sábado, 23 de fevereiro de 2019

ATRÁS DA CORTINA DA LINGUAGEM


«A maioria ignora o que não tem nome;
e a maioria acredita na existência de tudo o que tem um nome».
Paul Valéry

Uma mulher transparente espreita atrás da cortina da linguagem. A transparência pode ser uma qualidade. Estar ali, mas não estar ali. Estar ali e não ser vista. Se a dimensão visual e diáfana não é a realidade, então o que espera a mulher atrás da cortina da linguagem que ainda desconhece? Espera não ser vista, para poder estar ali a espreitar dentro do seu pensamento. O silêncio e o seu significado através da cortina da linguagem.
 
Grafitti de Martin Watson

Imaginemos que no princípio do mundo havia poucas coisas e não tinham nome, mas tudo estava no seu devido lugar. Depois, a existência de muitas coisas implicou dar um nome diferente a cada uma, na tentativa de controlar o caos visual e sensitivo. Assim, quando as imagens das coisas eram vistas ou sentidas, o pensamento sobre elas era o prenúncio de um significado para cada uma um nome. Ela, a mulher transparente, pensa nas coisas e nas palavras das coisas, e sabe que o significado de um nome é a essência da própria matéria viva ou inerte, ínfima ou gigantesca, particular ou universal, e que tudo existe apenas porque pode ser nomeado. Ela chama um nome naquele preciso momento, atrás da cortina, em que tem a certeza que não pode ser ouvida. Na escuta da própria voz, o som do nome de qualquer coisa esvazia o sentido dessa palavra e procura uma essência anterior à substância da coisa. É urgente o entendimento da génese material e espiritual do ser, no campo mórfico de forças que sintonizam a energia da linguagem expressiva.

Antes de qualquer outro pensamento, a mulher sabe que é ainda uma quase-vida, uma quase-viagem. Tantos caminhos, mas apenas um a percorrer, o da procura da sua própria interioridade, através da declamação da palavra-chave da sua existência: eu a chamar por ela, e ela a chamar por mim. Somos o espelho uma da outra enquanto os nossos olhos dizem o que tem de ser dito – “tu” – a palavra não chega para encontrar caminhos dentro de nós, mas mesmo assim, é dita e esvaziada do próprio som, teimosamente repete-se e multiplica-se, reverbera num eco absurdo, insignificante, rugoso. É um ensimesmamento incomodativo e apenas parcial.

Tão frágil a imagem transparente dela atrás da cortina, tão frágeis as palavras, tão ténues as ligações entre as palavras, as coisas, os sentimentos. Elos torcidos enredam-se e partem-se, a energia impõe a sua inércia e tenacidade. Mas mesmo assim, há uma espécie de morte: as coisas e as imagens das coisas deixam de existir quando não há palavras para as nomear, deixam de ter importância por não existir um sentimento acoplado, quando ela, a mulher, deixa de ser vista atrás da cortina: “tu tu tu”, a autofagia do pronome. A palavra a cair num salto abismal sem rede, a perder a forma enquanto mergulhas no sentido esvaziado, matéria viva a perder a luz.

Obra de Paula Klien

Escondo-me. Este cansaço de ser coisa quase sem nome, a rasgar a camada da sua significação, a arrancar as escamas das possibilidades poéticas, é como a visualização do que é humano e imperfeito, uma quase-miragem, o eco a enganar o som que já não é som, é apenas o seu eco. O eco de mim em ti. Eu e tu a dizermos “eu”, a significar tudo: o “eu”, a essência de mim; o “eu”, a essência de ti. Este eco intermutável de ti em ti e de mim em mim pode significar alguma coisa?

Creio que a palavra “eu”, parecendo uma palavra de totalidade, afinal nada significa. Se eu digo “eu” e tu dizes “eu”, quem é o “eu”? És “tu” ou sou “eu”? O corpo em sequencial transformação é um “eu”? O “eu” que nasci não é o “eu” que hoje se me apresenta. O pensamento acumulado de memórias e raciocínios é um outro “eu”. As lembranças são nuvens a agregar e a deixar cair, assim é o “eu” que pensa e recorda, sempre a conspirar e a mudar na bravura da persistência. Ambas ainda em frente uma da outra: “eu eu eu”, eco contínuo da palavra-refrão, apenas um estilo, uma maneira de aparecer, nunca uma pessoa, uma coisa, um sentimento. Apenas a mesma palavra que nada significa: “eu”. Sim, somos “eu”, na brevidade de um momento ou para toda a eternidade, somos ecos de palavras contornadas pela emergência de um significado oco.

