sábado, 30 de março de 2019

O NU FEMININO ENTRE O ARTISTA E O ESPECTADOR


Com este gesto explodi o quadro da pintura de Courbet dando apenas para ver o que está fora do campo da pintura: uma voz, um olhar, um ponto de vista.
   Deborah de Robertis, 2014

Deborah é uma mulher decidida. Estamos no dia 29 de maio de 2014, à porta do Museu d’Orsay, onde uma longa fila de visitantes espera a sua vez de entrar. Lá dentro, todos essas pessoas serão espectadores pacientes, atravessando as diversas salas para apreciar todas as valiosas obras de arte expostas, validadas enquanto tal. Mas Deborah está focada num único objectivo: chegar à sala onde está exposta a pintura A Origem do Mundo de Gustave Courbet (1866) e, sob os acordes da Avé Maria de Schubert na voz de Maria Callas, despojar-se de falsos pudores e provocar um determinado quadro de pensamento nos espectadores perante os quais se vai posicionar, numa atitude, no mínimo, controversa. Deborah está agora nua e descalça, emoldurada por um vestido de lantejoulas douradas, à semelhança da moldura do quadro de Courbet em volta da imagem da mulher nua representada na pintura. Senta-se no chão, de costas para a Origem do Mundo, abre as pernas e exibe delicadamente o Espelho de Origem - a sua vagina. As reacções à instalação foram imediatas: Deborah foi detida pela polícia, para ser interrogada (embora mais tarde o Ministério Público francês decidisse não apresentar queixa, tendo sido a artista libertada). Da parte dos espectadores, como seria de esperar, houve uma diversidade de interpretações e uma multiplicidade de manifestações contra e a favor, de acordo com as suas percepções: realidade, sensibilidade, inteligência, valores e padrões dominantes, vivências, tipo de personalidade e até o estado de espírito durante a contemplação da obra de arte; de tudo isso se faz a apreciação do espectador.

Mais tarde, por ocasião da Feira Internacional de Arte Contemporânea, entre 22 e 25 de outubro de 2014, no stand da Galeria Massimo Minini em Paris, foi possível mostrar a fotografia da performance levada a cabo por Deborah de Robertis, intitulada, precisamente, Espelho de Origem; contudo, a cena tinha sido fotografada previamente à performance/instalação pública no Museu d’Orsay, para a artista ter a certeza do seu ponto de vista ético e estético, antes de se dar ao espectador. Numa entrevista, Deborah referiu que sentiu sobre ela o chamado olho do sexo: se determinadas partes do corpo ditas sexuais estão visíveis ao olhar dos outros, é nelas que as pessoas se focam, a nível dos actos de olhar, conceptualizar e emitir opinião, abstraindo-se dos restantes componentes visuais, como por exemplo, o seu espalhafatoso vestido de lantejoulas douradas, a moldura do quadro vivo.
 
Deborah de Robertis e o seu Espelho de Origem

Na verdade, os panos que cobrem a nudez do corpo feminino têm as cores dos preconceitos e dos estereótipos acerca da mulher no mundo: um vestuário emocional que as protege das intempéries relacionais e sociais. Isto quer dizer que elas podem despir as roupas, mas nunca ficam completamente nuas: a nudez é sempre interior e a pele é apenas o contorno do corpo. Deborah estava de facto nua? Ou estava a desvendar a origem da Origem do Mundo? A controvérsia ainda está em debate.

Ao longo da história da arte encontramos a temática do nu feminino em todas as suas formas de expressão, desde a pintura e a escultura, passando pela fotografia, dança, teatro, cinema, circo, além de outras formas mistas. O corpo feminino é, assumidamente, um elemento de culto ligado à sensualidade e ao erotismo, à natureza do espírito capaz de atingir o nível cósmico e divino; o nu artístico exibe, afinal, o mistério da própria mulher representada na obra de arte.

