sábado, 27 de julho de 2019

UMA VIDA SOBRE RODAS - ORLANDO RIBEIRO CÉSAR (1933 - 2006)


Resta essa imobilidade, essa economia de gestos,
essa inércia cada vez maior diante do infinito.

Vinicius de Moraes

Escultura oferecida por "Vitor" (Serpa)

Não posso limitar a minha existência a este pano de fundo do minimamente aceitável, dizias. Então, eu deixava-te cair naquele estado negativo de lamento, apesar do amor que recebias e que já não conseguias retribuir. Não havia qualquer dúvida sobre a tua condição, foste vítima de uma qualquer circunstância do destino, completamente alheia à tua vontade ou acção intencional, logo, não te podia ser atribuída. Há uma relação de causa-efeito que não me pertence e que não mereço, dizias. Sim, a paraplegia não é uma doença, mas é uma tortura.

Todos os dias nasce e morre alguém. Assim, a finitude da vida está intimamente ligada à sua própria eternidade, ao longo de uma espiral de acontecimentos em sequência, na linha do tempo. As relações activas e passivas de causa e efeito são, muitas vezes, inexplicáveis, intraduzíveis, inexprimíveis. Como explicar o teu acidente naquele dia? Como traduzir em novos hábitos a vida que te era agora possível viver? Como exprimir as emoções contraditórias em relação ao teu estado de paraplegia física a propagar-se na tua mente?

Tinhas 55 anos num belo domingo de inverno e não viste o muro a aproximar-se a uma velocidade vertiginosa. Era o infinito a chamar por ti e as rodas da tua Honda Gold Wing obedeceram cegamente, decerto contra a tua vontade. No momento do desastre, a tua linguagem transformou-se na replicação de um discurso deprimente e cansativo: a queda, a sexta vértebra seccionada, o corpo literalmente morto abaixo do ponto molestado. E os teus olhos tristes, vazios, eram duas rodas em permanente estado de rodagem doentia sobre os seus eixos.

Tantos amigos: vieram todos visitar-te. E todos eles te provocavam a mesma sensação de fracasso, a condenação à inércia e à economia de movimentos. Recordavam o tempo em que eras atleta de ciclismo de alta competição – as rodas sempre a rodar – e tu baixavas a cabeça. Relembravam o teu papel determinante na criação do Motoclube de Faro – as rodas sempre a rodar – e tu sorrias melancolicamente. Insistiam no tempo em que orgulhosamente conduzias a tua Honda Gold Wing, nada mais nada menos do que asas douradas para cumprir o propósito da tua vida sobre rodas – as rodas sempre a rodar – até que deixaram de aparecer.

O teu infortúnio foi o céu daquele belo domingo de inverno a desabar sobre os bichos que ficaram a morar na tua cabeça, a corroerem-te tudo por dentro, acima e abaixo do ponto da sexta vértebra seccionada. Tudo o que tu eras antes. E depois, limitámos a nossa existência a esse pano de fundo do minimamente aceitável: alimentar-te, lavar-te, vestir-te; ainda sobre rodas, as rodas da cadeira onde te sentávamos. O amor não o querias, já não o querias.

Desfile da 38ª Concentração Internacional de Motos (Faro)

Noutro belo domingo tão longe do teu – 21 de julho de 2019, dia do Desfile da 38ª Concentração Internacional de Motos do Motoclube de Faro – foi o tempo de ver, admirar e comover-me. Sei agora que estás em paz, porque todos os que vi a desfilar continuam a cumprir o propósito da tua vida e das suas próprias vidas sobre rodas, essas asas douradas do orgulho de ser motard. Nada mais nada menos, meu querido Pai.

Adília César

sábado, 20 de julho de 2019

O POUCO E O MUITO DE MINOU DROUET


Na verdade, você não pode encontrar um livro de Minou Drouet em qualquer livraria de Paris, nem mesmo o seu sucesso fenomenal Arbre, Mon Ami, que foi publicado há pouco mais de cinquenta anos - no começo de 1956 - pelo agressivo René Julliard, que no ano anterior havia conseguido um triunfo internacional com Bonjour Tristesse, de Françoise Sagan . Mas Sagan tinha dezoito anos; Minou tinha oito anos.
Robert Gottlied in “A Lost Child” (2006)