Há palavras e coisas perdidas no tempo e no espaço. Vejo a pedra, penso a pedra, sei que é uma pedra, mas não sei quem sou. Vejo a mulher transparente atrás da cortina e não sei quem ela é. Sei que é a tua imagem, a imagem de ti na imagem de mim: sou “eu” a mulher que espreita atrás da cortina. Sou “eu” a mulher que não quer ser vista enquanto não aprender a linguagem que a define.

Adília César
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__191

domingo, 17 de fevereiro de 2019

O RISO DE RIMBAUD


«Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível.»
Arthur Rimbaud (1854-1891)

Sons. Que sons? Quem os ouve? Felizes os cegos, esses mestres dos sentidos avassaladores. Escolhi esta especialização, espécie de cegueira subjectiva e representação do mundo formada por imagens trazidas pelos sons e pelos odores, depois de desistir de visões das palavras poéticas. Poderosas sensações. Poderosos sons e odores que vêm de outros séculos menos amenos.

O riso sarcástico de Rimbaud apanhou-me desprevenida, como um golpe de vento que levanta a saia rodada. Que som. Fiquei confinada àquele lugar misterioso entre África e Europa. Estou convencida de que viajo há anos e que os meus companheiros de viagem são – por favor façam um esforço de imaginação – Rimbaud e Rimbaud. O Rimbaud da ida e o Rimbaud do regresso, os quais se encontram naquele lugar peculiar: um, com cerca de 20 anos, a procurar um renascimento aventureiro e infinito e o outro, com 36 anos, a aceitar o renascimento definitivo da morte.

O comboio parou. É uma pequena Estação à margem do burburinho civilizado. O Chefe da Estação esteve ali toda a sua vida e além dos comboios e dos passageiros, que constituem o seu monótono fardo diário, tem uma paixão: o pequeno jardim. Sinto o perfume das flores, uma colecção de odores perfeitamente ordenada: rosas ao centro, três filas em “u” de jasmim e bem ao fundo, junto ao pequeno muro onde se senta o Chefe da Estação enquanto come o seu pão quente com presunto fumado, grandes arbustos de damas-da-noite. O perfume intenso denuncia a ausência do sol e a noite tomba sobre o meu espírito.

O riso de Rimbaud ecoa no seu próprio riso, como uma metáfora. Qual é o Rimbaud que ri? O que desistiu de escrever por nada mais ter a dizer, porque se convenceu de que ninguém estaria interessado em ler a sua poesia, angustiado e revoltado contra a banalidade do meio literário francês? Ou seria o andarilho, comerciante de café, traficante de armas, mercador de escravos, doente canceroso à beira do precipício da morte? Que som.

O comboio partiu. Rimbaud era um especialista em partir, isso sabia eu. Aos 20 anos já ele tinha lido todos os livros da Biblioteca de Babel, que como se sabe é infinita, e ele partia, partia continuamente, como se o mundo que apenas conhecera dos livros o chamasse. E mesmo quando estava parado Rimbaud viajava para dentro de si próprio à procura da próxima partida pelos descaminhos de França, Inglaterra, Áustria, Alemanha, Itália, Suécia. Indonésia. Chipre. Etiópia. Como se desenhasse uma geografia da inquietação.

Auto-retrato de Rimbaud em Harar (Etiópia) em 1883
E depois o regresso. A vida e a morte a partir e a chegar, a dor, o último descaminho. Mas antes da última dor os seus pés eram como um tapete mágico, levando-o numa viagem linear e também alegórica. Molhava o rosto num ribeiro e ali estava a imensidão do oceano. Empurrava a pedra a custo até ao topo da montanha, o Parnaso, porque julgava ser um deus, porque acreditava que um dia poderia ter reunido em si toda a poesia e todos os poetas, mas era apenas Sísifo, condenado a repetir para sempre a mesma tarefa. Todas as viagens de Rimbaud eram um absurdo, uma preparação para o regresso, uma procura recorrente da compreensão da própria viagem. Nesse regresso, Rimbaud remeteu-se ao silêncio e ao exílio, contando com o seu engenho para tudo experimentar e de tudo desistir.

