domingo, 17 de setembro de 2017

7 UNIVERSOS DE POESIA | MARIA JOÃO CANTINHO

LÓGOS – Biblioteca do Tempo realizou uma série de entrevistas a 7 poetas portugueses, cujo questionário (com base em citações de autores universais) foi igual para todos excepto a última questão, mais pessoal. A particularidade deste projecto foca-se no facto de nenhum dos poetas contactados ter tido conhecimento das respostas dos seus pares. As 7 entrevistas serão posteriormente publicadas na revista LÓGOS – Biblioteca do Tempo.

 
LÓGOS: Paul Éluard disse (e cito de memória) que poeta é aquele que inspira, e não aquele que é inspirado. Ora, como parece haver mais “poetas” do que leitores de poesia, somos efectivamente um país de “inspirados”?

MARIA JOÃO CANTINHO: Efectivamente há muitos poetas em Portugal, mas creio que isso se passa em todo o lado. Há uma espécie de imediatismo que encontra na poesia a expressão dos sentimentos (ainda que ela também o seja, mas deve fugir-se ao sentimentalismo na poesia). O que distingue um bom poeta dos demais, entre vários factores, deve-se ao facto de, na maior parte das vezes, ele começar por ser um leitor de poesia, o que o forma e lhe dá os instrumentos necessários para o exercício da poiesis. A ideia de que os poetas são inspirados ou eleitos, possuídos (ainda que alguns o sejam), é um mito do pré-romantismo, que hoje se encontra ultrapassado. Não vejo mal em que haja muitos inspirados e que isso os faça felizes, mas a crítica e o tempo fazem justamente essa distinção entre o trigo e o joio. Para a vida e também para a arte a inspiração, o desejo pulsional são absolutamente fundamentais, mas a vigilância crítica é fundamental. Outra coisa é o facto de haver tão poucos leitores de poesia. Não há, na nossa cultura, nada que incentive à leitura da poesia, como existe noutros países, em que as crianças começam a fazê-lo cedo e educam o gosto. É um problema de educação, sobretudo. Não se lê, de facto. Vê-se televisão a mais, muita porcaria, má música, má literatura, e nisso os professores e os programas educativos devem empenhar-se a fundo, bem como os poetas devem descer do seu pedestal e contribuir para mudar a situação. Muitas vezes são eles que se enfeudam, recusando-se a aparecer e a participar em leituras de poesia, culpando o sistema. Mas, se eles não estabelecerem a aproximação com os leitores, como mudar o estado de coisas? O gosto pela poesia começa no ouvido, normalmente, a leitura só vem numa altura em que o leitor está mais amadurecido.

LÓGOS: “O que distingue um grande poeta é o facto de ele nos dizer algo que ninguém ainda disse, mas que não é novo para nós.” Partindo deste pressuposto de Ortega y Gasset, qual é o teu «ponto de partida» para a construção de um poema?

MARIA JOÃO CANTINHO: Parece algo pretensioso exigir do poeta ou do escritor a originalidade. Mas é na forma como ele o diz que se estabelece o «arranque» do poema e aí concordo com Ortega Y Gasset. Quem tenha lido os clássicos, desde o Gilgamesh ou poetas como Rumi, Homero e por aí afora sabe que o humano se constitui através de topói que são comuns. A poesia é indigente, nesse sentido, tem a mesma origem de Eros, o semi-deus inquieto e permanentemente insatisfeito, movido pelo desejo, lutando por compreender a tragédia humana, a sua miséria, mas também o que nos eleva acima dessa finitude intrínseca. Nesse sentido, há uma vocação eterna e universal no poeta, que se aloja na dobra do tempo e o acomete, num afã de escavar a linguagem à procura da palavra justa. E é nessa tensão, nessa procura de justeza entre o Mundo e a Palavra que se constrói o espaço do poema. Sem essa tensão não há poema, como não há arte, não há criação. A inquietação é o que faz nascer o poema, esse estremecimento diante do acontecimento.

LÓGOS: A maior verdade de um poeta é pôr o mundo a falar nos seus versos? É uma tragédia se não o entendem no seu tempo? Tens consciência da «utilidade» da tua poesia no mundo?

