terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

LÓGOS ENTREVISTA | JOSÉ ANTUNES RIBEIRO

José Antunes Ribeiro, editor e livreiro da Espaço Ulmeiro, numa conversa com Adília César e Fernando Esteves Pinto.


LÓGOS: O tempo, que tudo cria, também destrói. O tempo da sua infância, em que já sentia o apelo dos livros e da leitura. O tempo da sua juventude, em que os sonhos se materializaram em projectos relevantes – foram tempos de uma vida dedicada à edição e à literatura. Hoje, sente-se traído por este tempo em que vive?

JOSÉ ANTUNES RIBEIRO:  O tempo para além de ser um grande escultor é também um grande inimigo. O sonho é a grande arma de qualquer realização pessoal e colectiva. Quem vive uma já longa vida dedicada aos livros e à literatura não pode nunca sentir-se traído pelo tempo. As coisas são o que são. E por maior que seja a vontade, os ponteiros do relógio não andam para trás. Desde que me recordo de mim, em especial a partir da escola primária, os livros foram um fascínio e neles encontrei a razão de vida. Mas não lamento nada. É claro que a distância desses tempos me obriga a concluir que se recomeçasse faria algumas coisas de maneira diferente.

LÓGOS: Foi fundador da Editora Ulmeiro, mas também passou pelas Edições Itaú e esteve na origem da Assírio & Alvim. Como é que entrou no mundo da edição?

JOSÉ ANTUNES RIBEIRO:  O meu percurso começou na Livraria Obelisco, da Amadora (Reboleira), em 1968, as Edições Itaú onde editei esse fabuloso livrinho A CRIANÇA E A VIDA, da Maria Rosa Colaço e, entre outros, o poster OS ESTATUTOS DO HOMEM, do Thiago de Mello. Em 1969 aparece a Ulmeiro, e a Assírio & Alvim em 1972. Cheguei a trabalhar na propaganda médica, mas já nessa altura colaborava com as livrarias e editoras que ajudei a fundar, por isso sempre me considerei livreiro e editor.

LÓGOS: Tanto a Editora Ulmeiro como a livraria eram espaços de resistência à censura no tempo do Estado Novo. Como fazia chegar aos leitores o que se considerava na altura «livros proibidos»? Há algum episódio que nos queira contar? 

JOSÉ ANTUNES RIBEIRO:  Vivi intensamente a resistência contra a Censura e pela Liberdade de Expressão, tendo o meu nome em vários Manifestos entre os quais o MANIFESTO dos 101 católicos contra a Guerra Colonial em 1965, e o Manifesto Pela Liberdade de Expressão em 1972. Participei também no movimento das Cooperativas Culturais, tendo sido Vice-Presidente da Direcção da VIS, na Amadora. Com o encerramento das cooperativas culturais no consulado marcelista pareceu-me que era necessário encontrar novas formas de resistência e de animação e agitação cultural. A Ulmeiro aparece nesse contexto. Os chamados "livros proibidos" eram fáceis de divulgar. Havia uma grande procura e a Ulmeiro era um alvo habitual da PIDE não só na livraria, mas das nossas edições e no trabalho de distribuição. Tenho histórias engraçadas como as apreensões de livros de Lenine, Estaline e Racine, para não falar desse livro perigosíssimo com o título de MANUAL DO BETÃO ARMADO! Uma vez a apreensão visou os posters do ITAÚ. Um deles tinha a imagem de um casal de namorados e um poema de A CRIANÇA E A VIDA: "O Amor é um pássaro azul/ num campo verde/ no alto da madrugada". No próprio dia da apreensão deste poster o Pide voltou à livraria ao fim da tarde e disse-me: "eu sei que ainda deve ter aquele poster dos namorados, queria oferecê-lo à minha namorada".


LÓGOS: Também escreveu no suplemento juvenil do Diário de Lisboa e colaborou na revista O tempo e o Modo. É autor de vários livros de poesia. Está previsto a publicação do livro “Julião e Outros Poemas” com uma tiragem de 150 exemplares assinados por si. Fale-nos dessa experiência como autor.

JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: Colaborei no Juvenil do DIÁRIO DE LISBOA, na revista O TEMPO E O MODO, no NOTÍCIAS DA AMADORA, no COMÉRCIO DO FUNCHAL e em mais alguns jornais e revistas. Publiquei MAR A MAR (1981); O DIFÍCIL COMÉRCIO DAS PALAVRAS, (1984); FRAGMENTO E ENIGMA (1985); RIO DO ESQUECIMENTO (1993); TODOS OS LIVROS, DIZ ELE (1999); PALAVRAS PARA FERNANDO PESSOA (2013). JULIÃO E OUTROS TEXTOS ainda não saiu, talvez na próxima Primavera. 

LÓGOS: O que pensa sobre os grupos editoriais que integram na sua estrutura empresarial várias editoras, descaracterizando-as e remetendo os editores para um plano secundário, isto é, transformando-o num funcionário comum, sem a importância e o carisma de outros tempos em que os critérios do editor eram uma garantia de qualidade e estavam mais próximos dos autores?

JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: Os grandes grupos editoriais e livreiros (Porto Editora e Leya) funcionam como os eucaliptos na floresta, secam tudo à sua volta. O risco é que nestas "auto-estradas" só quase circulam os chamados best sellers e obras que pouco  inovam. Eu defendo o trabalho das livrarias e dos editores independentes mas não esqueço que não existe a união necessária desde logo para se poderem defender das margens leoninas que os grandes grupos impõem. Também essa união possibilitaria a criação de mecanismos de cooperação com vantagens para todos. Este vai ser mais um combate em que me vou empenhar.

LÓGOS: Que autores publicou na Ulmeiro? E que livros lhe deram mais prazer editar?

JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: Gostei muito de editar alguns excelentes autores, destacando: Agostinho da Silva, António Ramos Rosa, Hélia Correia, Fernando Dacosta, António Salvado, Léo Ferré, Maria Ondina Braga, José Viale Moutinho, Alda Espírito Santo, Alberto Pimenta, Luís Veiga Leitão, Lawrence Ferlinghetti, Raul de Carvalho, Lidia Martinez, António Ferra, Hugo Beja, Miguel Barbosa, Noémia Seixas, Wanda Ramos, Abílio Teixeira Mendes, Maria Graciete Besse, Álamo Oliveira, Orlando da Costa, Mário Contumélias,  Pedro Barroso, José Jorge Letria, Ascêncio de Freitas e tantos outros. Destaco também as QUADRAS POPULARES, do Zeca Afonso, o METAMRFOSES DO VÍDEO do Alberto Pimenta,  todos os livros do Professor Agostinho da Silva, os livros do António Ramos Rosa e  o ÁLBUM DO LÉO FERRÉ,  o MONTEDEMO da Hélia Correia entre os que mais prazer me deram por ter o meu nome associado a estas edições.

LÓGOS: A livraria Espaço Ulmeiro, criada em 1969, foi ponto de encontro de alguns escritores. Como recorda hoje esses tempos?

JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: A livraria Ulmeiro desde o seu início em 1969 foi sempre um local de encontro. Foram inúmeras as sessões culturais que aqui tiveram lugar com destaque para a presença em algumas ocasiões do Zeca Afonso que fez memoráveis sessões de música; Carlos Paredes em mais do que uma ocasião; o poeta Manuel Maria, da Galiza; Mário Viegas (provavelmente um dos primeiros locais em Lisboa onde ele disse Poesia), Rogério Paulo, Fernando Assis Pacheco; o Professor Agostinho da Silva, Dinis Machado, Figueiredo Sobral, António Ferra, Lidia Martinez e tantos amigos. Entre os inesquecíveis, Léo Ferré e Lawrence Ferlinghetti, Natália Correia, David Mourão Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, António Lobo Antunes, Vitorino e Ruy Belo...

