sexta-feira, 8 de março de 2019

O CÉU DE CONSTABLE


«Nuvens
Seguidas por outras, dissolvem o sol ao passar
Por dentro e por fora dele. Massas escuras
O mancham de novo, suaves feixes-de-luz dispersos.»
(Meditação sobre John Constable, de Charles Tomlimson)

Seascape Study with Rain Cloud

– Hoje vou pintar as nuvens por cima deste mar. – diz Constable.
Elas mudam a cada instante e por isso, pinto o mais rápido que me é possível. O sol, ténue e fragmentado. Raios de luz mansa.

Mas tudo muda, tudo muda. O que aí vem é uma perturbação da natureza. O céu, o sol, a chuva, o vento, a luz, o frio, as nuvens. Tudo muda. O vento gélido transforma as tintas numa pasta grossa agarrada aos pincéis. É difícil a minha missão. A narrativa da natureza coincide com a minha expressão sincera de respeito pela paisagem: nuvens que dançam, cinzentos abstractos, o branco que parece afogar-se neste céu tão pesado. Oh tempestade.

Já não sinto o frio. O milagre da criação transforma-me num outro eu. Todo o meu corpo é uma intenção estética, uma obsessão jubilosa pela obra, a que me entra pelos olhos e a que represento na tela. Vejo e pinto. Vejo e pinto. Vejo e pinto. Sei que me é permitido este jogo de repetição. As nuvens que vejo hoje já não são as mesmas que vi ontem ou que verei amanhã. Mas em cada dia há um quadro que nasce, uma nova visão da evanescência de outras visões.

A chuva que se derrama sobre mim colabora na extensão do meu corpo que realiza a pintura. A mão fria é um ornamento da presença artística da paisagem cruel e intensa. Todos os dedos estão cinzentos e organizam-se em torno da janela de um tempo presente, esse rectângulo roubado à natureza do inverno, essa tela repetida até às profundezas do eterno.

A tempestade abate-se sobre a invisibilidade do ar. Respiro avidamente e bebo os tons do vendaval. Mas estou sempre sôfrego e tenho sempre sede de mais. Sempre. Sei que amanhã estarei aqui outra vez, neste mesmo lugar, a olhar e a pintar outras nuvens. E guardarei essas impressões no branco da tela que ainda não se afogou, para que o meu coração descanse numa visão impressionista do espírito perturbado da tempestade.

A chuva é o sangue do céu que jorra de todos aqueles corações nublados, cinzentos, brancos, tão longe do meu peito que os quer guardar a todos. Todos os corações, todas as nuvens são a minha força e a minha fraqueza, a minha vontade e a minha consumação. Nas mãos molhadas guardo a obra do dia que se faz noite, no pensamento redimo a esperança na noite que se fará dia.

Oh nuvens. Que leveza demonstram no seu bailado tenebroso. Como pintar o último traço se a dança é infinita? Como desistir daquilo que me assombra e fascina? Que súbito, que cor, que tom? Como abandonar este meu lugar-corpo, imprescindível e fatal? Por onde irei se só posso estar aqui? Nuvens seguidas por outras, dissolvem o sol ao passar por dentro e por fora dele. Massas escuras o mancham de novo, suaves feixes-de-luz dispersos. Sei que morri hoje e sei que a paisagem é a obra e o artista no encalce da perfeição impressionista, romântica e eterna. Oh vida.

Adília César
in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__137

Jonh Constable
Nota biográfica
John Constable (Suffolk, 11 de Junho de 1776 – Londres, 31 de Março de 1837). É um pintor difícil de catalogar. Os seus quadros obedecem a uma técnica impressionista na execução e no tratamento da cor, mas os motivos podem considerar-se românticos. Foi pioneiro na percepção e estudo da mudança dos efeitos da luz e das condições atmosféricas na arte. O seu tema principal foi a própria natureza, explorando incansavelmente novos caminhos para representar a transformação, principalmente as mudanças de luminosidade do céu e os seus efeitos sobre todo o meio ambiente. Constable foi um grande inspirador para os pintores do Romantismo e pintores de paisagem em geral.

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