sábado, 16 de março de 2019

UM ENORME PASMO DE LEITORES SEM TEMPO


Por pouco que tenhas lido, por pouco que saibas,
o que és depende da casualidade do lido.
Elias Canetti

A leitura como referência cultural é aceite na actualidade sem grande controvérsia. Ler é útil e necessário. As nossas vidas estão rodeadas e conotadas com actividades ligadas ao acto de ler. A escolaridade obrigatória é, desde há alguns anos, de 12 anos de permanência na escola ou até aos 18 anos de idade, pelo que se deduz que os cidadãos portugueses estarão brevemente todos alfabetizados, na medida em que todos terão passado pela escola, para aprender a ler, a escrever e a contar. Uma alfabetização bem-sucedida será, com certeza, um factor de desenvolvimento para o nosso país, tendo em conta que todas estas pessoas possuirão um leque maior de conhecimentos.
 
Ekaterina Panikanova

Somos capazes de ler placas de sinalização, rótulos de produtos, mapas, painéis e folhetos de publicidade, receitas de culinária, legendas de programas de televisão, títulos de livros. Verificamos e comparamos os preços dos produtos à venda, contamos o dinheiro dos pagamentos e dos trocos, fazemos medições, fazemos contas à vida. As tarefas enunciadas são muito importantes e imprescindíveis ao nosso dia-a-dia, se o quisermos viver com qualidade e eficiência, mas… A vida não é só isso: a aprendizagem de uma técnica com vista ao aperfeiçoamento do utilitário. Podemos então retirar da leitura outras benesses? Que leituras podemos realizar para nos tornarmos pessoas mais interessantes e proficientes a nível social, profissional e cultural? Ler muito significa que somos bons leitores? E ler pouco quer dizer que somos maus leitores? Tantas dúvidas às quais não irei responder. Quero apenas concentrar-me numa questão fundamental: o tempo efectivo que cada um de nós está disposto a dedicar à leitura.
 
Carlos Reys

Não temos tempo para ler? Claro que temos. É bem verdade que ler exige tempo e dedicação, força de vontade para persistir na leitura. Lêdo Ivo afirma que o leitor é o co-autor do texto: «O meu leitor não é o que me lê. É o que me relê (caso exista). Um autor lido unicamente uma vez não tem leitores, por mais retumbante que seja o seu sucesso». A acreditarmos nessa premissa, a tarefa de sermos “bons” leitores está dificultada…

Concentremo-nos agora não na qualidade dos textos, mas na quantidade, ou seja, é possível ler, por exemplo, 200 livros num ano? Sim, é, mas a maioria não vai fazê-lo, e achará a tentativa um grande disparate e até uma perda de tempo! Warren Buffett, quando questionado sobre as razões do seu tremendo sucesso, respondeu: «Leia 500 páginas por dia. É assim que o conhecimento funciona, como juros compostos. Todos vocês podem fazer isso, mas garanto que não são muitos que o farão». Ambicioso, não é? Se este objectivo for assustador, podemos sempre planear metas mais exequíveis e modestas, e neste aspecto, cada pessoa terá o seu ritmo: não somos todos iguais, nem sequer temos as mesmas tarefas diárias ou o mesmo horário de trabalho.

A minha mãe foi, desde que me recordo, uma entusiasta da leitura: leu durante muitos anos 3 romances por semana. Não daria as tais 500 páginas por dia sugeridas por Buffett, mas foi a meta que ela estipulou para a sua vida e que cumpriu até perder a visão. Acredito que esses milhares de horas destinados à leitura fizeram dela uma mulher diferente, imaginativa, tolerante e proficiente a nível da convivência com os outros. E motivou-me em relação às minhas próprias leituras, o que não é de desprezar.

Vejamos alguns passos práticos:

1   Não desistir antes de começar, fazendo uma conta simples: se lermos pelo menos 200 palavras por minuto, atingiremos com facilidade as 12.000 palavras numa hora; se um livro tiver entre 60.000 a 120.000 palavras, por exemplo, gastaremos cerca de 5 a 10 horas para o ler. Quantos dias demoraria a ler um livro? Uma semana, por exemplo, à razão de 1 hora ou mais por dia. Se no mínimo ler um livro por semana, serão 4 livros por mês e 58 livros por ano. Impressionante.

2   Encontrar tempo para a leitura e ler: quantas horas passamos a ver televisão? E a deambular nas redes sociais? Não é preciso um grande tratado de investigação para assumirmos que a maior parte do tempo que gastamos a ver programas televisivos que não nos acrescentam nada e a colocar “gostos” nas partilhas dos nossos “amigos facebookianos” que nem sequer têm a delicadeza de nos darem alguma atenção, é pura perda de tempo. Não nos podemos esquecer que estes meios são pensados para causar dependência dos mesmos…

3     Procurar e criar os ambientes mais propícios para as nossas leituras, utilizando mais do que um meio ou instrumento: ler em casa, no silêncio, no café, em contacto com a natureza; vale qualquer suporte de livro – papel, audiobook, leitor de ebook, écrans de smartphone, tablet ou computador.  

   E se quisermos potenciar as nossas capacidades enquanto leitores, ser um bom leitor, ainda podemos ir muito mais além, segundo as indicações de Vladimir Nabokov que escreveu um ensaio interessantíssimo, com o título de “Aulas de Literatura”. Nesse livro, ele apresenta um teste bastante curioso, para o leitor se autoavaliar enquanto tal. Vamos começar. Quais das seguintes características fazem um bom leitor?
a)      deve pertencer a um clube de leitores. L
b)      deve identificar-se com o herói ou a heroína. L
c)      deve concentrar-se no aspecto socioeconómico. L
d)      deve preferir uma narrativa com acção e diálogo ou sem um dos dois. L
e)      deve ter visto o romance em filme. L
f)       deve ser um autor embrionário. L
g)      deve ter imaginação. J
h)      deve ter memória. J
i)       deve ter um dicionário. J
j)       deve ter um certo sentido artístico. J

Então, que tal se saiu? Para Nabokov, se escolheu as quatro últimas alíneas, está de parabéns, é um bom leitor, pelos motivos óbvios. Em suma, um bom leitor é aquele que, através dos livros, vê o mundo para além das aparências.

O fim de uma crónica é sempre o princípio de uma incerteza: o autor nunca sabe se o leitor chegou até aqui…


Adília César

https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__193

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