LÓGOS: Foram os leitores que deram o «golpe de misericórdia» a muitas livrarias que tiveram de fechar as suas portas, como aconteceu com a Espaço Ulmeiro. Este fenómeno não estará ligado aos maus hábitos de leitura das pessoas? A verdadeira literatura está sempre a perder leitores?

JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: As livrarias fecham por falta de leitores, sempre. Não há voltas a dar. Ainda estamos por cá vivendo e tentando remar contra a corrente. É sabido que não é nada fácil. Mas os tempos são de tempos de antena do futebol até à exaustão. Os índices de leitura são baixos. Houve um colega que me disse uma vez: "estás enganado, a nossa luta não deve ser para as pessoas lerem mais, mas sim para comprarem mais livros". O meu colega não tem razão, mas o marketing tem muito peso e o pessoal dos livros distraiu-se e deixou correr o marfim. Continuo a pensar que as questões da leitura se resolvem desde cedo na escola primária de preferência com bons hábitos de leitura, na existência de bibliotecas desde as escolares às públicas e municipais com bibliotecários que gostem de livros e de os ler, com  uma rede de livrarias independentes inserida nas comunidades, com os media a dedicarem  nem que seja apenas 3% do tempo que dedicam ao futebol. 

LÓGOS: Qual é a sua opinião sobre o panorama literário actual?

JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: Conheço mal o panorama literário actual, vivo na periferia e não frequento o meio nem tenho vontade de o frequentar. Vou lendo qualquer coisa mas é insuficiente. Haverá gente com valor, claro! Quem sou eu para os criticar ou julgar. Sempre vivi um pouco na margem e assim irei continuar.

LÓGOS: Recentemente criou uma associação cultural. Em que consiste a dinâmica deste projecto?

JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: A Espaço Ulmeiro Associação Cultural está já a funcionar com os seguintes objectivos: "Promoção do livro e da leitura. Espaços de exposições, compra e venda de livros. Edição e distribuição de livros e revistas. Cooperação livreira e editorial com os países de língua oficial portuguesa. Organização de feiras do livro e de festivais literários e artísticos nos países de língua oficial portuguesa”. Pretendemos chegar aos 300 associados em breve. A jóia é de 20,00€ e a quota mensal de 5,00€. Os associados beneficiam de 20% de desconto em todas as nossas realizações. Em breve sairá a público a revista O VOO DA CORUJA, dedicada à literatura, às Artes e à Ciência. O Director será o poeta e artista plástico Hugo Beja, também homem de ciência. O nº. Zero, que sairá nesta primavera, terá uma tiragem pequena prevista de 250 exemplares, sendo 75 exemplares para distribuir com um desenho original de Hugo Beja. A edição normal terá o preço de 10,00€ e a edição especial com o desenho de  Hugo Beja terá um custo de 30,00€. A E.U.A.C. é a nossa grande aposta neste momento.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

A LITERATURA É UMA FESTA

Quando se fala de literatura a arena enche-se de farpas e capotes, cavalos e cavaleiros. O boi é crítico: investe no espectáculo e envia quase todos para o matadouro. Mas há sempre alguém que lhe puxa pelo rabo, derrapa duas voltas em sapatinhos de ballet e afasta-se em pose de quem ganhou mais um prémio. Os aficionados aplaudem a obra taurina, pedem bis e autógrafos, lançam elogios e bijutarias; o director da corrida, esse editor bandarilheiro, sopra na corneta para mais uma edição.
E a festa da literatura continua. Não é rija porque a prosa é mole. Despidos do traje da vaidade intelectual, os escritores só então percebem que as luzes do espectáculo têm a modéstia potência que lhes assistem nas suas habilidades criativas. Antes, porém, não compreendem que o silêncio, o deles, também pode ser um favor que se presta à humanidade. Como não entendem que a humildade, se for genética, é o melhor capítulo da vida deles.

