LÓGOS
– Biblioteca do Tempo realizou uma série de entrevistas a 7 poetas portugueses,
cujo questionário (com base em citações de autores universais) foi igual para
todos excepto a última questão, mais pessoal. A particularidade deste projecto
foca-se no facto de nenhum dos poetas contactados ter tido conhecimento das
respostas dos seus pares. As 7 entrevistas serão posteriormente publicadas na
revista LÓGOS – Biblioteca do Tempo.
LÓGOS:
Paul Éluard disse (e cito de memória) que poeta é aquele que inspira, e não
aquele que é inspirado. Ora, como parece haver mais “poetas” do que leitores de
poesia, somos efectivamente um país de “inspirados”?
RITA
TABORDA DUARTE: Em tempos de antanho escrevi qualquer
coisa como esta num livro já antigo, de 1998, editado na Black Sun Editores,
pelo Fernando Guerreiro, este, sim, um poeta que inspira: «um poema/ a
cemporcentimento/ respirado/ é cinquenta por cento inspiração/ e outros
cinquentital/ de expirado». A poesia é coisa autofágica que se consome a si
mesma: provoca as próprias feridas, esgatanha-as
quase até ao osso das palavras e põe-se a lambê-las, com a aspereza da língua
que lhe coube. Os poetas serão, naturalmente, os únicos leitores de poesia. Nisso,
a poesia é muito similar aos tratados de engenharia mecânica; regra geral, só
os engenheiros mecânicos os lêem. Um poeta escreve por cima dos poemas que lê e
rasura os versos alheios com versos próprios, que podem, por sua vez, inspirar
outro poeta, nessa fadiga absurda de encavalitar palavras no meio de uma folha.
Quem mais, senão os poetas, suportaria este cansaço de tentar dar sentidos
(vacuíssimos) a versos, frases encolhidas, arremessados ao centro da página, ao
arrepio das margens, largas. Sim, é verdade que estou a fazer vista grossa à
pergunta, desconversando como se nem fora comigo. Mas, acatei a provocação das
aspazinhas a mosquear a palavra «poeta». Que se pode dizer sobre isto senão que
os poetas são como as pessoas: há umas que são excepcionais, outras meramente
excelentes, há boas pessoas, coitadas, e há malta do piorio. E, sim, no geral,
haverá gente em demasia neste mundo.
LÓGOS:
“O que distingue um grande poeta é o facto de ele nos dizer algo que ninguém
ainda disse, mas que não é novo para nós.” Partindo deste pressuposto de Ortega
y Gasset, qual é o teu «ponto de partida» para a construção de um poema?
RITA
TABORDA DUARTE: Ou é isso, como diz Ortega e Gasset,
ou outra coisa que tal, sendo também verdade o seu contrário. O Herberto declara
sobre a poesia (a grande, claro): «A propósito da poesia pode dizer-se: A
lâmpada faz com que se veja a própria lâmpada.». Mas bem sabemos que assim pode
não ser: a lâmpada, como a poesia, pode ofuscar e ocultar, em vez de desvendar.
É certo que haverá poemas que nascem não sei onde, vêm não sei como e que se escrevem
não sei porquê. A outros, no entanto, consigo perseguir-lhes o rasto: uma
palavra que teima em deslaçar-se da mole esgotada da língua, saltando para os
rebordos do dicionário; a resposta urgente a um verso demasiado bem feito, dos
tais que dizem o que ninguém disse, mas que todos sabíamos, sem saber que o
sabíamos antes de o poema o dizer. Ou, por vezes, a voz poética germina como «o
desenvolvimento de uma exclamação», para usar a expressão de Paul Valéry: um
certo reparar que surge num repente e a consciência imediata de que há tão
poucas palavras para o dizer.
LÓGOS:
A maior verdade de um poeta é pôr o mundo a falar nos seus versos? É uma
tragédia se não o entendem no seu tempo? Tens consciência da «utilidade» da tua
poesia no mundo?
