domingo, 24 de setembro de 2017

7 UNIVERSOS DE POESIA - RITA TABORDA DUARTE

LÓGOS – Biblioteca do Tempo realizou uma série de entrevistas a 7 poetas portugueses, cujo questionário (com base em citações de autores universais) foi igual para todos excepto a última questão, mais pessoal. A particularidade deste projecto foca-se no facto de nenhum dos poetas contactados ter tido conhecimento das respostas dos seus pares. As 7 entrevistas serão posteriormente publicadas na revista LÓGOS – Biblioteca do Tempo.


LÓGOS: Paul Éluard disse (e cito de memória) que poeta é aquele que inspira, e não aquele que é inspirado. Ora, como parece haver mais “poetas” do que leitores de poesia, somos efectivamente um país de “inspirados”?

RITA TABORDA DUARTE: Em tempos de antanho escrevi qualquer coisa como esta num livro já antigo, de 1998, editado na Black Sun Editores, pelo Fernando Guerreiro, este, sim, um poeta que inspira: «um poema/ a cemporcentimento/ respirado/ é cinquenta por cento inspiração/ e outros cinquentital/ de expirado». A poesia é coisa autofágica que se consome a si mesma: provoca as  próprias feridas, esgatanha-as quase até ao osso das palavras e põe-se a lambê-las, com a aspereza da língua que lhe coube. Os poetas serão, naturalmente, os únicos leitores de poesia. Nisso, a poesia é muito similar aos tratados de engenharia mecânica; regra geral, só os engenheiros mecânicos os lêem. Um poeta escreve por cima dos poemas que lê e rasura os versos alheios com versos próprios, que podem, por sua vez, inspirar outro poeta, nessa fadiga absurda de encavalitar palavras no meio de uma folha. Quem mais, senão os poetas, suportaria este cansaço de tentar dar sentidos (vacuíssimos) a versos, frases encolhidas, arremessados ao centro da página, ao arrepio das margens, largas. Sim, é verdade que estou a fazer vista grossa à pergunta, desconversando como se nem fora comigo. Mas, acatei a provocação das aspazinhas a mosquear a palavra «poeta». Que se pode dizer sobre isto senão que os poetas são como as pessoas: há umas que são excepcionais, outras meramente excelentes, há boas pessoas, coitadas, e há malta do piorio. E, sim, no geral, haverá gente em demasia neste mundo.

LÓGOS: “O que distingue um grande poeta é o facto de ele nos dizer algo que ninguém ainda disse, mas que não é novo para nós.” Partindo deste pressuposto de Ortega y Gasset, qual é o teu «ponto de partida» para a construção de um poema?

RITA TABORDA DUARTE: Ou é isso, como diz Ortega e Gasset, ou outra coisa que tal, sendo também verdade o seu contrário. O Herberto declara sobre a poesia (a grande, claro): «A propósito da poesia pode dizer-se: A lâmpada faz com que se veja a própria lâmpada.». Mas bem sabemos que assim pode não ser: a lâmpada, como a poesia, pode ofuscar e ocultar, em vez de desvendar. É certo que haverá poemas que nascem não sei onde, vêm não sei como e que se escrevem não sei porquê. A outros, no entanto, consigo perseguir-lhes o rasto: uma palavra que teima em deslaçar-se da mole esgotada da língua, saltando para os rebordos do dicionário; a resposta urgente a um verso demasiado bem feito, dos tais que dizem o que ninguém disse, mas que todos sabíamos, sem saber que o sabíamos antes de o poema o dizer. Ou, por vezes, a voz poética germina como «o desenvolvimento de uma exclamação», para usar a expressão de Paul Valéry: um certo reparar que surge num repente e a consciência imediata de que há tão poucas palavras para o dizer.

LÓGOS: A maior verdade de um poeta é pôr o mundo a falar nos seus versos? É uma tragédia se não o entendem no seu tempo? Tens consciência da «utilidade» da tua poesia no mundo?