Conheço escritores para todos os gostos e desilusões: os que passam o tempo a palitar o pensamento em busca da tal metáfora associada ao pastelinho de bacalhau; os que velam pelas relíquias dos poetas mortos, angustiados que se sentem no arranjo de uma palavra que lhes escapa para a composição dum verso mumificado; os que mergulham na escrita com colete de salvação e bóia de sinalização a avisar «cuidado aqui está um cérebro a meter água»; os que ofendem o tempo dos seus leitores com charadas linguísticas e miniaturas reflexivas: são personalidades obscurecidas pela interioridade luminosa dos seus próprios pensamentos; pessoas afectadas: nem pavão nem plumagem. Há também os suicidas simulados: escrevem pelo prazer mórbido de identificarem aqueles que os acompanham no aborrecimento funesto dos seus próximos livros.

Conheço os que amam as palavras e a natureza. Porém, quando têm ideias, deixam-nas morrer de sede. Dedicam-se ao comércio das influências. O gráfico das suas inspirações fica sempre aquém daquilo que são capazes de escrever. Há os que procuram conforto na sombra dos outros. São escritores magoados e inseguros. Procuram o ombro alheio como almofada para a consciência deles. Têm atitudes mínimas, tanto na vida como na escrita, e são afectos a grandes enaltecimentos para proveito próprio. São uma espécie de toupeira. E, claro, também são oportunistas.

Conheço os que frequentam todos os salões de poesia e encontros literários. Têm inclinação para a cultura fútil e sofrem de delírio pelas personalidades bem instituídas. Devem-lhes em reconhecimento o que eles nunca poderão pagar em obra criada. Normalmente têm um discurso de mercadores (andam com os seus livros num saco), e as ideias expostas no papel têm a caducidade dos produtos de necessidade duvidosa. São escritores que dizem por fora o que não conseguem escrever por dentro. Uma questão de interioridade.

Os mais curiosos e patéticos são os que procuram salvação. Passatempo: morrer quantas vezes for necessário para se convencerem de que ainda estão vivos. Ilusionistas do disparate. Ressuscitam sempre quando ninguém dá conhecimento da existência deles. Cadáveres convencidos.
E há os que se prestam à grata função decorativa em sessões de homenagens e festas literárias. São flores para tanto colorido. Em termos literários, são criativos na imbecilidade e repetitivos na abordagem poética. Entre dois copos, croquetes em posição de mastro e guardanapo desfraldado, nas tais festas giras com editores marinheiros e críticos enjoados, os seus projectos navegam de vento em pompa e circunstância. Na ressaca, as promessas da véspera encalham nos cornos do esquecimento.
Só as flores prometem tanta beleza.

Este é um escritor original: amigo da literatura ao ponto de rejeitar a escrita. Mantém-se fiel à angústia que herdou da sua cisma visionária. O tempo é a sua musa. A preguiça a sua obra. Expõe-se nos labirintos da ilusão. Tem a intuição da palavra, mas transformou-se num indivíduo amaldiçoado pela arquitectura da frase.
E assim vai o romance e a poesia em cortejo de sacrifício; e embora seja pobre a boda, da festa ninguém desiste.

fep

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

O RISO DE RIMBAUD

«Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível.»
Arthur Rimbaud (1854-1891)


Sons. Que sons? Quem os ouve? Felizes os cegos, esses mestres dos sentidos avassaladores. Escolhi esta especialização, espécie de cegueira subjectiva e representação do mundo formada por imagens trazidas pelos sons e pelos odores, depois de desistir de visões das palavras poéticas. Poderosas sensações. Poderosos sons e odores que vêm de outros séculos menos amenos.

