem já não é o homem: o corpo de Friedrich era, agora e definitivamente, o seu post-scriptum; o espírito retorna à origem, pastoreia gestos de aprendiz na toca da loba. E pergunta:
Quem fez o sol e as estrelas do céu?
Quem implantou nas pessoas a sua natural bondade e justiça?

É o silêncio e a leveza de deus que respondem. Oh meu deus tão calado e ausente.


REVISTA LÓGOS - Biblioteca do Tempo Nº 4

Direcção editorial: Adília César | Fernando Esteves Pinto
Assistente editorial: Adão Contreiras
Imagem de capa e ilustrações: Eva Nunes
Concepção gráfica: Inês Ramos
Género: conto * ensaio * depoimento * entrevista * feminino escrito - poesia * ilustração
Formato: 21/14,5 cm
Nº págs: 192

Colaboram neste número: Adília César, Ana Mafalda Leite, Ana Marques Gastão, Armandina Maia, Eva Nunes, Gisela Gracias Ramos Rosa, Lídia Jorge, Patrícia de Jesus Palma, Rosa Alice Branco, Rosa Oliveira e Sara Marina Barbosa. 


LÓGOS 10 - MAIO 2022 (ÍNDICE)