Eu era a sombra da morte. E era também nesta encruzilhada que eu vacilava qual Sísifo, à procura do riso de Rimbaud, aquele som, que som. À procura da poesia e de todos os poetas, sempre a viajar e também a regressar para compreender todas as minhas viagens. Para escrever silêncios, noites, anotar o inexprimível.

Não posso abdicar da minha cegueira subjectiva e persigo outros odores que não me satisfazem: café, pólvora, peixe seco, suor, dor e sangue. Quando o comboio pára, saio e regresso a pé. Caminho levemente sobre os passos do Poeta. À procura dos sons. Que sons? Quem os ouve? Pressinto esta realidade sonhada à medida que me aproximo do jardim onde o Chefe da Estação está sentado no pequeno muro, enquanto come o seu pão quente com presunto fumado. Tão nítida a fome, tão perfumada a noite, tão inexprimível o riso de Rimbaud.

Arthur Rimbaud aos 17 anos fotografado por Étienne Carjat
Depois, o silêncio. Se a palavra não for iluminação, é urgente deixar a página em branco, é melhor manter os olhos fechados nas sombras.

 Adília César
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__131

sábado, 16 de fevereiro de 2019

CASIMIRO DE BRITO - O Poeta do Amor


«Sou poeta, um vaso aberto a todas as águas».
Casimiro de Brito,
in catálogo da Exposição Entre Mil Águas: Vida Literária de Casimiro de Brito, I FLIQ

Casimiro de Brito foi o autor homenageado no I Festival Literário Internacional de Querença, e foi nesse contexto de festa da cultura que o conheci, em agosto de 2016. Vi um homem jovial, comunicativo, atento aos pormenores e profundo conhecedor dos diferentes cenários onde a Literatura se move – a escrita, a crítica, a divulgação, o reconhecimento por parte dos outros. Vi a sua pose de poeta do amor e da claridade. Ao mesmo tempo, tive a percepção de um homem simples, demarcado das vaidades que poluem os guetos literários e possuidor de uma apurada sensibilidade humana.


Casimiro de Brito evidencia um produtivo interesse no âmbito do ‘haiku’ (tradução e criação), sendo o seu trabalho muito apreciado no japão, traduzido em japonês, premiado e homenageado, tendo recebido o prestigiado Prémio Mundial de Haikus da World Haiku Association. A este respeito, diz-nos Zlatka Timenova, na sua conferência apresentada por ocasião do FLIQ 2016 e registada no respectivo catálogo do evento:

«A língua japonesa favorece a ambiguidade, uma das características fundamentais do ‘haiku’. As línguas europeias e o pensamento europeu não cultivam a ambiguidade, mas na poesia temos uma tradição forte. O ‘haiku’ europeu é possível porque existe uma consciência anterior à língua como instrumento. Assim, a beleza das cerejeiras em flor corta a respiração dos japoneses e dos europeus da mesma maneira. Porquê? Diz o Casimiro:

Não sabemos se a terra está vazia
ou cheia? estamos nus
no meio do caminho»
(in Através do ar, 2007)

Que mais nos diz Casimiro sobre a intensidade das coisas belas, o amor, o erotismo, a mulher amada? Deixo-vos cinco fragmentos do seu livro “Flor Interior”, editado pela Eufeme em 2017:


1
Melhor do que o vinho
tua flor interior
para amar me dobro

4
Olho para a mulher
como se tivesse sido cego
a vida inteira

6
Mergulho na voz dela
e nada – vou em busca
das águas profundas

15
Em silêncio se abrem
a flor o lago a boca
da minha amada

24
Não sei ler mas li
as páginas do teu corpo
de olhos fechados

(…)