As metamorfoses do nu artístico feminino são evidentes, de acordo com os paradigmas sociais, culturais e estéticos que foram exibidos em cada época. Poderá este nu artístico ter um papel de mediador na construção ou alteração dos estereótipos acerca do papel da mulher no mundo, de criar ou recriar outras visões sobre a realidade? Sim. A pesquisa de Deborah de Robertis e as consequentes reacções contraditórias dos espectadores e das autoridades provaram isso mesmo. O conflito, que motivou a detenção da performer, como se ela tivesse transgredido a lei, era evidente: por um lado, a certificação da obra de arte, instituída e consolidada na parede de um museu; por outro, a moralidade de um acto contemporâneo enquanto representação do real, em presença física, desafiadora do puritanismo encaixilhado.

Entre o artista e o espectador, o nu feminino na arte ainda está longe de ser um processo e um produto consensuais, necessitando de uma reflexão que ultrapasse o debate superficial da divisão das obras entre arte e pornografia. Na minha opinião, o contributo de Deborah de Robertis abriu outros caminhos de reflexão que devem ser tidos em conta, principalmente por parte das mulheres, esses obscuros objectos de desejo.

Adília César

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sábado, 23 de março de 2019

MONA LISA RESSIGNIFICADA


Aquela pintura era uma questão de causa e efeito. O sorriso, concentrado na tela, à mercê dos gestos firmes do artista, enquanto senhor da técnica e da criação. O retrato, a beleza da mulher parada no tempo. O homem persistente espreita a nudez do rosto feminino e vai vestindo o seu contorno com os tintas que mistura na paleta. Pincéis sujos pintam o seu estado íntimo com tons anoitecidos e luminosos ao mesmo tempo, como se fosse possível concentrar num mesmo instante a noite e o dia. Uma nudez interior vestida com um belo sorriso de luz, fenómeno indescritível do talento genuíno. A vida era isto e assim se passaram três anos, de 1503 a 1506.

O sorriso de Mona Lisa

Ela, a Mona Lisa, ainda anda por aí. O seu sorriso parece inalterável, mas de cada vez que a vejo é uma imagem diferente. Regressando à memória da minha primeira visita ao Museu do Louvre em 2006, eis o célebre quadro pintado por Leonardo da Vinci, na sala seis do Edifício Denon. Pequeno, escuro, quase tenebroso no interior da caixa blindada. Concentrada nesta visão misteriosa, ouço o som propagar-se por entre o ruído da multidão: é uma composição terna e esfumada tocada por um consort de quatro músicos serenos, todos eles especialistas na sua arte de interpretação do instrumento musical. O alaúde protagoniza a pavana; e a viola de gamba, a flauta doce e a rabeca ornamentam as longas horas de trabalho de Leonardo. Também Mona Lisa respirou esses sons durante três anos. A existência do concerto contínuo tinha sido uma ideia do próprio Leonardo, numa tentativa de manter o sorriso indefinido no rosto de Mona Lisa durante o tempo de pose. A bela modelo correspondeu na perfeição. A melodia era do seu agrado, e graças ao ouvido absoluto (qualidade rara de discriminação auditiva nos comuns mortais), ela conseguia elevar o acto de escuta ao patamar mais íntimo da sua emoção, aceitando sem condições ou constrangimentos a música que ajudou o pintor a cumprir a sua missão criativa.
 
Consort de música renascentista

500 anos depois, eu estava ali naquele lugar antigo, com os restantes protagonistas: pintor, modelo, músicos do consort; as nossas presenças eram inegáveis. Linhas de deslumbre clássico a unir os nossos corações. Todo o ambiente circundante no interior do museu, mundano e distraído, diluiu-se nos gestos e nos sons renascentistas. Uma sintonia difícil de prever e de alcançar. Fecho os olhos perante o milagre da viagem no tempo, mas quando os abro já não estou ali, naquele lugar comovido e sacrossanto. Agora estou aqui, de volta a 2006, e a percepção sobre o acontecimento produz um efeito fatal na minha apreciação estética. Mona Lisa ganha uma ressignificação que eu não compreendo, nem tão pouco tenho a certeza se Leonardo merece o fenómeno transgressor do apropriacionismo. Enquanto eu não tiver a certeza absoluta sobre o que está a acontecer, não os deixarei abandonar o cenário da dúvida. Imponho aos músicos o concerto contínuo da minha memória renascentista e percorro a cidade de Paris em busca do significado perdido da arte. Um desfile peculiar: eu, o maestro e os instrumentistas em cadência ordenada.