MARIA JOÃO CANTINHO: A poesia não tem «utilidade», senão confundir-se-ia com jornalismo ou qualquer outra retórica ao serviço de qualquer coisa, instrumentalizada. Se, por vezes, o poema vai ao encontro do leitor do seu tempo, isso é felicidade pura. Mas se não vai, também não é dramático, o tempo há-de trazer o que é importante. Creio que a poesia de qualidade é, muitas vezes, hermética e inacessível, ainda que possa tocar meia-dúzia de leitores. A poesia de Paul Celan, por exemplo, é profundamente enraizada no seu tempo, o da catástrofe, mas no seu tempo não foi acessível. É muito mais lida, interpretada e compreendida hoje, à luz do que sabemos. No seu tempo concitou mesmo ao desagrado de Adorno, que só percebia de poesia lírica (a tradicional, no seu tempo). Se o poeta vive agarrado ao seu tempo, estará sempre amargurado, à espera do retorno da crítica e do aplauso. E se isso acontece também é de duvidar porque, se calhar, ele não estará a dizer nada de original. Tragédia é querer ser reconhecido no seu tempo, pois aquele que o faz vive amargurado.

LÓGOS: “O poeta não exagera profundamente, mas amplamente” (Mattew Arnold). És tentada, como poeta, a destruir a linguagem para criar outra linguagem?

MARIA JOÃO CANTINHO: Sim e não. Há formas subtis de o fazer que não passam por escrever ao arrepio da linguagem. Criar novas palavras, repetições rítmicas que reforcem o poder mágico da linguagem, isso é encontrar uma força indomesticável que nela existe e de que não nos damos conta na linguagem banal. Mas não sinto essa vontade de destruir, como alguns poetas sentem, para criar a originalidade. Talvez porque não acredito nessa originalidade. Li demasiado para cair nessa armadilha.

LÓGOS: Nadine Gordimer disse que “A poesia é ao mesmo tempo um esconderijo e um altifalante”. Quanto da tua poesia é mistério e «leitura infinita»?

MARIA JOÃO CANTINHO: Pergunta difícil, essa. Porque se a tarefa da poesia é a arte de caminhar através do mistério da linguagem, de a descobrir como realidade metafórica, simbólica, esse mesmo trabalho ressoa no leitor. E quanto a isso não posso fazer nada. Ao mesmo tempo, mesmo quando procuro a cifra, o espaço simbólico e fechado, tenho consciência de que há um diálogo com o leitor que, muitas vezes, sou eu própria, que procuro aceder a esse mistério. De camadas múltiplas, mais ou menos conscientes, mas sempre polimorfo, equívoco. Se a poesia se esgota numa única leitura, então não é poesia.

LÓGOS: “Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo” (John keats). Qual é a tua opinião sobre esta floresta de poetas que cresce imparável numa eterna falsidade de vozes?

MARIA JOÃO CANTINHO: Não sei se percebo bem esta questão. Não me interessa nada a quantidade de poetas que escreve, interessam-me os que gosto de ler e acho óptimo que escrevam muitos, pois o tempo exercerá o seu jugo. Não me cabe a mim julgar se as vozes são falsas ou não, só me interessa o que eu faço com a minha voz e se não me falseio a mim mesma. Somos livres de fazer o que nos apetece e livres de lermos o que queremos, também. É isso que é importante. Enalteço o que amo porque amo, eis o que me importa. E respeito os poetas, independentemente de gostar ou não das suas vozes. Penso muitas vezes que sou eu que não alcanço e evito classificar aquilo de que não gosto, há que ser humilde diante do trabalho dos outros. E olharmos a nós próprios.

LÓGOS: A poesia é confissão? Ou uma filosofia do espírito que nomeia a vida?

MARIA JOÃO CANTINHO: No meu caso (e só posso falar por mim enquanto poeta e não como crítica), a poesia é um trabalho de linguagem e de solidão, nesse sentido é confissão e procura da nomeação, obsessão de encontrar essa justeza entre o Mundo e a Palavra. Isso é nomear e é também resgatar o mundo. E esse trabalho solitário é, por isso, confessional.