O riso sarcástico de Rimbaud apanhou-me desprevenida, como um golpe de vento que levanta a saia rodada. Que som. Fiquei confinada àquele lugar misterioso entre África e Europa. Estou convencida de que viajo há anos e que os meus companheiros de viagem são – por favor façam um esforço de imaginação – Rimbaud e Rimbaud. O Rimbaud da ida e o Rimbaud do regresso, os quais se encontram naquele lugar peculiar: um, com cerca de 20 anos, a procurar um renascimento aventureiro e infinito e o outro, com 36 anos, a aceitar o renascimento definitivo da morte. 

O comboio parou. É uma pequena Estação à margem do burburinho civilizado. O Chefe da Estação esteve ali toda a sua vida e além dos comboios e dos passageiros, que constituem o seu monótono fardo diário, tem uma paixão: o pequeno jardim.

Sinto o perfume das flores, uma colecção de odores perfeitamente ordenada: rosas ao centro, três filas em “u” de jasmim e bem ao fundo, junto ao pequeno muro onde se senta o Chefe da Estação enquanto come o seu pão quente com presunto fumado, grandes arbustos de damas-da-noite. O perfume intenso denuncia a ausência do sol e a noite tomba sobre o meu espírito.

O riso de Rimbaud ecoa no seu próprio riso, como uma metáfora. Qual é o Rimbaud que ri? O que desistiu de escrever por nada mais ter a dizer, porque se convenceu de que ninguém estaria interessado em ler a sua poesia, angustiado e revoltado contra a banalidade do meio literário francês? Ou seria o andarilho, comerciante de café, traficante de armas, mercador de escravos, doente canceroso à beira do precipício da morte? Que som.

O comboio partiu. Rimbaud era um especialista em partir, isso sabia eu. Aos 20 anos já ele tinha lido todos os livros da Biblioteca de Babel, que como se sabe é infinita, e ele partia, partia continuamente, como se o mundo que apenas conhecera dos livros o chamasse. E mesmo quando estava parado Rimbaud viajava para dentro de si próprio à procura da próxima partida pelos descaminhos de França, Inglaterra, Áustria, Alemanha, Itália, Suécia. Indonésia. Chipre. Etiópia. Como se desenhasse uma geografia da inquietação.

E depois o regresso. A vida e a morte a partir e a chegar, a dor, o último descaminho. Mas antes da última dor os seus pés eram como um tapete mágico, levando-o numa viagem linear e também alegórica. Molhava o rosto num ribeiro e ali estava a imensidão do oceano. Empurrava a pedra a custo até ao topo da montanha, o Parnaso, porque julgava ser um deus, porque acreditava que um dia poderia ter reunido em si toda a poesia e todos os poetas, mas era apenas Sísifo, condenado a repetir para sempre a mesma tarefa. Todas as viagens de Rimbaud eram um absurdo, uma preparação para o regresso, uma procura recorrente da compreensão da própria viagem. Nesse regresso, Rimbaud remeteu-se ao silêncio e ao exílio, contando com o seu engenho para tudo experimentar e de tudo desistir.

Eu era a sombra da morte. E era também nesta encruzilhada que eu vacilava qual Sísifo, à procura do riso de Rimbaud, aquele som, que som. À procura da poesia e de todos os poetas, sempre a viajar e também a regressar para compreender todas as minhas viagens. Para escrever silêncios, noites, anotar o inexprimível.

Não posso abdicar da minha cegueira subjectiva e persigo outros odores que não me satisfazem: café, pólvora, peixe seco, suor, dor e sangue. Quando o comboio pára, saio e regresso a pé. Caminho levemente sobre os passos do Poeta. À procura dos sons. Que sons? Quem os ouve? Pressinto esta realidade sonhada à medida que me aproximo do jardim onde o Chefe da Estação está sentado no pequeno muro, enquanto come o seu pão quente com presunto fumado. Tão nítida a fome, tão perfumada a noite, tão inexprimível o riso de Rimbaud.

Depois, o silêncio. Se a palavra não for iluminação, é urgente deixar a página em branco, é melhor manter os olhos fechados nas sombras.
Adília César

LÓGOS 10 - MAIO 2022 (ÍNDICE)