RITA TABORDA DUARTE: Manuel Gusmão, num livro de ensaios brilhante intitulado Tatuagem e Palimpsesto responde à primeira pergunta e prossegue para além dela: «(…) a poesia não é uma palavra cheia de silêncio em volta; pelo contrário e, contra uma longa tradição, eu julgo que ela não só responde, como pede resposta. Fingindo, emendando ou obscuramente esclarecendo a vida de quem escreve, ela espera activamente co-mover o viver de quem lê quem a diz». Nem é tanto o caso de pôr o mundo a falar nos versos, nem sequer de o invocar, simplesmente, ou de o pôr em movimento. Trata-se de uma forma de criar mais mundo no mundo; por isso, será a poesia quase naturalmente incompreendida; por isso, pertencerá a um tempo mais além, algures num futuro. Seamus Heaney diz-nos que «o objectivo da arte, da poesia, é de alguma forma reparar o que está danificado.» Da minha poesia, não me atrevo a ter a pretensão de reparar coisa alguma e certamente que, assim, não posso ter a consciência da sua utilidade, mas os poemas alheios são-me bem úteis; por exemplo, para responder a perguntas em entrevistas. Como este de Ramos Rosa, que arrebata (mesmo contrariando parte do que acabei de dizer), e de uma penada, a questão do mundo, das verdades da poesia e suas contingências ou utilidades:       
                                  
                                   Escreve-se para que algo aconteça
                                   Sem acrescentar nada ao mundo
                                   Por isso um pássaro de pedra se levanta
                                   E logo se recolhe ao ninho da sua leve sombra

                                   Assim a palavra se abre e fecha como uma concha
                                   ou como um leque de um muro que respira
                                   Quando a palavra parte é já um retorno ao sono
                                   Quando a voz se levanta é já o frémito de uma queda

                                   O poema recebe o alento com que se move
                                   E a si mesmo se abraça quando abraça o tronco
                                   de um deleite branco ou de um puro devaneio
                                   O seu lugar é o seu movimento azul ou branco
                                   e o que nele canta é uma pedra trespassada
                                   pela sombra que acompanha a sua voz

LÓGOS: “O poeta não exagera profundamente, mas amplamente” (Mattew Arnold). És tentada, como poeta, a destruir a linguagem para criar outra linguagem?

RITA TABORDA DUARTE: Agora, sim, há qualquer coisa a dizer; qualquer coisa do espanto: O ser humano é um estranhíssimo animal. Não foi fácil, nada fácil com certeza, construir um sistema de comunicação tão complexo como são as nossas línguas, não para comunicar e transmitir informações de modo mais certeiro, mas precisamente com o intuito de as desarranjar e complicar e intricar e ocultar, que é o que amiúde fazemos quando falamos, mais ainda quando escrevemos. Mesmo na nossa língua do quotidiano, comportamo-nos como se estivéssemos num permanente combate contra a linguagem, a retorcer o vocabulário, a sintaxe, a gramática: a cada frase, uma rasteira à língua, a ver se a contornamos, como se não nos conformássemos à sua fórmula original: servimo-nos de metáforas, apuramos ironias, ambiguidades, arquitectamos labirintos verbais, equilibramos malabarismos estilísticos, e dizemos umas tantas coisas, não para dizer o que dizemos, mas para dizer outra coisa ainda. Provoca-me imensa perplexidade estarmos sempre, enquanto falantes, a tentar passar a perna à linguagem. Na verdade, ser poeta é só ir um tudo nada mais longe, quase ao limite, nesta convicção de que a nossa própria língua está sempre aquém daquilo que nem sequer sabemos que queremos dizer. Não procuro, quando escrevo, destruir a linguagem para criar outra (é uma maçada, mas na verdade andamos sempre algemados à nossa língua; aliás pior do que a usarmos, nós somos a nossa língua), mas que há um irritado braço de ferro contra ela, isso sim. Talvez isso possa consistir uma possível definição de poesia (mais uma): uma permanente resistência à língua: a poesia, assim, como uma forma de atrito.

LÓGOS: Nadine Gordimer disse que “A poesia é ao mesmo tempo um esconderijo e um altifalante”. Quanto da tua poesia é mistério e «leitura infinita»?