LÓGOS: Nathalie Sarraute: “A poesia numa obra é o que faz aparecer o invisível.” Já algum crítico conseguiu evidenciar na tua obra o que pretendeste, deliberadamente, que permanecesse invisível numa primeira leitura? 

MARIA JOÃO CANTINHO: Sim, na apresentação do meu livro O Traço do Anjo uma professora de português extraordinária, Fernanda Branco, deu-me a ver coisas que eu queria ocultar. E o grande crítico Rui Magalhães, que infelizmente não publica há muito tempo, também o fez relativamente ao meu livro Sílabas de Água. O que me faz pensar que, se calhar, sou péssima a jogar às escondidas…mas há uma dimensão do simbólico e do inconsciente que qualquer crítico avisado descortina numa obra, se a ler de coração e espírito.

LÓGOS: “A poesia não é uma questão de sentimentos, é uma questão de linguagem. É linguagem que cria sentimentos” (Umberto Eco). Consideras que a verdadeira poesia é uma arte cheia de regras e técnicas e que procura ter uma boa relação com os sentimentos?

MARIA JOÃO CANTINHO: Eu suspeito muito (ainda que também respeite muito por ser mais difícil) da poesia muito formal. Às vezes, esse formalismo pode tornar-se excessivo e tornar-se um obstáculo à leitura fluída do poema. Eu gosto do poema-fala, do poema-diálogo. É a minha família ou a minha linhagem, se quisermos chamar-lhe assim. Mas temos poetas extraordinários a fazer uma poesia formal de altíssima qualidade. Alguns tocam-me profundamente, a outros sinto-lhe a falta de intimidade ou de alma. Mas isto é subjectivo, não pode ser uma medida objectiva, é só o meu gosto.

LÓGOS: O poeta dá rosto e nome às pequenas coisas que os que não são poetas não conseguem reconhecer?

MARIA JOÃO CANTINHO: O «rosto» é um dos topoi mais trabalhados na poesia francesa e não é por acaso. Porque essa linhagem poética filia-se numa ética levinasiana. Um dos livros que mais gostei de ler no último ano foi o de uma jovem poeta chamada Aurelie Lassaque, que se intitula En Quête d’un Visage. É uma poesia profundamente ancorada nessa temática, que é também a de uma busca pela dignidade humana. João Rui de Sousa e António Ramos Rosa trabalhavam muito esse tema, por exemplo (mas de uma forma mais lírica). A minha é uma poética das pequenas coisas, por isso o título Do Ínfimo, justamente nesse sentido de procurar ver o que nos passa despercebido, o que fulgura e desaparece no mesmo instante. Não apenas um trabalho de memória, mas sobretudo de concentração nesse olhar das pequenas coisas, que já não olhamos, desfocados que somos da Vida.

Biografia:

Maria João Cantinho nasceu em Lisboa em 1963 e passou a infância em Angola, de onde voltou em 1975. Estudou Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, onde realizou o mestrado e o doutoramento, na área de Filosofia Contemporânea. Tem 4 obras de ficção publicadas em Portugal, 2 no Brasil e em 2006 foi finalista do Prémio Telecom, com a obra Caligrafia da Solidão. Tem 4 livros de poesia publicados e a sua última recolha, Do Ínfimo, foi premiada com o Prémio Glória de Sant’Anna (2017). Tem obras (2) de carácter ensaístico e escreve regularmente ensaios e crítica para diversas revistas literárias e académicas, como a Colóquio-Letras, Revista Pessoa, etc. É investigadora do CFUL, na Faculdade de Letras e do Centre d’Études Juives da Universidade Sorbone IV. Co-organizou e co-editou diversas obras de filosofia e antologias de poesia e literatura para a Blanco Móvel, Poème d’Aujourd’hui, Revista Lichtungen. Pertence à direcção do PEN Clube Português e é sócia da APE (Associação Portuguesa de escritores) e da APCL (Associação Portuguesa de Críticos Literários). Foi presidente de júri do PEN, nas modalidades de Narrativa, Poesia e Ensaio e tem integrado vários júris da APE e da APCL. É editora da Revista Caliban.

https://escritores.online/escritor/maria-joao-cantinho/ 

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