Ao atravessar a rua vejo-a sentada numa mesa de esplanada. A espalhafatosa flor de feltro na boina vermelha não passa despercebida, nem os densos cachos de caracóis louros tombados sobre os ombros nus e os seios generosos. O vestido é bastante decotado e leve, desapropriado em relação à fria primavera parisiense. A cintura está fina, apertada pelo corpete de couro castanho. Tem as pernas abertas e ostenta uma pose provocadora, quase indecente, embora o vestido lhe chegue até aos tornozelos. A rapariga é, apesar de tudo, estranhamente bela, quase desejável, com os seus roliços braços tatuados de flores, pássaros e borboletas. Olha fixamente este cortejo que avança pelas ruas de Paris em sua honra, para lhe assegurar o sorriso perfeito. Tem as mãos adornadas de anéis postas sobre o regaço, tal como no retrato do Museu do Louvre. Sim, e sorri.



Hesito. Não consigo sair daquela incompreensão estética, não posso aceitar a transformação do mistério renascentista em exibição escandalosa. Mesmo que a arte seja tudo aquilo a que chamamos arte, estou demasiado zangada para racionalizar e perdoar o embuste. Os músicos não param de tocar e Mona Lisa permanece sorridente. Sim, o sorriso é tudo o que lhe resta.

Adília César
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sábado, 16 de março de 2019

UM ENORME PASMO DE LEITORES SEM TEMPO


Por pouco que tenhas lido, por pouco que saibas,
o que és depende da casualidade do lido.
Elias Canetti

A leitura como referência cultural é aceite na actualidade sem grande controvérsia. Ler é útil e necessário. As nossas vidas estão rodeadas e conotadas com actividades ligadas ao acto de ler. A escolaridade obrigatória é, desde há alguns anos, de 12 anos de permanência na escola ou até aos 18 anos de idade, pelo que se deduz que os cidadãos portugueses estarão brevemente todos alfabetizados, na medida em que todos terão passado pela escola, para aprender a ler, a escrever e a contar. Uma alfabetização bem-sucedida será, com certeza, um factor de desenvolvimento para o nosso país, tendo em conta que todas estas pessoas possuirão um leque maior de conhecimentos.
 
Ekaterina Panikanova

Somos capazes de ler placas de sinalização, rótulos de produtos, mapas, painéis e folhetos de publicidade, receitas de culinária, legendas de programas de televisão, títulos de livros. Verificamos e comparamos os preços dos produtos à venda, contamos o dinheiro dos pagamentos e dos trocos, fazemos medições, fazemos contas à vida. As tarefas enunciadas são muito importantes e imprescindíveis ao nosso dia-a-dia, se o quisermos viver com qualidade e eficiência, mas… A vida não é só isso: a aprendizagem de uma técnica com vista ao aperfeiçoamento do utilitário. Podemos então retirar da leitura outras benesses? Que leituras podemos realizar para nos tornarmos pessoas mais interessantes e proficientes a nível social, profissional e cultural? Ler muito significa que somos bons leitores? E ler pouco quer dizer que somos maus leitores? Tantas dúvidas às quais não irei responder. Quero apenas concentrar-me numa questão fundamental: o tempo efectivo que cada um de nós está disposto a dedicar à leitura.
 
Carlos Reys

Não temos tempo para ler? Claro que temos. É bem verdade que ler exige tempo e dedicação, força de vontade para persistir na leitura. Lêdo Ivo afirma que o leitor é o co-autor do texto: «O meu leitor não é o que me lê. É o que me relê (caso exista). Um autor lido unicamente uma vez não tem leitores, por mais retumbante que seja o seu sucesso». A acreditarmos nessa premissa, a tarefa de sermos “bons” leitores está dificultada…

Concentremo-nos agora não na qualidade dos textos, mas na quantidade, ou seja, é possível ler, por exemplo, 200 livros num ano? Sim, é, mas a maioria não vai fazê-lo, e achará a tentativa um grande disparate e até uma perda de tempo! Warren Buffett, quando questionado sobre as razões do seu tremendo sucesso, respondeu: «Leia 500 páginas por dia. É assim que o conhecimento funciona, como juros compostos. Todos vocês podem fazer isso, mas garanto que não são muitos que o farão». Ambicioso, não é? Se este objectivo for assustador, podemos sempre planear metas mais exequíveis e modestas, e neste aspecto, cada pessoa terá o seu ritmo: não somos todos iguais, nem sequer temos as mesmas tarefas diárias ou o mesmo horário de trabalho.