RITA TABORDA DUARTE: Posso deixar as perguntas difíceis para o fim? Ou como me perguntam os meus alunos em cada exame: «Posso alterar a ordem das perguntas»?..
Penso que se pode dizer, a partir da citação de Nadine Gordimer, que um poema é uma espécie de pedra atirada ao charco da linguagem: ouvimos e vemos o embate, não sabemos bem como se vão propagar as ondas concêntricas e até onde. No entanto, num grande poema, fica a sensação de que a pedra vai alterar qualquer imo, qualquer âmago, que é como quem diz agitar algo lá no lodo, no fundo do charco. É essa a profundidade de um bom texto poético; a sensação de que deixa lastro. E é isto; agora responder à pergunta, isso é que não, assobio, pois, para o lado. Responder? Responda quem lê, ora.

LÓGOS: “Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo” (John keats). Qual é a tua opinião sobre esta floresta de poetas que cresce imparável numa eterna falsidade de vozes?

RITA TABORDA DUARTE: O argumento de autoridade de Keats não me convence por aí além. A poesia que surge assim naturalmente, numa espécie de messiânica fatalidade ou aparição mística, pode dar poetas mais inspirados do que inspiradores, para usar a expressão de Éluard com que se inicia a entrevista. A poesia que me interessa nasce do espanto, de certa perplexidade perante as coisas do mundo que se nos aparecem, que nos confrontam; nasce de uma espécie de irritação contra a linguagem, que constrói o mundo à sua semelhança e imagem, é certo, mas que simultaneamente se revela pobre e rasa para o dizer nas suas complexidades e contradições e ambiguidades. Quanto à questão…na verdade estas perguntas parecem-me sempre uma rasteira. Quando penso na frase de Sartre que nos dizia que o inferno são os outros, não deixo nunca de ter esta incómoda consciência do inferno que eu —um outro para os outros—  posso ser também relativamente aos demais.. É importante ter isto em mente, com alguma regularidade… de resto, penso que os poetas têm uma enorme vantagem relativamente às árvores falsas, as de plástico: demoram muito menos tempo a desaparecer e reciclam-se com bem mais facilidade.

LÓGOS: A poesia é confissão? Ou uma filosofia do espírito que nomeia a vida?
           
RITA TABORDA DUARTE: Não sei se os padres aceitam poemas quando os fiéis se põem em genuflexão, às portas dos confessionários, mas a verdade é que eu percebo muito pouco, quase nada, dos rituais eclesiásticos. Aí, há que perguntar a quem de direito. Quanto à filosofia que me nomeia a vida, poderei dizer que é muito pouco poética e tendo a ver com o espírito, será essencialmente com o espírito de sacrifício. Primms uiuere, deinde philosophare. E à mesa prefiro enterrar os dentes no pão, no pão sem literatura, como diria o Luiz Pacheco. E no meio de tudo isto poetar, claro, de preferência do lado de fora da vida…da outra, a que tem menos sem filosofia do que contas por pagar.

LÓGOS: Nathalie Sarraute: “A poesia numa obra é o que faz aparecer o invisível.” Já algum crítico conseguiu evidenciar na tua obra o que pretendeste, deliberadamente, que permanecesse invisível numa primeira leitura?

RITA TABORDA DUARTE: Bem hajam os críticos que não andam a esgatanhar os poemas, à cata de implícitas intenções autorais que deliberadamente, ou não, o autor tivesse querido ocultar. Ora, acontece frequentemente (e já me aconteceu) descobrir-se uma referência, uma alusão velada, que, numa primeira leitura, pareceria estar escondida e que o acto crítico tornou evidente. Voltando à metáfora da pedra no charco, que vale para tudo e para o seu contrário (e curiosamente é sempre a um charco que a pedra vai parar, mesmo nestas coisas da poesia, nunca a um lago de águas límpidas), sempre é mais interessante quando o crítico mostra as águas mais turvas, ao arremeter ao poema pedregulho do seu olhar. Desse confronto, sim, é que podem resultar alguns salpicos e uma boa leitura crítica.  

LÓGOS: “A poesia não é uma questão de sentimentos, é uma questão de linguagem. É linguagem que cria sentimentos” (Umberto Eco). Consideras que a verdadeira poesia é uma arte cheia de regras e técnicas e que procura ter uma boa relação com os sentimentos?

