Com este gesto explodi o quadro da pintura de Courbet dando
apenas para ver o que está fora do campo da pintura: uma voz, um olhar, um
ponto de vista.
Deborah de Robertis, 2014
Deborah é uma mulher decidida. Estamos no
dia 29 de maio de 2014, à porta do Museu d’Orsay, onde uma longa fila de
visitantes espera a sua vez de entrar. Lá dentro, todos essas pessoas serão
espectadores pacientes, atravessando as diversas salas para apreciar todas as valiosas
obras de arte expostas, validadas enquanto tal. Mas Deborah está focada num
único objectivo: chegar à sala onde está exposta a pintura A Origem do Mundo de Gustave Courbet (1866) e, sob os acordes da Avé Maria de Schubert na voz de Maria
Callas, despojar-se de falsos pudores e provocar um determinado quadro de
pensamento nos espectadores perante os quais se vai posicionar, numa atitude,
no mínimo, controversa. Deborah está agora nua e descalça, emoldurada por um
vestido de lantejoulas douradas, à semelhança da moldura do quadro de Courbet
em volta da imagem da mulher nua representada na pintura. Senta-se no chão, de
costas para a Origem do Mundo, abre
as pernas e exibe delicadamente o Espelho
de Origem - a sua vagina. As reacções à instalação foram imediatas: Deborah
foi detida pela polícia, para ser interrogada (embora mais tarde o Ministério
Público francês decidisse não apresentar queixa, tendo sido a artista libertada).
Da parte dos espectadores, como seria de esperar, houve uma diversidade de
interpretações e uma multiplicidade de manifestações contra e a favor, de
acordo com as suas percepções: realidade, sensibilidade, inteligência, valores
e padrões dominantes, vivências, tipo de personalidade e até o estado de
espírito durante a contemplação da obra de arte; de tudo isso se faz a
apreciação do espectador.
Mais tarde, por ocasião da Feira
Internacional de Arte Contemporânea, entre 22 e 25 de outubro de 2014, no stand
da Galeria Massimo Minini em Paris, foi possível mostrar a fotografia da
performance levada a cabo por Deborah de Robertis, intitulada, precisamente, Espelho de Origem; contudo, a cena tinha
sido fotografada previamente à performance/instalação pública no Museu d’Orsay,
para a artista ter a certeza do seu ponto de vista ético e estético, antes de
se dar ao espectador. Numa entrevista, Deborah referiu que sentiu sobre ela o
chamado olho do sexo: se determinadas
partes do corpo ditas sexuais estão
visíveis ao olhar dos outros, é nelas que as pessoas se focam, a nível dos
actos de olhar, conceptualizar e emitir opinião, abstraindo-se dos restantes
componentes visuais, como por exemplo, o seu espalhafatoso vestido de
lantejoulas douradas, a moldura do quadro
vivo.
Na verdade,
os panos que cobrem a nudez do corpo feminino têm as cores dos preconceitos e
dos estereótipos acerca da mulher no mundo: um vestuário emocional que as
protege das intempéries relacionais e sociais. Isto quer dizer que elas podem
despir as roupas, mas nunca ficam completamente nuas: a nudez é sempre interior
e a pele é apenas o contorno do corpo. Deborah estava de facto nua? Ou estava a
desvendar a origem da Origem do Mundo?
A controvérsia ainda está em debate.
Ao longo da
história da arte encontramos a temática do nu feminino em todas as suas formas
de expressão, desde a pintura e a escultura, passando pela fotografia, dança,
teatro, cinema, circo, além de outras formas mistas. O corpo feminino é,
assumidamente, um elemento de culto ligado à sensualidade e ao erotismo, à
natureza do espírito capaz de atingir o nível cósmico e divino; o nu artístico
exibe, afinal, o mistério da própria mulher representada na obra de arte.
As
metamorfoses do nu artístico feminino são evidentes, de acordo com os
paradigmas sociais, culturais e estéticos que foram exibidos em cada época.
Poderá este nu artístico ter um papel de mediador na construção ou alteração
dos estereótipos acerca do papel da mulher no mundo, de criar ou recriar outras
visões sobre a realidade? Sim. A pesquisa de Deborah de Robertis e as
consequentes reacções contraditórias dos espectadores e das autoridades provaram
isso mesmo. O conflito, que motivou a detenção da performer, como se ela
tivesse transgredido a lei, era evidente: por um lado, a certificação da obra de arte, instituída e consolidada na parede de
um museu; por outro, a moralidade de um
acto contemporâneo enquanto representação do real, em presença física,
desafiadora do puritanismo encaixilhado.
Entre o
artista e o espectador, o nu feminino na arte ainda está longe de ser um
processo e um produto consensuais, necessitando de uma reflexão que ultrapasse
o debate superficial da divisão das obras entre arte e pornografia. Na minha
opinião, o contributo de Deborah de Robertis abriu outros caminhos de reflexão
que devem ser tidos em conta, principalmente por parte das mulheres, esses obscuros objectos de desejo.
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__195
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