Minou nasceu em julho de 1947 e foi adoptada por Claude Drouet, professora particular e aspirante a poetisa. A menina evidenciava problemas sérios de saúde: era quase cega e comportava-se de modo muito alheado, tendo dificuldade em relacionar-se com as outras crianças. Diz-se que até aos seis anos de idade nunca pronunciou uma palavra. Talvez por estes motivos de recolhimento interior, as suas emoções eram dedicadas quase inteiramente à natureza – os pássaros e outros animais, a grande árvore do jardim. Claude Drouet amou aquela criança para além do esperado, acreditando que através desse amor seria possível transformar um bebé doentio e fechado numa menina saudável, feliz e criativa. Não se sabe bem como começou esse milagre do desabrochar, do despertar para o mundo. Toda a infância de Minou foi cercada de mistérios e ambiguidades, e vários médicos afirmaram que ela nunca seria uma criança normal.


Minou Drouet

Em 1954 teve início um processo extraordinário de desenvolvimento do caso Minou: por volta dos 8 anos de idade a criança começou as suas lições de piano com Ninette Ellia, a quem escreveu cartas e poemas; por sua vez, a tutora mostrou-as ao Professor Vallery-Radot da Academia Francesa, que ficou fascinado e dela falou ao editor René Julliard; este veio a conhecer Minou pouco tempo depois.  Entretanto, a menina fez uma cirurgia e recuperou a visão. Julliard fez uma edição privada de um livreto com uma selecção de poemas e de cartas de Minou e a controvérsia instalou-se. Os textos, de grande qualidade literária, implicavam indiscutivelmente a questão da sua autoria: seria a criança ou a mãe, uma poetisa considerada de segunda categoria? Um sem número de acções de diversos quadrantes da sociedade francesa e até internacional moveram todas as estratégias ao alcance numa tentativa de decifrar a personalidade poética de Minou Drouet: entrevistas à família, artigos de opinião, testes de competência. A 14 de janeiro de 1956, René Juillard publicou o primeiro livro de Minou – Arbre, Mon Ami – com 21 poemas e algumas cartas que ela escreveu para diversas pessoas: uma imaginação extravagante, metáforas poderosas, neologismos, uma enorme sensibilidade. E nada disto se sintonizava com uma menina daquela idade. Seria Minou Drouet uma criança prodígio ou uma farsa? O livro teve sucesso imediato, vendendo quarenta e cinco mil cópias em poucos meses. A batalha literária continuou por mais algum tempo, a par dos filmes, canções, entrevistas, programas de televisão. Um boom mediático e avassalador que explorou o caso Minou Drouet até à exaustão, com posições altamente contrárias evidenciadas por personalidades relevantes do meio cultural da época – escritores, jornalistas, críticos de arte. Nunca se chegou a uma conclusão válida.




“Eu era uma criança perdida, eu era apenas um animal patético, que crime cometi para ser perseguida desta maneira?”, perguntou ela. Mas não houve resposta. Depois de ter publicado um segundo livro de poesia em 1959 – Le Pêcheur de Lune – ela começou a desistir. Tentou escrever fábulas, romances, e também seguir carreira como cantora, estudou enfermagem, casou com o artista e cronista de rádio Patrick Font e divorciou-se de seguida. O impulso irresistível para escrever tinha-a abandonado aos 14 anos e pouco a pouco remeteu-se ao silêncio. Mas ela encontrou uma forma de sobreviver: deixou cair a Minou da infância e tornou-se Madame Le Canou, instalando-se na localidade de La Guerche-de-Bretagne – onde poucos habitantes conhecem o seu passado. Era o preço que estava disposta a pagar. 


Minou Drouet

É possível encontrar a bela mulher loira de 72 anos a fazer compras no mercado; já não escreve e recusa-se a dar entrevistas. Apetecia-me perguntar-lhe: “Minou Drouet, és um génio ou uma fraude?”, mas sei que não obteria resposta. Há machados de guerra que devem ficar enterrados. O caso Minou Drouet foi considerado o maior enigma literário do século XX.

Adília César

sábado, 13 de julho de 2019

O "EU" QUE LHE FUGIA SEMPRE


«O trabalho de Gaëtan é realizado contra qualquer ideia de tranquilidade, é feito Contra Mundum, não com uma vontade de ruptura, mas com o irresistível arrepio de quem passa sobre um gato, uma e outra vez, uma mão a contrapelo.»
João Pinharanda

Gaëtan Lampo Martins de Oliveira (1944 - 2019)

Ainda estou vivo. Vejo os meus inúmeros rostos, múltiplos da única pessoa que sou: Gaëtan.