Casimiro de Brito é poeta, romancista, contista e ensaísta. Nasceu em Loulé, em 1938. Teve várias profissões, mas presentemente dedica-se em exclusivo à literatura. Começou a publicar em 1957 (Poemas da Solidão Imperfeita) e, desde então, publicou mais de setenta títulos, em Portugal e em outras trinta línguas. Esteve ligado ao movimento "Poesia 61", um dos marcos mais importantes da poesia portuguesa do século XX. Colabora nas mais prestigiadas revistas de poesia e tem obras suas incluídas em cerca de duzentas e quarenta antologias publicadas em diversos países. Ganhou diversos prémios literários. Participou em inúmeros recitais, festivais de poesia, congressos de escritores, conferências, um pouco por todo o mundo. Foi fundador e vice-presidente da Associação Portuguesa de Escritores. Foi fundador e presidente da direcção da Assembleia Geral do P.E.N. Clube Português. Em 2006, foi nomeado Embaixador Mundial da Paz, no âmbito da Embaixada Mundial da Paz, sediada em Genebra. Foi agraciado com a Ordem do Infante pela Presidência da República. A sua poesia completa até 2000 vai ser brevemente editada pela Imprensa Nacional.


Adília César
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__190

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

O Amor é... (Luís Vaz de Camões, Vitor Barroca Moreira e Rui Costa)

Segundo o World Population Clock, uma ferramenta online que nos permite visualizar o número de humanos na terra, somos cerca de 7,6 mil milhões. Então, atrevo-me a afirmar que teremos 7,6 mil milhões de definições sobre o amor. Na verdade, toda a gente tem uma opinião a respeito do sentimento mais falado de todos os tempos. Lembrei-me disto porque ainda esta semana assisti às velhas manobras de publicidade e marketing relativamente à forma como devemos gerir o Dia de São Valentim, transformado agora no Dia (consumista) dos Namorados, preenchido com manobras de diversão nos meios de comunicação social e nas montras das lojas.


Pensa-se que São Valentim terá sido o primeiro bispo da cidade italiana de Terni, e alcançou grande popularidade devido à sua santa e zelosa vida apostólica. Mas foi condenado à morte pelo imperador Aureliano por ter renunciado à fé católica e por celebrar casamentos em segredo, tendo sido morto a 14 de fevereiro de 273. Acabou por ser canonizado pela Igreja. No ano 494, o Papa Gelásio definiu que São Valentim passaria a ser o padroeiro dos noivos e dos namorados, devido às várias lendas que se conheciam em torno da sua vida. Mas este mártir não é o único, havendo pelo menos três bispos com o mesmo nome, não se sabendo muito bem quem teria sido, afinal, o protagonista daqueles acontecimentos, uma vez que as lendas se fundiram umas com as outras. Curiosamente, o dia assinalado e festejado por milhões de pessoas em todo o mundo – 14 de fevereiro – já não consta do calendário dos santos desde 1969, ou seja, já não é oficialmente o Dia de São Valentim. Então porque perdura? Porque o amor é bonito e as pessoas gostam do apelo amoroso, ainda que só aconteça uma vez por ano? Ou porque o tema serve de desculpa à propagação de valores comerciais e consumistas, dando corpo ao processo de compra e venda de objectos inúteis? 

Também as diferentes disciplinas do conhecimento se têm debruçado sobre todo o processo amoroso, dissecando-o como um objecto experimental e artístico. No campo da arte, a literatura convoca frequentemente as narrativas amorosas, sendo a poesia a maior divulgadora do amor. E é aqui que me quero focar, servindo a passagem recente deste dia para vos deixar três exemplos dos mais belos textos sobre o amor.

Séc. XVI – De Luís Vaz de Camões (1524-1580), «Amor é fogo que arde sem se ver», in “Sonetos”:

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Anos 60 – De Vitor Barroca Moreira (9 anos de idade), in “A criança e a vida”: 
«O amor é um pássaro verde num campo azul no alto da madrugada».


2017 – De Rui Costa (1972-2012), in “Myke Tyson para principiantes”, «Não sei se sabes»:

Não sei se sabes
que a meio da manhã
o verde dos teus lábios
passou para as encostas
e um gomo transparente
adormeceu nos juncos e abriu.
Abriu um brilho qualquer
na gruta fria e pôs uma fogueira
pequenina numa taça
e elevou as mãos quentes
pelo dia.
Talvez tu saibas que o principal
do amor
é uma montanha de efeitos secundários.