RITA
TABORDA DUARTE: Manuel Gusmão, num livro de ensaios
brilhante intitulado Tatuagem e Palimpsesto
responde à primeira pergunta e prossegue para além dela: «(…) a poesia não é
uma palavra cheia de silêncio em volta; pelo contrário e, contra uma longa
tradição, eu julgo que ela não só responde, como pede resposta. Fingindo,
emendando ou obscuramente esclarecendo a vida de quem escreve, ela espera
activamente co-mover o viver de quem lê quem a diz». Nem é tanto o caso de pôr
o mundo a falar nos versos, nem sequer de o invocar, simplesmente, ou de o pôr
em movimento. Trata-se de uma forma de criar mais mundo no mundo; por isso,
será a poesia quase naturalmente incompreendida; por isso, pertencerá a um
tempo mais além, algures num futuro. Seamus Heaney diz-nos que «o objectivo da
arte, da poesia, é de alguma forma reparar o que está danificado.» Da minha
poesia, não me atrevo a ter a pretensão de reparar coisa alguma e certamente
que, assim, não posso ter a consciência da sua utilidade, mas os poemas alheios
são-me bem úteis; por exemplo, para responder a perguntas em entrevistas. Como
este de Ramos Rosa, que arrebata (mesmo contrariando parte do que acabei de dizer),
e de uma penada, a questão do mundo, das verdades da poesia e suas contingências
ou utilidades:
Escreve-se para que algo aconteça
Sem
acrescentar nada ao mundo
Por
isso um pássaro de pedra se levanta
E
logo se recolhe ao ninho da sua leve sombra
Assim
a palavra se
abre e fecha como uma concha
ou
como um leque de um muro que respira
Quando
a palavra parte é já um retorno ao sono
Quando
a voz se levanta é já o frémito de uma queda
O
poema recebe o alento com que se move
E
a si mesmo se abraça quando abraça o tronco
de
um deleite branco ou de um puro devaneio
O
seu lugar é o seu movimento azul ou branco
e
o que nele canta é uma pedra trespassada
pela
sombra que acompanha a sua voz
LÓGOS:
“O poeta não exagera profundamente, mas amplamente” (Mattew Arnold). És tentada,
como poeta, a destruir a linguagem para criar outra linguagem?
RITA
TABORDA DUARTE: Agora, sim, há qualquer coisa a dizer;
qualquer coisa do espanto: O ser humano é um estranhíssimo animal. Não foi
fácil, nada fácil com certeza, construir um sistema de comunicação tão complexo
como são as nossas línguas, não para comunicar e transmitir informações de modo
mais certeiro, mas precisamente com o intuito de as desarranjar e complicar e
intricar e ocultar, que é o que amiúde fazemos quando falamos, mais ainda
quando escrevemos. Mesmo na nossa língua do quotidiano, comportamo-nos como se
estivéssemos num permanente combate contra a linguagem, a retorcer o
vocabulário, a sintaxe, a gramática: a cada frase, uma rasteira à língua, a ver
se a contornamos, como se não nos conformássemos à sua fórmula original:
servimo-nos de metáforas, apuramos ironias, ambiguidades, arquitectamos
labirintos verbais, equilibramos malabarismos estilísticos, e dizemos umas tantas
coisas, não para dizer o que dizemos, mas para dizer outra coisa ainda.
Provoca-me imensa perplexidade estarmos sempre, enquanto falantes, a tentar passar a perna à linguagem. Na verdade,
ser poeta é só ir um tudo nada mais longe, quase ao limite, nesta convicção de
que a nossa própria língua está sempre aquém daquilo que nem sequer sabemos que
queremos dizer. Não procuro, quando escrevo, destruir a linguagem para criar
outra (é uma maçada, mas na verdade andamos sempre algemados à nossa língua;
aliás pior do que a usarmos, nós somos a nossa língua), mas que há um irritado
braço de ferro contra ela, isso sim. Talvez isso possa consistir uma possível
definição de poesia (mais uma): uma permanente resistência à língua: a poesia,
assim, como uma forma de atrito.
LÓGOS:
Nadine Gordimer disse que “A poesia é ao mesmo tempo um esconderijo e um
altifalante”. Quanto da tua poesia é mistério e «leitura infinita»?
RITA
TABORDA DUARTE: Posso deixar as perguntas difíceis
para o fim? Ou como me perguntam os meus alunos em cada exame: «Posso alterar a
ordem das perguntas»?..