O artista desenha representações do seu rosto e exibe uma actividade criadora peculiar, há um ensimesmamento que irradia continuamente de dentro para fora e de fora para dentro. O traço, os traços tão leves de todos os seus rostos, o risco, os riscos tão rápidos e violentos de todos os seus rostos. É uma obsessão descontinuada, uma procura da sua interioridade através do apelo à transgressão; mas não necessariamente, uma intenção de romper com o mundo que o rodeia. Antes, durante e depois da doença, o ensaio e o aperfeiçoamento desta arte da fuga: Gaëtan insiste na auto-representação do seu rosto e persiste sempre, numa espécie de encenação de si próprio, na procura das diferenças entre imagens sucessivas e na explicitação de matrizes literárias e cinematográficas, com vista à interpelação do espectador, que vê as máscaras que Gaëtan coloca não sobre o seu rosto mas em frente dele.

Procuro incessantemente as marcas do tempo no meu rosto quando eu era outro “eu” em comparação com o “eu” que sou agora. O meu gesto criador é o voo livre do pardal à solta, sem vontade de ir embora perante a janela aberta.

Todos os seus desenhos são o reflexo de uma observação demorada e detalhada, de uma interpretação da coisa vista – o “eu” daquele momento preciso – e inscrevem-se numa teoria da representação apropriada, totalmente isenta de quaisquer tiques de academismo ou vícios de um talento inato. Por isso, esquece a sua dominante mão direita e desenha apenas com a mão esquerda. O tempo e a memória fogem-lhe, mas voltam sempre nas ínfimas minúcias, nas pequenas circunstâncias físicas que Gaëtan percepciona no(s) rosto(s) e no(s) corpo(s): a apropriação e a possibilidade de projecção. A vida é apenas isto; e é também a doença, a finitude.

Procuro o último rabisco mas não consigo encontrá-lo. Olho-me ao espelho e lá está ele, mais um rosto, mais um “eu”, riscos violentos ornamentados com traços leves: vejo ainda a cópia sublinhada do que ainda sou, um homem vivo através da minha mão, e por fim, desistente nem sei bem do quê. Onde está, afinal, o que tanto procurei dentro e fora de mim? O que vos deixo é a minha busca incessante ao longo de muitos anos de trabalho intenso, nada mais do que isso. Mas não lhes chamem auto-retratos, por favor!


Gaëtan Lampo Martins de Oliveira (Luanda, 1944 – Lisboa, 2019): em 1978 expôs individualmente pela primeira vez na Galeria Módulo, e a partir dessa data realizou inúmeras exposições individuais e colectivas. Destaca-se a grande antológica feita no antigo Centro de Arte Moderna da Gulbenkian (1996), intitulada Terra de Ninguém e uma outra no museu do Chiado (2004). Preparava uma segunda individual importante para a Fundação Carmona e Costa. Entre as exposições colectivas que realizou destacam-se: a XI Biennale de Paris (1980); a LIS’81 (exposição destruída no incêndio do pavilhão de Belém, no mesmo ano); a V Trienal da Índia (1982), Tríptico, durante a Europália, no Museum van het Hedendaagse de Gent (1991); e O Rosto da Máscara, no CCB (1994). Gaëtan está representado em todos os grandes museus nacionais. Usando o nome Gaëtan Martins de Oliveira, trabalhou na Editora Ulisseia e assinou traduções de autores como António Tabucchi, Marguerite Yourcenar, Italo Calvino, Bruno Zevi. Morreu a 10 de julho de 2019, com 75 anos, vítima de doença prolongada.

Adília César
https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__210

sábado, 6 de julho de 2019

OS NOMES DAS COISAS


«Damos um nome às coisas que amamos.»
Gerry Durrell

Existem inúmeras teorias que explicam o aparecimento da linguagem, ou melhor, da língua, enquanto sistema de fala e de comunicação entre as pessoas. No seguimento do gesto rudimentar (comunicativo de uma acção, de um estado ou de um desejo), provavelmente surgiu a fala, a par do aperfeiçoamento dos sons emitidos pelo aparelho vocal. Na Idade da Pedra, esta necessidade de comunicação estaria relacionada com a sobrevivência das espécies. Um dia, deu-se a cada criança um nome próprio; primeiro, o nome teria uma forte carga conotativa; actualmente, os nomes próprios foram esvaziados do sentido etimológico, do conteúdo semântico, restando apenas uma espécie de invólucro opaco que oculta o original e verdadeiro significado do nome em si.

