sábado, 21 de setembro de 2019

A (IN)VISIBILIDADE DO ESSENCIAL


«Agora só vejo o que me interessa, e certas coisas,
as que são realmente importantes, 
vejo-as melhor de olhos fechados.»
Silvina Jóia*

Creio que Antoine de Saint-Exupéry, numa bela e profunda linha de escrita do seu pequeno-grande livro O Principezinho, também já tinha dito algo muito semelhante, em 1943, pela voz da Raposa, quando esta conversa com o Principezinho:

«Só se vê com o coração. O essencial é invisível aos olhos.»

O Antoine e a Silvina, sem nunca se terem encontrado, tiveram a mesma percepção: os seres humanos devem guiar-se pelos afectos e agir de acordo com os seus sentimentos. A minha crónica podia ficar por aqui, fiel à corrente da micronarrativa, que tanto interesse tem vindo a provocar os leitores desde há algum tempo, cansados de ler palavras inúteis. Podia, mas preciso de expressar a minha própria percepção.

Na verdade, as nossas vidas estão repletas de coisas inúteis, de palavras inúteis; é na senda da optimização de tempo e esforço que procuramos a apropriação possível do mundo que nos rodeia através do pouco, porque menos pode ser mais. É uma das raras verdades em que acredito. E imagino que passeio pela rua como se fosse uma discreta imagem a preto e branco, a deslizar ou a sobrevoar o chão a pouca altura, envolvendo a categoria diáfana do tempo. No meio de tanta cor, tanto ruído, tanta inquietação, a serenidade de uma fina linha de equilíbrio poderia ser uma boa definição para "vida". Não a vida enquanto construtora de instantes violentos e banais, os quais recuso.

Foi a minha mãe que me ensinou a ver o invisível, o essencial, quando ambas nos confrontámos com as suas dificuldades de visão. Conversámos sobre a inevitável mudança de hábitos, a reconstrução das rotinas do dia, a adaptação àquilo que é absolutamente essencial. De facto, desde há cerca de um ano, ela já não vê como antes: não lê os livros nem as legendas dos filmes, não distingue as feições das pessoas com quem se cruza na rua. Mas não está muito preocupada. Diz que sente uma espécie de serenidade imposta pelo carácter agora invisível das coisas outrora familiares.

A mãe (Silvina Jóia) e a filha (Adília César)

O que a minha mãe confidenciou fez-me repensar sobre a dicotomia entre a visibilidade e a invisibilidade do essencial que, à partida, não é tão linear como parece. Fechei os olhos, vi os meus sentimentos e as minhas convicções, não a partir da discussão acalorada em discurso directo com outra pessoa, mas através do pensamento introspectivo e silencioso, até atingir um nível mais elevado de conhecimento pessoal e relacional com o universo. Há quem valorize este processo e lhe chame meditação. Há quem, pelo contrário, o desvalorize e lhe chame solidão. Há também quem ande pelo mundo de olhos abertos e cegos na sua desumanidade, sem compreender o seu papel particular no todo.

Ao virar a página, tive a minha epifania: afinal, somos versos do mesmo poema e podemos fechar os olhos, vendo o essencial com o coração. Sim, escrever amor em todas as páginas.

*Silvina Jóia é o nome da minha mãe, o primeiro verso do meu poema.

Adília César
https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__219

2 comentários:

  1. Que belo texto, Adília,onde a linguagem nos chega ancorada no real a transfigurá-lo "ao virar da página". Conduz o leitor à reflexão pela poeticidade que lhe confere, vê os seus sentimentos não pelo olhar, "mas através do pen samento introspectivo e silencioso"...................... .... " Se podes olhar, vê. Se podes ver repara.", escreve Saramago na contracapa de "Ensaio sobre a cegueira", retirado de um hipotético "Livro dos Conselhos".Afinal se podemos "ver" é importante "reparar" , pois o essencial 'é usar o coração ´, que contrariando Pessoa, é uum combóio de corda a entreter a razão. MJ

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