Penso que se pode dizer, a partir da citação de
Nadine Gordimer, que um poema é uma espécie de pedra atirada ao charco da
linguagem: ouvimos e vemos o embate, não sabemos bem como se vão propagar as
ondas concêntricas e até onde. No entanto, num grande poema, fica a sensação de
que a pedra vai alterar qualquer imo, qualquer âmago, que é como quem diz
agitar algo lá no lodo, no fundo do charco. É essa a profundidade de um bom
texto poético; a sensação de que deixa lastro. E é isto; agora responder à
pergunta, isso é que não, assobio, pois, para o lado. Responder? Responda quem
lê, ora.
LÓGOS:
“Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor
que não surja mesmo” (John keats). Qual é a tua opinião sobre esta floresta de
poetas que cresce imparável numa eterna falsidade de vozes?
RITA
TABORDA DUARTE: O argumento de autoridade de Keats não
me convence por aí além. A poesia que surge assim naturalmente, numa espécie de
messiânica fatalidade ou aparição mística, pode dar poetas mais inspirados do
que inspiradores, para usar a expressão de Éluard com que se inicia a
entrevista. A poesia que me interessa nasce do espanto, de certa perplexidade
perante as coisas do mundo que se nos aparecem, que nos confrontam; nasce de
uma espécie de irritação contra a linguagem, que constrói o mundo à sua
semelhança e imagem, é certo, mas que simultaneamente se revela pobre e rasa
para o dizer nas suas complexidades e contradições e ambiguidades. Quanto à
questão…na verdade estas perguntas parecem-me sempre uma rasteira. Quando penso
na frase de Sartre que nos dizia que o inferno são os outros, não deixo nunca
de ter esta incómoda consciência do inferno que eu —um outro para os outros— posso ser também relativamente aos demais.. É
importante ter isto em mente, com alguma regularidade… de resto, penso que os
poetas têm uma enorme vantagem relativamente às árvores falsas, as de plástico:
demoram muito menos tempo a desaparecer e reciclam-se com bem mais facilidade.
LÓGOS:
A poesia é confissão? Ou uma filosofia do espírito que nomeia a vida?
RITA
TABORDA DUARTE: Não sei se os padres aceitam poemas
quando os fiéis se põem em genuflexão, às portas dos confessionários, mas a
verdade é que eu percebo muito pouco, quase nada, dos rituais eclesiásticos.
Aí, há que perguntar a quem de direito. Quanto à filosofia que me nomeia a
vida, poderei dizer que é muito pouco poética e tendo a ver com o espírito,
será essencialmente com o espírito de sacrifício. Primms uiuere, deinde philosophare. E à mesa prefiro enterrar os
dentes no pão, no pão sem literatura, como diria o Luiz Pacheco. E no meio de
tudo isto poetar, claro, de preferência do lado de fora da vida…da outra, a que
tem menos sem filosofia do que contas por pagar.
LÓGOS:
Nathalie Sarraute: “A poesia numa obra é o que faz aparecer o invisível.” Já
algum crítico conseguiu evidenciar na tua obra o que pretendeste,
deliberadamente, que permanecesse invisível numa primeira leitura?
RITA
TABORDA DUARTE: Bem hajam os críticos que não andam a
esgatanhar os poemas, à cata de implícitas intenções autorais que
deliberadamente, ou não, o autor tivesse querido ocultar. Ora, acontece
frequentemente (e já me aconteceu) descobrir-se uma referência, uma alusão
velada, que, numa primeira leitura, pareceria estar escondida e que o acto
crítico tornou evidente. Voltando à metáfora da pedra no charco, que vale para
tudo e para o seu contrário (e curiosamente é sempre a um charco que a pedra
vai parar, mesmo nestas coisas da poesia, nunca a um lago de águas límpidas),
sempre é mais interessante quando o crítico mostra as águas mais turvas, ao
arremeter ao poema pedregulho do seu olhar. Desse confronto, sim, é que podem
resultar alguns salpicos e uma boa leitura crítica.
LÓGOS:
“A poesia não é uma questão de sentimentos, é uma questão de linguagem. É
linguagem que cria sentimentos” (Umberto Eco). Consideras que a verdadeira
poesia é uma arte cheia de regras e técnicas e que procura ter uma boa relação
com os sentimentos?
RITA
TABORDA DUARTE: Sou muito pouco platónica no que toca
a essa versão de mundo (seja poético ou não), que contrapõe o verdadeiro ao
falso e que embarca num maniqueísmo, em que me movo com certa dificuldade.
