sábado, 17 de agosto de 2019

DESAGOSTO


Num mundo realmente às avessas, o verdadeiro é um momento do falso.

 (Guy Debord, in “A Sociedade do Espectáculo”, 1967)


Kiss Andrea © 2019

 Agosto é o mês menos importante das nossas vidas, nele perdemos o ensimesmamento rotineiro, a circunstância confortável de outros meses de calendário. O sol arde no fogo, nos olhos, nas serras, nas cidades. Apesar das paredes altas que seguram o mundo, os pés arrastam a gravidade emocional da expectativa de descanso forçado. Tantos modos de acontecer, tanto ruído, tanta febre, tantas celebridades, tantas feiras e festivais, tanta gente concentrada no mesmo desejo de felicidade efémera: a antevisão dos eventos, as pequenas tragédias que se transformam num ápice em grandes desastres. Agosto é o espaço emocional de desconforto, é um tempo para sobreviver e depois esquecer.

Estamos todos juntos, estamos todos de costas voltadas para não nos vermos, mas envergamos, gulosos, as máscaras de quem queríamos ser. Agosto congestiona as estradas, as esplanadas, as expectativas, a filosofia do quotidiano; contudo, se todos os desejos são precários, não é menos verdadeira a certeza de que as férias chegarão rapidamente ao seu fim. Existe uma circularidade nos elementos que compõem os nossos dias e noites, as horas reconduzidas ao seu lado excessivo e… inútil. Olhamos em volta e percebe-se que os sentidos lato e específico da produção de bens e serviços (não só em agosto, mas durante todo o ano), é a procura obrigatória de horizontes substituíveis. E nós obedecemos.

A substância das relações sociais que ligam as pessoas umas às outras modificou-se, passando a ser menos autêntica, especulativa e ficcional: simulada. Temos prova desta premissa na encenação do teatro da vida – a irrealidade virtual – como uma representação dessa mesma vida da qual fomos expropriados na omnipresença da cultura do estrelato, onde as celebridades se pavoneiam perante os nossos olhares de cobiça. E nós, os pobres espectadores, somos meros figurantes nos cenários de agosto e vivemos as nossas vidas em segunda mão. A cultura do excesso, do espectáculo, conduz a um grande vazio na ruptura com a nossa essência humana: a emoção, o pensamento e a acção enfiados no buraco sem fim da lógica do consumo, a disciplina do parecer a qualquer preço. O “ser pessoa” é agora o processo quantificador na busca da uma miragem, o “parecer ser outra pessoa” que acumula. O “ser” é “ter”: mais coisas, mais experiências, a um ritmo avassalador e à imagem de um deus qualquer com os pés enfiados nuns chinelos.

As personagens construídas com vista ao engodo global e com as quais somos levados a identificar-nos, não são, elas próprias, um fragmento dessa enorme miragem que é a escalada social da vida moderna? Até as nossas crianças sonham com a fama, identificam-se diariamente com as personagens célebres das séries que visualizam nos écrans. Exigem ser como elas, querem possuir os adereços que compõem a personagem que admiram. Imitam, apropriam-se, iludem-se. E depois substituem por outra qualquer, mais apelativa ou mais presente, por via do espectáculo que lhes é oferecido através da publicidade, da nova série produzida precisamente para esse efeito: assim se educa para a omnipresença de um novo mundo virtual e infinitamente descartável, para sermos dependentes de uma imagem criada não à nossa própria imagem, mas de acordo com a lógica da disciplina económica e a-politizada, tão perigosa porque não a compreendemos.

Agosto até pode ser um mês de calendário como outro qualquer, mas também é o “desagosto” da vida, o tempo dito livre que acaba por não nos dar nenhuma liberdade de pensamento-acção, pois andamos distraídos, queremos andar entretidos. Pelo contrário, é um sujeito colaborador e pactuante no enorme cinismo da manipulação colectiva num mundo saturado de imagens: «tudo o que aparece é bom e tudo o que é bom aparece», disse Guy Debord, preconizando que nós, os espectadores, ao não encontrarmos o que desejamos, desejamos o que encontramos. Cuidado, muito cuidado, o perigo apenas espreitava, mas agora vive entre nós, é o elo servil e invisível que nos liga e aprisiona.

Adília César

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