terça-feira, 26 de setembro de 2017

7 UNIVERSOS DE POESIA | CASIMIRO DE BRITO

LÓGOS – Biblioteca do Tempo realizou uma série de entrevistas a 7 poetas portugueses, cujo questionário (com base em citações de autores universais) foi igual para todos excepto a última questão, mais pessoal. A particularidade deste projecto foca-se no facto de nenhum dos poetas contactados ter tido conhecimento das respostas dos seus pares. As 7 entrevistas serão posteriormente publicadas na revista LÓGOS – Biblioteca do Tempo.
 

LÓGOS: Paul Éluard disse (e cito de memória) que poeta é aquele que inspira, e não aquele que é inspirado. Ora, como parece haver mais “poetas” do que leitores de poesia, somos efectivamente um país de “inspirados”?

CASIMIRO DE BRITO: A chamada inspiração dá-me alegria, reconheço, mas a sua origem tem-se transformado ao longo do tempo. Acontece-me algo, sinto em cada momento, que pede para ser contado (ou cantado) de outra maneira. E algo é tudo quanto vem desse vasto mundo, seja ele o das coisas naturais (animais, vegetais, tutti quanti) ou das coisas humanas (arte, filosofia, ciência) — algo inesperado rebentou, e é preciso dizê-lo de outra maneira. É aqui que entra o ofício, as mãos e o rigor do artesão. Não me deixo sobrestimar em nenhuma circunstância.

LÓGOS: “O que distingue um grande poeta é o facto de ele nos dizer algo que ninguém ainda disse, mas que não é novo para nós.” Partindo deste pressuposto de Ortega y Gasset, qual é o teu «ponto de partida» para a construção de um poema?

CASIMIRO DE BRITO: Começa com uma espécie de música que, penso eu, não existe ainda. Sobre a música que flutua no poema, aquática flutuação entre a música mundi que o poeta ouviu e a música profana que o poema oferece a cada visitante, tudo está dito: ritmo, cadência, metro, aliteração, elipse, assonância, paranomásia, onomatopeia e, ao fundo de cada palavra, envolvendo-a de aura, o silêncio. Esse silêncio, mas posso chamar-lhe também vazio, que devolve a palavra a uma origem perdida; esse vazio que, assinalando o poder mágico da palavra no poema, a opõe ao ruído pragmático do medium linguístico quotidiano. Sobre a música do poema nada direi. Ou o poema é a sua própria boca ou não haverá leitura (legere é também "escolher", "roubar"), errância, interrogação.

LÓGOS: A maior verdade de um poeta é pôr o mundo a falar nos seus versos? É uma tragédia se não o entendem no seu tempo? Tens consciência da «utilidade» da tua poesia no mundo?

CASIMIRO DE BRITO: Deixei escrito há dezenas de anos que o meu poema servirá, espero, a quem for tão pobre como eu. Pobre no sentido de despojado. E é curioso que, por vezes, ficamos mais ricos — e não será apenas o meu caso — com a aproximação do pouco. O mundo está cheio de “muito” e é preciso esvaziá-lo quanto possível.

LÓGOS: “O poeta não exagera profundamente, mas amplamente” (Mattew Arnold). És tentado, como poeta, a destruir a linguagem para criar outra linguagem?

CASIMIRO DE BRITO: A construção de uma linguagem (sem a qual a poesia não existe) não pressupõe a destruição de outras linguagens. Disso se ocupará o tempo, a que alguns até poderão chamar de morte — coisa que evidentemente não existe. Quando falo na morte, canto. Canto a passagem do rio do tempo. Um tempo que não olha para trás mas deixa um rasto de luz. Ou é de barro?

LÓGOS: Nadine Gordimer disse que “A poesia é ao mesmo tempo um esconderijo e um altifalante”. Quanto da tua poesia é mistério e «leitura infinita»?

CASIMIRO DE BRITO: O meu trabalho acaba quando o poema (e tantas formas de poemas há) sai do seu casulo. Já não é meu. Tal como a espuma do mar já não pertence ao mar que dela se libertou. Tal como a “Paixão de São Mateus” (BWV 244), que neste momento me invade, já não pertence a J. S. Bach.

LÓGOS: “Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo” (John Keats). Qual é a tua opinião sobre esta floresta de poetas que cresce imparável numa eterna falsidade de vozes?

CASIMIRO DE BRITO: Não concordo, de modo nenhum, com as palavras de Keats. A poesia nem sempre surge “naturalmente”, pois a poesia não é só uma arte, á também um ofício. Requer rigor, e muito. Sabes quem foi o meu segundo mestre de poesia (o primeiro foi o António Aleixo, em cujo colo me sentei em criança): o oleiro da minha rua! Eu ficava a olhar fascinando a ver as suas mãos e os seus olhos modelarem um simples vaso. Talvez a poesia seja, antes de mais, um vaso.

LÓGOS: A poesia é confissão? Ou uma filosofia do espírito que nomeia a vida?

CASIMIRO DE BRITO: “Sinto até transbordar”, escreveu Pessoa. Admirei-me ao ler esta confissão na medida em que procuro sentir até me esvaziar — e não sei se este sentimento é influência das “doutrinas” orientais, que há muitos anos frequento ou se as frequento porque era esse o meu sentimento original.

LÓGOS: Nathalie Sarraute: “A poesia numa obra é o que faz aparecer o invisível.” Já algum crítico conseguiu evidenciar na tua obra o que pretendeste, deliberadamente, que permanecesse invisível numa primeira leitura?

CASIMIRO DE BRITO: Deixo de desejar o quer que seja quando lanço um poema. Ele terá (ou não terá) vida própria. O que interessa à árvore sob a qual neste momento escrevo o que vai acontecer às folhas que dela caíram. Ela cumpriu o seu papel, eu cumpri o meu. 