Mesmo sabendo, intuitivamente, o que considero a grande poesia, dificilmente
sou capaz de a descrever, com critérios sequer definíveis, quanto mais
definitivos. O conceito de «grande poesia» pode ser, talvez, descrito através
de metáforas (a poesia a fazer-se a si mesma); foi o que se buscou fazer
(aproximações ao conceito de poesia), no fundo, com as citações (Eco, Sarraute,
Keats, Éluard) de que, ao longo desta entrevista, se abusou em cada pergunta. Vivemos neste paradoxo em que a linguagem
que diz o mundo cria em simultâneo esse mundo que, por seu turno, vai dizendo,
e que por isso, de imediato, nos surge já de um modo diverso, exactamente
porque foi dito. A resistência contra esta língua que constrói e diz mas que,
ainda assim, ou por isso mesmo, fica aquém, é para mim uma boa definição de
poesia. Mais do que o domínio de regras e técnicas, cada poema deve ser o
resultado de um trabalho árduo (e perplexo) sobre a linguagem: há que
conhecê-la bem, para a minar por dentro, como ela bem merece.
LÓGOS:
És também autora de literatura para a infância, já com uma obra considerável. A
tua linguagem poética influencia de algum modo a escrita de histórias para
crianças?
RITA
TABORDA DUARTE: Poderá parecer uma frase feita, mas, na realidade, não faço
uma verdadeira distinção entre o que procuro
na escrita poética e o que busco nos
livros que escrevo para miúdos. Entre os meus
livros infantis e a minha poesia, existirá a mesma pulsão: o mesmo espanto
diante das palavras e a sua relação, estranha, tão estranha, com as coisas do
mundo. O poeta
é, no fundo, um escritor um bocadinho infantil, ou seja, necessita de ter, face
à linguagem, a mesma atitude da criança, que adapta a língua que fala à lógica
da sua interpretação do mundo. Trata-se de uma capacidade de receber a
linguagem sem o lastro de um uso gasto, prefabricado, de acolher as palavras
como se as ouvíssemos pela primeira vez. É isso que faz a criança perante a
língua, perante o mundo. É o que a faz olhar para o símbolo de Lisboa e
reconhecer no bojo da caravela a boca escancarada de um gigante; aquele mesmo
princípio que a faz dizer «partida, "lagarta" [em vez de largada],
fugida»; o mesmo princípio que a faz sorrir, quando alguém lhe fala das asas da
chávena, quando toda a gente sabe, até ela, que uma chávena não pode voar.
Quase nunca.
Biografia:
Rita
Taborda Duarte nasceu em 1973. É poeta, crítica
literária, professora do ensino superior e escritora de livros para a infância.
Foi membro da Comissão de Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian e escreve
regularmente sobre poesia e ensaio, nas mais diversas publicações. Tem
integrado júris de prémios para originais de literatura infanto-juvenil (Prémio
Branquinho da Fonseca – Expresso/Gulbenkian), de poesia e de ficção (Prémio
PEN-Club português). Em 1998, publica o seu primeiro livro de poesia Poética Breve, Black Sun Editores, a que
se seguiram outros dois: Na estranha Casa
de um Outro e Dos Sentidos das Coisas
(co-autoria de André Barata). Em 2003, vence o prémio Branquinho da Fonseca
Expresso-Gulbenkian, com o livro A
Verdadeira História da Alice. A partir daí, tem escrito com regularidade
para crianças e jovens, contando com uma dezena de obras publicadas, muitas
delas incluídas no Plano Nacional de Leitura.
Em 2015 publica o livro de poesia Roturas e Ligamentos (Abysmo) em
parceria com André da Loba (ilustrações).
Certa vez, num encontro numa biblioteca escolar, um
menino chamou-a «Escritora Infantil». Desde esse dia, assumiu o epíteto e
diverte-se a brincar, infantilmente, com as palavras.
Poesia publicada:
Roturas
e Ligamentos. Lisboa, Abysmo, 2015 (com ilustrações
de André da Loba).
Elogio
do Outono, Lisboa, o homem do saco, 2014 (concepção gráfica
Luís Henriques).
Experiências
Descritivas: Dos sentidos das coisas/Círculos, Lisboa,
Editorial Caminho, 2007 (Co-autoria de André Barata, com ilustrações de Luís
Henriques).
Na
Estranha Casa de Um Outro: Esboço de uma biografia poética,
Lisboa, Asa, 2006.
Poética
Breve, Lisboa, Black Sun Editores, 1998.
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