Aquela pintura era uma questão de causa e
efeito. O sorriso, concentrado na tela, à mercê dos gestos firmes do artista, enquanto
senhor da técnica e da criação. O retrato, a beleza da mulher parada no tempo. O
homem persistente espreita a nudez do rosto feminino e vai vestindo o seu
contorno com os tintas que mistura na paleta. Pincéis sujos pintam o seu estado
íntimo com tons anoitecidos e luminosos ao mesmo tempo, como se fosse possível
concentrar num mesmo instante a noite e o dia. Uma nudez interior vestida com
um belo sorriso de luz, fenómeno indescritível do talento genuíno. A vida era
isto e assim se passaram três anos, de 1503 a 1506.
O sorriso de Mona Lisa |
Ela, a Mona Lisa, ainda anda por aí. O seu sorriso parece inalterável, mas de cada vez que a vejo é uma imagem diferente. Regressando à memória da minha primeira visita ao Museu do Louvre em 2006, eis o célebre quadro pintado por Leonardo da Vinci, na sala seis do Edifício Denon. Pequeno, escuro, quase tenebroso no interior da caixa blindada. Concentrada nesta visão misteriosa, ouço o som propagar-se por entre o ruído da multidão: é uma composição terna e esfumada tocada por um consort de quatro músicos serenos, todos eles especialistas na sua arte de interpretação do instrumento musical. O alaúde protagoniza a pavana; e a viola de gamba, a flauta doce e a rabeca ornamentam as longas horas de trabalho de Leonardo. Também Mona Lisa respirou esses sons durante três anos. A existência do concerto contínuo tinha sido uma ideia do próprio Leonardo, numa tentativa de manter o sorriso indefinido no rosto de Mona Lisa durante o tempo de pose. A bela modelo correspondeu na perfeição. A melodia era do seu agrado, e graças ao ouvido absoluto (qualidade rara de discriminação auditiva nos comuns mortais), ela conseguia elevar o acto de escuta ao patamar mais íntimo da sua emoção, aceitando sem condições ou constrangimentos a música que ajudou o pintor a cumprir a sua missão criativa.
500 anos depois, eu estava ali naquele lugar antigo, com os restantes protagonistas: pintor, modelo, músicos do consort; as nossas presenças eram inegáveis. Linhas de deslumbre clássico a unir os nossos corações. Todo o ambiente circundante no interior do museu, mundano e distraído, diluiu-se nos gestos e nos sons renascentistas. Uma sintonia difícil de prever e de alcançar. Fecho os olhos perante o milagre da viagem no tempo, mas quando os abro já não estou ali, naquele lugar comovido e sacrossanto. Agora estou aqui, de volta a 2006, e a percepção sobre o acontecimento produz um efeito fatal na minha apreciação estética. Mona Lisa ganha uma ressignificação que eu não compreendo, nem tão pouco tenho a certeza se Leonardo merece o fenómeno transgressor do apropriacionismo. Enquanto eu não tiver a certeza absoluta sobre o que está a acontecer, não os deixarei abandonar o cenário da dúvida. Imponho aos músicos o concerto contínuo da minha memória renascentista e percorro a cidade de Paris em busca do significado perdido da arte. Um desfile peculiar: eu, o maestro e os instrumentistas em cadência ordenada.
Ao atravessar a rua vejo-a sentada numa
mesa de esplanada. A espalhafatosa flor de feltro na boina vermelha não passa
despercebida, nem os densos cachos de caracóis louros tombados sobre os ombros
nus e os seios generosos. O vestido é bastante decotado e leve, desapropriado
em relação à fria primavera parisiense. A cintura está fina, apertada pelo
corpete de couro castanho. Tem as pernas abertas e ostenta uma pose
provocadora, quase indecente, embora o vestido lhe chegue até aos tornozelos. A
rapariga é, apesar de tudo, estranhamente bela, quase desejável, com os seus
roliços braços tatuados de flores, pássaros e borboletas. Olha fixamente este
cortejo que avança pelas ruas de Paris em sua honra, para lhe assegurar o
sorriso perfeito. Tem as mãos adornadas de anéis postas sobre o regaço, tal
como no retrato do Museu do Louvre. Sim, e sorri.
Hesito. Não consigo sair daquela incompreensão
estética, não posso aceitar a transformação do mistério renascentista em
exibição escandalosa. Mesmo que a arte
seja tudo aquilo a que chamamos arte, estou demasiado zangada para
racionalizar e perdoar o embuste. Os músicos não param de tocar e Mona Lisa
permanece sorridente. Sim, o sorriso é tudo o que lhe resta.
Adília César
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__194
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