A minha mãe foi, desde que me recordo, uma entusiasta da leitura: leu durante muitos anos 3 romances por semana. Não daria as tais 500 páginas por dia sugeridas por Buffett, mas foi a meta que ela estipulou para a sua vida e que cumpriu até perder a visão. Acredito que esses milhares de horas destinados à leitura fizeram dela uma mulher diferente, imaginativa, tolerante e proficiente a nível da convivência com os outros. E motivou-me em relação às minhas próprias leituras, o que não é de desprezar.

Vejamos alguns passos práticos:

1   Não desistir antes de começar, fazendo uma conta simples: se lermos pelo menos 200 palavras por minuto, atingiremos com facilidade as 12.000 palavras numa hora; se um livro tiver entre 60.000 a 120.000 palavras, por exemplo, gastaremos cerca de 5 a 10 horas para o ler. Quantos dias demoraria a ler um livro? Uma semana, por exemplo, à razão de 1 hora ou mais por dia. Se no mínimo ler um livro por semana, serão 4 livros por mês e 58 livros por ano. Impressionante.

2   Encontrar tempo para a leitura e ler: quantas horas passamos a ver televisão? E a deambular nas redes sociais? Não é preciso um grande tratado de investigação para assumirmos que a maior parte do tempo que gastamos a ver programas televisivos que não nos acrescentam nada e a colocar “gostos” nas partilhas dos nossos “amigos facebookianos” que nem sequer têm a delicadeza de nos darem alguma atenção, é pura perda de tempo. Não nos podemos esquecer que estes meios são pensados para causar dependência dos mesmos…

3     Procurar e criar os ambientes mais propícios para as nossas leituras, utilizando mais do que um meio ou instrumento: ler em casa, no silêncio, no café, em contacto com a natureza; vale qualquer suporte de livro – papel, audiobook, leitor de ebook, écrans de smartphone, tablet ou computador.  

   E se quisermos potenciar as nossas capacidades enquanto leitores, ser um bom leitor, ainda podemos ir muito mais além, segundo as indicações de Vladimir Nabokov que escreveu um ensaio interessantíssimo, com o título de “Aulas de Literatura”. Nesse livro, ele apresenta um teste bastante curioso, para o leitor se autoavaliar enquanto tal. Vamos começar. Quais das seguintes características fazem um bom leitor?
a)      deve pertencer a um clube de leitores. L
b)      deve identificar-se com o herói ou a heroína. L
c)      deve concentrar-se no aspecto socioeconómico. L
d)      deve preferir uma narrativa com acção e diálogo ou sem um dos dois. L
e)      deve ter visto o romance em filme. L
f)       deve ser um autor embrionário. L
g)      deve ter imaginação. J
h)      deve ter memória. J
i)       deve ter um dicionário. J
j)       deve ter um certo sentido artístico. J

Então, que tal se saiu? Para Nabokov, se escolheu as quatro últimas alíneas, está de parabéns, é um bom leitor, pelos motivos óbvios. Em suma, um bom leitor é aquele que, através dos livros, vê o mundo para além das aparências.

O fim de uma crónica é sempre o princípio de uma incerteza: o autor nunca sabe se o leitor chegou até aqui…


Adília César

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sexta-feira, 8 de março de 2019

O CÉU DE CONSTABLE


«Nuvens
Seguidas por outras, dissolvem o sol ao passar
Por dentro e por fora dele. Massas escuras
O mancham de novo, suaves feixes-de-luz dispersos.»
(Meditação sobre John Constable, de Charles Tomlimson)

Seascape Study with Rain Cloud

– Hoje vou pintar as nuvens por cima deste mar. – diz Constable.
Elas mudam a cada instante e por isso, pinto o mais rápido que me é possível. O sol, ténue e fragmentado. Raios de luz mansa.