LÓGOS: “A poesia não é uma questão de sentimentos, é uma questão de linguagem. É linguagem que cria sentimentos” (Umberto Eco). Consideras que a verdadeira poesia é uma arte cheia de regras e técnicas e que procura ter uma boa relação com os sentimentos?

CASIMIRO DE BRITO: Se, "em norma", o poema passa pela escuta do mundo (ou do Tempo) e pela sua experiência, antes de ser letra, no corpo/coração do poeta, aqui o poema parece anteceder o sentimento contido no prometido "coração". Tudo está até certo, em nome das ideias luminosas que há muito correm, de que "poemas não são sentimentos mas experiências", mas o ofício aqui deixa em exibição (numa espécie de surrealismo après la lettre) todas as alfaias do prazer do mundo, uma indepuração de materiais, organizados em poema, mas o coração virá (estará) depois. Depois do poema!

LÓGOS: Até que ponto o género Haiku influenciou a tua sensibilidade poética de sentir o mundo?

CASIMIRO DE BRITO: Já na minha austera infância eu havia iniciado um caminho de austeridade (que mais tarde associei a raízes judaicas e árabes da minha família) e comecei desde logo a coleccionar ditos sobre tal matéria. Por exemplo, e ouço o meu avô: “Se um figo te basta não comas dois”. E do meu pai (era o rescaldo da guerra): “Não há, não faz falta”. E isto que já me corria no sangue só alcançou expressão poética, reconheço, quando em 1958, no Westfield College de Londres, num curso de Verão, tendo ficado nos aposentos de um professor de Poesia Oriental, tomei conhecimento (um pasmo!) da arte do pouco, do mínimo, do essencial. Mas como se sabe não fiquei só por aí — pois cada um de nós é mais do que um. Senti a necessidade de perseguir outros rios (as lutas sociais, as veredas da música, o amor, que não obedece a regras, as minhas peregrinações por vários mundos) e como é evidente isso implicou a dedicação a vários “estilos”, e ainda não parei. Disso se terá conta quando, muito brevemente, for editado o primeiro volume da minha Poesia Completa, que se intitulará “Negação da Morte”, que foi sempre uma constante na minha obra literária.

BREVE BIOGRAFIA

Poeta, romancista, contista e ensaísta. Nasceu no Algarve, em 1938, onde estudou (depois em Londres) e viveu até 1968. Depois de uns anos na Alemanha passou a viver em Lisboa. Teve várias profissões mas actualmente dedica-se exclusivamente à literatura. Começou a publicar em 1957 (Poemas da Solidão Imperfeita) e, desde então, publicou mais de 40 títulos. Dirigiu várias revistas literárias, entre elas "Cadernos do Meio-Dia" (com António Ramos Rosa), os Cadernos "Outubro/ Fevereiro/ Novembro" (com Gastão Cruz) e "Loreto 13" (órgão da Associação Portuguesa de Escritores). Actualmente é responsável pela colaboração portuguesa na revista internacional “Serta” e faz parte da direcção do Festival “Voix Vives” de Sète bem como da World Haiku Association, sediada em Tóquio. Esteve ligado ao movimento "Poesia 61", um dos mais importantes da poesia portuguesa do século XX. Ganhou vários prémios literários, entre eles vários prémios nacionais, o Prémio Internacional Versilia, de Viareggio, para a "Melhor obra completa de poesia", pela sua Ode & Ceia (1985), obra em que reuniu os seus primeiros dez livros de poesia. Colabora nas mais prestigiadas revistas de poesia e tem obras suas incluídas em 236 antologias, publicadas em vários países. Participou em inúmeros recitais, festivais de poesia, congressos de escritores, conferências, um pouco por todo o mundo. Foi director de festivais internacionais de poesia de Lisboa (Casa Fernando Pessoa), Porto Santo (Madeira) e Faro. Foi fundador e vice-presidente da Associação Portuguesa de Escritores, presidente da Association Européenne pour la Promotion de la Poésie, de Lovaina e foi fundador e presidente da direcção depois da Assembleia Geral do P.E.N. Clube Português. Obras suas foram gravadas para a Library of the Congress, de Washington. Foi agraciado pela Academia Brasileira de Filologia, do Rio de Janeiro, com a medalha Oskar Nobiling por serviços distintos no campo da literatura — entre outras distinções. A Académie Mondiale de Poésie (da Fundação Martin Luther King) galardoou-o em 2002 com o primeiro Prémio Internacional de Poesia Leopold Sédar Senghor, pela sua carreira literária. Ganhou o Prémio Europeu de Poesia Sibila Aleramo-Mario Luzi, com a sua antologia Libro delle Cadute, publicada em Itália em 2004. E o prémio “Poeteka” na Albânia. Tem traduzido poesia de várias línguas, sobretudo do japonês e foi traduzido para galego, espanhol, catalão, italiano, francês, corso, inglês, alemão, flamengo, holandês, sueco, polaco, esloveno, servo-croata, grego, romeno, búlgaro, húngaro, russo, árabe, hebreu, chinês, albanês, macedónio e japonês. Em 2006, foi nomeado Embaixador Mundial da Paz, no âmbito da Embaixada Mundial da Paz, sediada em Genebra. E foi agraciado com a Ordem do Infante pela Presidência da República. Últimas obras editadas: Livro das Quedas, Arte de Bem Morrer, Amar a Vida Inteira, Amo Agora (com a cantora argentina Marina Cedro), Eros Mínimo, Aimer Toute la Vie (em Paris) e Apoteose das Pequenas Coisas (fragmentos), Flor Interior, Música Nua.


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