«Nuvens
Seguidas
por outras, dissolvem o sol ao passar
Por
dentro e por fora dele. Massas escuras
O
mancham de novo, suaves feixes-de-luz dispersos.»
(Meditação sobre John Constable, de
Charles Tomlimson)
Seascape Study with Rain Cloud |
– Hoje vou pintar as nuvens por cima deste mar. – diz Constable.
Elas mudam a cada instante e por isso,
pinto o mais rápido que me é possível. O sol, ténue e fragmentado. Raios de luz
mansa.
Mas tudo muda, tudo muda. O que aí vem é
uma perturbação da natureza. O céu, o sol, a chuva, o vento, a luz, o frio, as
nuvens. Tudo muda. O vento gélido transforma as tintas numa pasta grossa agarrada
aos pincéis. É difícil a minha missão. A narrativa da natureza coincide com a
minha expressão sincera de respeito pela paisagem: nuvens que dançam, cinzentos
abstractos, o branco que parece afogar-se neste céu tão pesado. Oh tempestade.
Já não sinto o frio. O milagre da criação
transforma-me num outro eu. Todo o meu corpo é uma intenção estética, uma
obsessão jubilosa pela obra, a que me entra pelos olhos e a que represento na
tela. Vejo e pinto. Vejo e pinto. Vejo e pinto. Sei que me é permitido este
jogo de repetição. As nuvens que vejo hoje já não são as mesmas que vi ontem ou
que verei amanhã. Mas em cada dia há um quadro que nasce, uma nova visão da
evanescência de outras visões.
A chuva que se derrama sobre mim colabora
na extensão do meu corpo que realiza a pintura. A mão fria é um ornamento da presença
artística da paisagem cruel e intensa. Todos os dedos estão cinzentos e
organizam-se em torno da janela de um tempo presente, esse rectângulo roubado à
natureza do inverno, essa tela repetida até às profundezas do eterno.
A tempestade abate-se sobre a invisibilidade
do ar. Respiro avidamente e bebo os tons do vendaval. Mas estou sempre sôfrego
e tenho sempre sede de mais. Sempre. Sei que amanhã estarei aqui outra vez,
neste mesmo lugar, a olhar e a pintar outras nuvens. E guardarei essas impressões
no branco da tela que ainda não se afogou, para que o meu coração descanse numa
visão impressionista do espírito perturbado da tempestade.
A chuva é o sangue do céu que jorra de
todos aqueles corações nublados, cinzentos, brancos, tão longe do meu peito que
os quer guardar a todos. Todos os corações, todas as nuvens são a minha força e
a minha fraqueza, a minha vontade e a minha consumação. Nas mãos molhadas
guardo a obra do dia que se faz noite, no pensamento redimo a esperança na
noite que se fará dia.
Oh nuvens. Que leveza demonstram no seu
bailado tenebroso. Como pintar o último traço se a dança é infinita? Como
desistir daquilo que me assombra e fascina? Que súbito, que cor, que tom? Como
abandonar este meu lugar-corpo, imprescindível e fatal? Por onde irei se só
posso estar aqui? Nuvens seguidas por
outras, dissolvem o sol ao passar por dentro e por fora dele. Massas escuras o
mancham de novo, suaves feixes-de-luz dispersos. Sei que morri hoje e sei
que a paisagem é a obra e o artista no encalce da perfeição impressionista,
romântica e eterna. Oh vida.
Adília César
in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__137
Adília César
in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__137
Jonh Constable |
Nota biográfica
John Constable (Suffolk, 11 de Junho de
1776 – Londres, 31 de Março de 1837). É um pintor difícil de catalogar. Os seus
quadros obedecem a uma técnica impressionista na execução e no tratamento da
cor, mas os motivos podem considerar-se românticos. Foi pioneiro na percepção e
estudo da mudança dos efeitos da luz e das condições atmosféricas na arte. O
seu tema principal foi a própria natureza, explorando incansavelmente novos
caminhos para representar a transformação, principalmente as mudanças de
luminosidade do céu e os seus efeitos sobre todo o meio ambiente. Constable foi
um grande inspirador para os pintores do Romantismo e pintores de paisagem em
geral.
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