Quando penso nas palavras, admito imediatamente a sua condição de equilíbrio. São tão frágeis as palavras. Quando no início havia poucas coisas e não tinham nome, acredito que tudo estava no seu devido lugar. Depois, a existência de muitas coisas implicou dar um nome diferente a cada uma. Ela - a linguagem - pensa nas coisas e nas palavras das coisas. O significado de um nome é a essência da própria matéria viva ou inerte, ínfima ou gigantesca, particular ou universal. Afinal, tudo existe apenas porque pode ser nomeado. Ela - a linguagem - inventa um nome naquele preciso momento em que tem a certeza que não pode ser ouvida: é o princípio de si própria, a chamar a pedra, o fruto, o bicho, o homem, o medo. Na escuta da própria voz, o som do nome de qualquer coisa a esvaziar o sentido dessa palavra, a procura de uma essência anterior à substância da coisa, o entendimento da génese material e espiritual de um ser no campo mórfico de forças que sintonizam a expressão da energia. Uma espécie de autofagia do pensamento, que por sua vez renasce numa outra linguagem, cada vez mais viva por ser dinâmica.

Ela – a linguagem - sabe, antes de qualquer outro pensamento, que é um quase-nada, uma quase-vida, uma quase-viagem. Tantos caminhos, mas apenas um a percorrer, o da procura da sua própria interioridade e valor, através da declamação da palavra-chave da sua existência: emoção - a coisa e o seu próprio nome. As palavras não chegam para encontrar todos os caminhos comunicativos, mas mesmo assim, a palavra é dita e esvaziada do próprio som, teimosamente repete-se, multiplica-se, transforma-se noutros códigos. A coisa (pedra, fruto, bicho, homem, medo) é agora emoção pura, e a palavra do seu nome fará parte dela para sempre: por fim, no tempo em que escrevo esta crónica, é o meu dicionário pessoal e intransmissível. Tão frágeis as palavras, tão ténues os elos entre as palavras e as coisas. Elos torcidos enredam-se e partem-se; a energia impõe a sua inércia e tenacidade, mas mesmo assim, as coisas deixam de existir porque não há palavras para as nomear, quando a não-existência deixa de ter importância e a palavra cai num salto abismal sem rede, perde a forma enquanto mergulha no sentido esvaziado da matéria viva a perder a luz. Os nomes que dou às coisas são apenas um eco, uma maneira de “aparecer”, mas não de “ficar”.

É preciso fazer prevalecer o nome num significado “significante” para cada um de nós e há muito tempo que procuro organizar uma teoria: creio que é o amor que faz perdurar o nome. Dou um nome à minha filha e dou-lhe o meu nome. Dou um nome ao que sinto pelo homem que amo e amplio o meu nome com os nomes dele: engrandeço o meu dicionário pessoal imbuído de amor. "A importância dos nomes" foi o título dado por Adriana Freire Nogueira a um artigo que escreveu para o Cultura.Sul (p. 11), publicado a 19.01.2018. Gostei do texto, ilustrado por inúmeras referências literárias, algumas das quais desconhecia. Recordei então uma particularidade em relação ao meu nome da infância –Adília – que me incomodou durante muito tempo. Quis o destino que o meu pai, aos dezasseis anos, tivesse feito uma promessa, a qual envolvia uma irmã sua que estava doente desde os 5 anos com tuberculose e que, infelizmente, acabou por falecer pouco depois: se um dia fosse pai de uma menina, chamar-lhe-ia "Adília", em sua honra. E assim foi. 


A minha tia Adília César

Quando aprendi a escrever o meu nome completo, o meu pai contou-me o seu contorno peculiar: «Sabes, o teu nome não é um nome qualquer, estava guardado no meu coração.», disse ele. O que tornou esta história bastante delicada para mim, foi a partida que o mesmo destino me pregou: tendo em conta os apelidos do pai e da mãe da minha tia Adília e os do meu pai e da minha mãe, eu acabei por ter os mesmos nomes próprios e os mesmos apelidos do que ela. Uma sensação estranha, parecia que me equilibrava no fio da morte. Durante alguns anos, foi penoso carregar aquelas palavras tão importantes, escritas com letras maiúsculas e registadas na minha Cédula Pessoal: o desafio emocional de ser uma pessoa viva com o nome de uma pessoa morta. Assim, peço emprestadas as últimas palavras escritas por Adriana: «Por vezes, temos de fazer as pazes com o nosso nome. Eu já fiz.»


Adília César
in https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__209

LÓGOS 10 - MAIO 2022 (ÍNDICE)