Mas tudo muda, tudo muda. O que aí vem é uma perturbação da natureza. O céu, o sol, a chuva, o vento, a luz, o frio, as nuvens. Tudo muda. O vento gélido transforma as tintas numa pasta grossa agarrada aos pincéis. É difícil a minha missão. A narrativa da natureza coincide com a minha expressão sincera de respeito pela paisagem: nuvens que dançam, cinzentos abstractos, o branco que parece afogar-se neste céu tão pesado. Oh tempestade.

Já não sinto o frio. O milagre da criação transforma-me num outro eu. Todo o meu corpo é uma intenção estética, uma obsessão jubilosa pela obra, a que me entra pelos olhos e a que represento na tela. Vejo e pinto. Vejo e pinto. Vejo e pinto. Sei que me é permitido este jogo de repetição. As nuvens que vejo hoje já não são as mesmas que vi ontem ou que verei amanhã. Mas em cada dia há um quadro que nasce, uma nova visão da evanescência de outras visões.

A chuva que se derrama sobre mim colabora na extensão do meu corpo que realiza a pintura. A mão fria é um ornamento da presença artística da paisagem cruel e intensa. Todos os dedos estão cinzentos e organizam-se em torno da janela de um tempo presente, esse rectângulo roubado à natureza do inverno, essa tela repetida até às profundezas do eterno.

A tempestade abate-se sobre a invisibilidade do ar. Respiro avidamente e bebo os tons do vendaval. Mas estou sempre sôfrego e tenho sempre sede de mais. Sempre. Sei que amanhã estarei aqui outra vez, neste mesmo lugar, a olhar e a pintar outras nuvens. E guardarei essas impressões no branco da tela que ainda não se afogou, para que o meu coração descanse numa visão impressionista do espírito perturbado da tempestade.

A chuva é o sangue do céu que jorra de todos aqueles corações nublados, cinzentos, brancos, tão longe do meu peito que os quer guardar a todos. Todos os corações, todas as nuvens são a minha força e a minha fraqueza, a minha vontade e a minha consumação. Nas mãos molhadas guardo a obra do dia que se faz noite, no pensamento redimo a esperança na noite que se fará dia.

Oh nuvens. Que leveza demonstram no seu bailado tenebroso. Como pintar o último traço se a dança é infinita? Como desistir daquilo que me assombra e fascina? Que súbito, que cor, que tom? Como abandonar este meu lugar-corpo, imprescindível e fatal? Por onde irei se só posso estar aqui? Nuvens seguidas por outras, dissolvem o sol ao passar por dentro e por fora dele. Massas escuras o mancham de novo, suaves feixes-de-luz dispersos. Sei que morri hoje e sei que a paisagem é a obra e o artista no encalce da perfeição impressionista, romântica e eterna. Oh vida.

Adília César
in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__137

Jonh Constable
Nota biográfica
John Constable (Suffolk, 11 de Junho de 1776 – Londres, 31 de Março de 1837). É um pintor difícil de catalogar. Os seus quadros obedecem a uma técnica impressionista na execução e no tratamento da cor, mas os motivos podem considerar-se românticos. Foi pioneiro na percepção e estudo da mudança dos efeitos da luz e das condições atmosféricas na arte. O seu tema principal foi a própria natureza, explorando incansavelmente novos caminhos para representar a transformação, principalmente as mudanças de luminosidade do céu e os seus efeitos sobre todo o meio ambiente. Constable foi um grande inspirador para os pintores do Romantismo e pintores de paisagem em geral.