RITA TABORDA DUARTE: Sou muito pouco platónica no que toca a essa versão de mundo (seja poético ou não), que contrapõe o verdadeiro ao falso e que embarca num maniqueísmo, em que me movo com certa dificuldade. Mesmo sabendo, intuitivamente, o que considero a grande poesia, dificilmente sou capaz de a descrever, com critérios sequer definíveis, quanto mais definitivos. O conceito de «grande poesia» pode ser, talvez, descrito através de metáforas (a poesia a fazer-se a si mesma); foi o que se buscou fazer (aproximações ao conceito de poesia), no fundo, com as citações (Eco, Sarraute, Keats, Éluard) de que, ao longo desta entrevista, se abusou em cada pergunta. Vivemos neste paradoxo em que a linguagem que diz o mundo cria em simultâneo esse mundo que, por seu turno, vai dizendo, e que por isso, de imediato, nos surge já de um modo diverso, exactamente porque foi dito. A resistência contra esta língua que constrói e diz mas que, ainda assim, ou por isso mesmo, fica aquém, é para mim uma boa definição de poesia. Mais do que o domínio de regras e técnicas, cada poema deve ser o resultado de um trabalho árduo (e perplexo) sobre a linguagem: há que conhecê-la bem, para a minar por dentro, como ela bem merece.

LÓGOS: És também autora de literatura para a infância, já com uma obra considerável. A tua linguagem poética influencia de algum modo a escrita de histórias para crianças?

RITA TABORDA DUARTE: Poderá parecer uma frase feita, mas, na realidade, não faço uma verdadeira distinção entre o que procuro na escrita poética e o que busco nos livros que escrevo para miúdos. Entre os meus livros infantis e a minha poesia, existirá a mesma pulsão: o mesmo espanto diante das palavras e a sua relação, estranha, tão estranha, com as coisas do mundo. O poeta é, no fundo, um escritor um bocadinho infantil, ou seja, necessita de ter, face à linguagem, a mesma atitude da criança, que adapta a língua que fala à lógica da sua interpretação do mundo. Trata-se de uma capacidade de receber a linguagem sem o lastro de um uso gasto, prefabricado, de acolher as palavras como se as ouvíssemos pela primeira vez. É isso que faz a criança perante a língua, perante o mundo. É o que a faz olhar para o símbolo de Lisboa e reconhecer no bojo da caravela a boca escancarada de um gigante; aquele mesmo princípio que a faz dizer «partida, "lagarta" [em vez de largada], fugida»; o mesmo princípio que a faz sorrir, quando alguém lhe fala das asas da chávena, quando toda a gente sabe, até ela, que uma chávena não pode voar. Quase nunca.

Biografia:

Rita Taborda Duarte nasceu em 1973. É poeta, crítica literária, professora do ensino superior e escritora de livros para a infância. Foi membro da Comissão de Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian e escreve regularmente sobre poesia e ensaio, nas mais diversas publicações. Tem integrado júris de prémios para originais de literatura infanto-juvenil (Prémio Branquinho da Fonseca – Expresso/Gulbenkian), de poesia e de ficção (Prémio PEN-Club português). Em 1998, publica o seu primeiro livro de poesia Poética Breve, Black Sun Editores, a que se seguiram outros dois: Na estranha Casa de um Outro e Dos Sentidos das Coisas (co-autoria de André Barata). Em 2003, vence o prémio Branquinho da Fonseca Expresso-Gulbenkian, com o livro A Verdadeira História da Alice. A partir daí, tem escrito com regularidade para crianças e jovens, contando com uma dezena de obras publicadas, muitas delas incluídas no Plano Nacional de Leitura.
Em 2015 publica o livro de poesia Roturas e Ligamentos (Abysmo) em parceria com André da Loba (ilustrações).
Certa vez, num encontro numa biblioteca escolar, um menino chamou-a «Escritora Infantil». Desde esse dia, assumiu o epíteto e diverte-se a brincar, infantilmente, com as palavras.

Poesia publicada:

Roturas e Ligamentos. Lisboa, Abysmo, 2015 (com ilustrações de André da Loba).
Elogio do Outono, Lisboa, o homem do saco, 2014 (concepção gráfica Luís Henriques).
Experiências Descritivas: Dos sentidos das coisas/Círculos, Lisboa, Editorial Caminho, 2007 (Co-autoria de André Barata, com ilustrações de Luís Henriques).
Na Estranha Casa de Um Outro: Esboço de uma biografia poética, Lisboa, Asa, 2006.
Poética Breve, Lisboa, Black Sun Editores, 1998.


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