A
nossa vida não é um sonho, mas deveria
e
talvez se torne um.
Novalis
O homem parece ausente, alheado.
Acontece-lhe com frequência ficar naquele estado de letargia, de fadiga. Há
sempre um motivo para o poeta exibir a sua melancolia. Ele pensa na mulher, no
tempo em que a sua mão direita segurava o ombro esquerdo dela e caminhavam lado
a lado pelas veredas do parque, aos domingos. Iam inseguros pelo precipício do
silêncio e apenas restava um aperto de ombro que ele teimava em saborear e que
ela acolhia com alguma inconsciência e aceitação civilizada. Passos tortos e
conversas fiadas em esquinas agudas. Afinal, já não fazia sentido a impressão
unida dos seus corpos, a verticalidade dos sentimentos tombados, os estranhos
olhares que banalizavam o tempo que passaram juntos. Eram tão palpáveis os
espíritos desviados da seta dourada a iluminarem antigos sentimentos de paixão.
“Uma ave recortada no céu azul”, ainda pensava
ele.
“Velhos arrastando-se na valeta”, já pensava
ela.
As ruas cheiram a miséria. É preciso um
mapa de insultos para acordar os corações do homem e da mulher que já haviam
esgotado todas as edições de autor. Riscos como gritos, bocas abertas nas
letras, setas inundadas de sangue. Pensamentos demolidores num mapa cor-de-rosa
da cidade velha e cinzenta, com anotações à margem: recantos anónimos, instruções
de uso, e algumas palavras descritivas das ausências paradas no tempo, como uma
pauta musical. Itinerários fáceis de utilizar, portanto. O mapa uniformiza os
passos, achata-os na visão neutra das suas próprias vidas, ou seja, vamos “por
ali” porque o mapa nos diz para irmos “por ali”.
E fomos andando sobre as mágoas sujas de outrora.
Chegados ao quarto de hotel, no último
andar, desenhavam-se as linhas que uniam aquelas duas pessoas através de uma
corrente de tentativas fracassadas. Mas já se tinham perdido um do outro, nada
mais havia para escrever.
“Onde estás agora?” - pensava ele.
“O último comboio. Um café e um pastel de
nata. Se ao menos…” - pensava ela.
Entre os dois há silêncios súbitos,
pesados. Cigarros que se acendem para desistir do tempo parado. Mas a atenção
fixa-se nas cabeças queimadas dos fósforos que se apagam quase ao mesmo tempo.
O amor também é uma chama apagada, depois de tudo.
Por favor, escuta estes gestos lentos e
inanimados da minha solidão, quero despedir-me do fantasma da tua angústia.
Escuta. Pela janela aberta esvoaça o teu perfume, mas eu sei que não és tu.
Disseram-me que a tristeza se encostou às paredes da casa e ao pó dos nossos livros,
tombou o seu amplo rosto na pequena cama onde guardaste o corpo, no fim. Mas eu
ainda sorvo a tua voz no fundo da garrafa que se deita comigo, todas as noites.
Amanhã abandonarei a caixa dos despojos deste amor descontrolado. Vê, o mapa
cor-de-rosa está agora tão cinzento como as traseiras dos prédios, as escadas
de serviço, a caixa de correio arrombada a pontapé. O mapa do teu voo nas
palavras de despedida revisitadas ano após ano. “Já não te amo”, escreveste na
margem da rua, nas páginas do diário, nos dedos, antes e depois da tua queda.
Mas o que significa isso? Recordo o teu corpo bordado em ponto pé de flor sobre
a calçada, as linhas vermelhas no rosto surpreendido, os cabelos dançantes. Quando
tudo me pertencia, que vontade de apertar o teu ombro, de apaziguar a violência
da tua decisão, de mergulhar o meu amor inteiro na nossa antiga alegria. “Ainda
te amo”, escreverei na margem da rua, nas páginas do diário, nos dedos, antes e
depois da minha queda. Mas o que significa isto?
Ele sabia que já nada era possível.
Continuava ausente, alheado, e apertava na mão direita, a mão perfeita que
escreveria o nome dela em todos os poemas, as pálpebras fechadas da rosa
vermelha. Sobre as pedras enterradas ainda vivas, pingos de sangue enfeitavam a
melancolia da saudade, num enorme domingo de pasmo sem tempo.
Adília César
Nota: o título desta crónica é um verso
retirado do livro de poesia “Isto anda tudo ligado” (1970, Cadernos
Peninsulares) de Eduardo Guerra Carneiro (1942-2004).
Sem comentários:
Enviar um comentário