sábado, 2 de março de 2019

UM ENORME DOMINGO DE PASMO SEM TEMPO


 A nossa vida não é um sonho, mas deveria
e talvez se torne um.
Novalis

O homem parece ausente, alheado. Acontece-lhe com frequência ficar naquele estado de letargia, de fadiga. Há sempre um motivo para o poeta exibir a sua melancolia. Ele pensa na mulher, no tempo em que a sua mão direita segurava o ombro esquerdo dela e caminhavam lado a lado pelas veredas do parque, aos domingos. Iam inseguros pelo precipício do silêncio e apenas restava um aperto de ombro que ele teimava em saborear e que ela acolhia com alguma inconsciência e aceitação civilizada. Passos tortos e conversas fiadas em esquinas agudas. Afinal, já não fazia sentido a impressão unida dos seus corpos, a verticalidade dos sentimentos tombados, os estranhos olhares que banalizavam o tempo que passaram juntos. Eram tão palpáveis os espíritos desviados da seta dourada a iluminarem antigos sentimentos de paixão.

“Uma ave recortada no céu azul”, ainda pensava ele.
“Velhos arrastando-se na valeta”, já pensava ela.

As ruas cheiram a miséria. É preciso um mapa de insultos para acordar os corações do homem e da mulher que já haviam esgotado todas as edições de autor. Riscos como gritos, bocas abertas nas letras, setas inundadas de sangue. Pensamentos demolidores num mapa cor-de-rosa da cidade velha e cinzenta, com anotações à margem: recantos anónimos, instruções de uso, e algumas palavras descritivas das ausências paradas no tempo, como uma pauta musical. Itinerários fáceis de utilizar, portanto. O mapa uniformiza os passos, achata-os na visão neutra das suas próprias vidas, ou seja, vamos “por ali” porque o mapa nos diz para irmos “por ali”.
 
Pauta de Bussotti

E fomos andando sobre as mágoas sujas de outrora.

Chegados ao quarto de hotel, no último andar, desenhavam-se as linhas que uniam aquelas duas pessoas através de uma corrente de tentativas fracassadas. Mas já se tinham perdido um do outro, nada mais havia para escrever.

“Onde estás agora?” - pensava ele.
“O último comboio. Um café e um pastel de nata. Se ao menos…” - pensava ela.

Entre os dois há silêncios súbitos, pesados. Cigarros que se acendem para desistir do tempo parado. Mas a atenção fixa-se nas cabeças queimadas dos fósforos que se apagam quase ao mesmo tempo. O amor também é uma chama apagada, depois de tudo.

Por favor, escuta estes gestos lentos e inanimados da minha solidão, quero despedir-me do fantasma da tua angústia. Escuta. Pela janela aberta esvoaça o teu perfume, mas eu sei que não és tu. Disseram-me que a tristeza se encostou às paredes da casa e ao pó dos nossos livros, tombou o seu amplo rosto na pequena cama onde guardaste o corpo, no fim. Mas eu ainda sorvo a tua voz no fundo da garrafa que se deita comigo, todas as noites. Amanhã abandonarei a caixa dos despojos deste amor descontrolado. Vê, o mapa cor-de-rosa está agora tão cinzento como as traseiras dos prédios, as escadas de serviço, a caixa de correio arrombada a pontapé. O mapa do teu voo nas palavras de despedida revisitadas ano após ano. “Já não te amo”, escreveste na margem da rua, nas páginas do diário, nos dedos, antes e depois da tua queda. Mas o que significa isso? Recordo o teu corpo bordado em ponto pé de flor sobre a calçada, as linhas vermelhas no rosto surpreendido, os cabelos dançantes. Quando tudo me pertencia, que vontade de apertar o teu ombro, de apaziguar a violência da tua decisão, de mergulhar o meu amor inteiro na nossa antiga alegria. “Ainda te amo”, escreverei na margem da rua, nas páginas do diário, nos dedos, antes e depois da minha queda. Mas o que significa isto?


Ele sabia que já nada era possível. Continuava ausente, alheado, e apertava na mão direita, a mão perfeita que escreveria o nome dela em todos os poemas, as pálpebras fechadas da rosa vermelha. Sobre as pedras enterradas ainda vivas, pingos de sangue enfeitavam a melancolia da saudade, num enorme domingo de pasmo sem tempo.

Adília César
Nota: o título desta crónica é um verso retirado do livro de poesia “Isto anda tudo ligado” (1970, Cadernos Peninsulares) de Eduardo Guerra Carneiro (1942-2004).

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