sábado, 2 de março de 2019

UM ENORME DOMINGO DE PASMO SEM TEMPO


 A nossa vida não é um sonho, mas deveria
e talvez se torne um.
Novalis

O homem parece ausente, alheado. Acontece-lhe com frequência ficar naquele estado de letargia, de fadiga. Há sempre um motivo para o poeta exibir a sua melancolia. Ele pensa na mulher, no tempo em que a sua mão direita segurava o ombro esquerdo dela e caminhavam lado a lado pelas veredas do parque, aos domingos. Iam inseguros pelo precipício do silêncio e apenas restava um aperto de ombro que ele teimava em saborear e que ela acolhia com alguma inconsciência e aceitação civilizada. Passos tortos e conversas fiadas em esquinas agudas. Afinal, já não fazia sentido a impressão unida dos seus corpos, a verticalidade dos sentimentos tombados, os estranhos olhares que banalizavam o tempo que passaram juntos. Eram tão palpáveis os espíritos desviados da seta dourada a iluminarem antigos sentimentos de paixão.

“Uma ave recortada no céu azul”, ainda pensava ele.
“Velhos arrastando-se na valeta”, já pensava ela.

As ruas cheiram a miséria. É preciso um mapa de insultos para acordar os corações do homem e da mulher que já haviam esgotado todas as edições de autor. Riscos como gritos, bocas abertas nas letras, setas inundadas de sangue. Pensamentos demolidores num mapa cor-de-rosa da cidade velha e cinzenta, com anotações à margem: recantos anónimos, instruções de uso, e algumas palavras descritivas das ausências paradas no tempo, como uma pauta musical. Itinerários fáceis de utilizar, portanto. O mapa uniformiza os passos, achata-os na visão neutra das suas próprias vidas, ou seja, vamos “por ali” porque o mapa nos diz para irmos “por ali”.
 
Pauta de Bussotti

E fomos andando sobre as mágoas sujas de outrora.

Chegados ao quarto de hotel, no último andar, desenhavam-se as linhas que uniam aquelas duas pessoas através de uma corrente de tentativas fracassadas. Mas já se tinham perdido um do outro, nada mais havia para escrever.

“Onde estás agora?” - pensava ele.
“O último comboio. Um café e um pastel de nata. Se ao menos…” - pensava ela.

Entre os dois há silêncios súbitos, pesados. Cigarros que se acendem para desistir do tempo parado. Mas a atenção fixa-se nas cabeças queimadas dos fósforos que se apagam quase ao mesmo tempo. O amor também é uma chama apagada, depois de tudo.

Por favor, escuta estes gestos lentos e inanimados da minha solidão, quero despedir-me do fantasma da tua angústia. Escuta. Pela janela aberta esvoaça o teu perfume, mas eu sei que não és tu. Disseram-me que a tristeza se encostou às paredes da casa e ao pó dos nossos livros, tombou o seu amplo rosto na pequena cama onde guardaste o corpo, no fim. Mas eu ainda sorvo a tua voz no fundo da garrafa que se deita comigo, todas as noites. Amanhã abandonarei a caixa dos despojos deste amor descontrolado. Vê, o mapa cor-de-rosa está agora tão cinzento como as traseiras dos prédios, as escadas de serviço, a caixa de correio arrombada a pontapé. O mapa do teu voo nas palavras de despedida revisitadas ano após ano. “Já não te amo”, escreveste na margem da rua, nas páginas do diário, nos dedos, antes e depois da tua queda. Mas o que significa isso? Recordo o teu corpo bordado em ponto pé de flor sobre a calçada, as linhas vermelhas no rosto surpreendido, os cabelos dançantes. Quando tudo me pertencia, que vontade de apertar o teu ombro, de apaziguar a violência da tua decisão, de mergulhar o meu amor inteiro na nossa antiga alegria. “Ainda te amo”, escreverei na margem da rua, nas páginas do diário, nos dedos, antes e depois da minha queda. Mas o que significa isto?


Ele sabia que já nada era possível. Continuava ausente, alheado, e apertava na mão direita, a mão perfeita que escreveria o nome dela em todos os poemas, as pálpebras fechadas da rosa vermelha. Sobre as pedras enterradas ainda vivas, pingos de sangue enfeitavam a melancolia da saudade, num enorme domingo de pasmo sem tempo.

Adília César
Nota: o título desta crónica é um verso retirado do livro de poesia “Isto anda tudo ligado” (1970, Cadernos Peninsulares) de Eduardo Guerra Carneiro (1942-2004).

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