Três perspectivas diferentes entre milhões. E foi assim que passei grande parte do Dia dos Namorados – o qual é, afinal, um “dia fantasma” – a ler belos versos de amor. E o que é o amor? «É fogo que arde sem se ver, é um pássaro verde, é uma montanha de efeitos secundários».
Adília César

sábado, 9 de fevereiro de 2019

ALQUIMIA DAS FLORES

A menina de olhos amendoados ardia em febre. Chamas, prostrações, desfalecimentos. A febre é o grande olho na cabeça da noite branca, o anjo quente que pisa as flores indefesas nascidas no campo e arrancadas ao seu paraíso. É uma quase-morte, à espera de um acontecimento por que valha a pena morrer. Nascem ramos no peito e nas costas, folhas e flores querem embelezar a inocência das pálpebras trémulas. De dentro para fora, a imaginação da menina insiste na mesma viagem. Depois chega o bafo do dragão e todas as pétalas murcham de repente, parecem derreter. Tique-taque-tique-taque-tique-taque. Não há tempo a perder. O coração é um relógio partido, um sino que argumenta badaladas descompassadas. No labirinto tenso da febre, a menina de olhos amendoados percorre a mesma espiral com os olhos vendados de vermelho. E as visões, do sangue das pétalas esmagadas e da seiva das folhas, persistem como antídoto da maleita.

Aguarela de Kazumi Tanaka

Kazumi é a menina de olhos amendoados, desde sempre focada na conexão entre a natureza efémera da sua memória e as lembranças tangíveis da história da doença prolongada, onde os longos períodos febris potenciaram o seu espírito científico, através das alucinações invocadas pela febre alta: ela “via” as belas flores do seu jardim correndo pelo quarto, os pés do anjo sujos do sangue das flores esmagadas. Depois o anjo esquecia Kazumi. Caminhava sobre as águas da lagoa Manitoga, tingindo-as de belos e diferentes tons pastel: as cores das flores mortas.

Kazumi sentira desde sempre um fascínio muito especial pela ligação à natureza, à arquitectura orgânica daquele lugar. E nunca esquecera as visões repetidas, acolhidas pelas crises de febre, onde as plantas reencarnavam os seus próprios espíritos vegetais, como um prolongamento da alma humana. Vivera desde sempre numa casa feita de madeira, bambu e papel, no Japão. Habituara-se desde criança a sentir a energia das coisas vivas, a estreita simbiose entre o efémero e o eterno. Diferentes organismos e conceitos estranhamente ligados entre si, como linhas confluentes para um único universo concebido por Kazumi: energias químicas e poéticas como solução para o problema da morte, a ponte entre o corpo e o espírito da flor, a ponte entre o corpo e a alma da menina.

Tão simples e belas as flores silvestres, a viverem depois de morrerem. Kazumi recolhe as pétalas no preciso momento que antecede a sua perda, moendo-as pacientemente com um almofariz: refresca essa pasta com água pura da lagoa: recolhe a aguarela num frasco de vidro: dá-lhe um nome: pinta o retrato da flor com o sangue e a seiva da mesma flor, fazendo desaparecer o tempo e a distância. A flor viverá para sempre pintada na tela: o jardim no interior da casa.

No quotidiano poético e espiritual deste mundo, a alquimia das flores mostra um caminho possível para a eternidade. Nas mãos de Kazumi, as mãos de um qualquer deus, que um dia pintará o seu retrato com o seu próprio sangue. E Kazumi será eterna.
 
Kazumi Tanaka
(Kazumi Tanaka, nascida em 1962, é uma artista japonesa que utiliza pigmentos naturais nas suas aguarelas, obtidos através de um processo concebido por ela num laboratório onde a química e a criatividade são as palavras-chave).

Adília César

sábado, 2 de fevereiro de 2019

QUEM DISSE QUE A UP-LIT É A NOVA TENDÊNCIA LITERÁRIA?


Quis escrever um livro que fizesse as pessoas chorarem de alegria, não de tristeza. 
Senti que precisávamos de uma catarse.

Beth Morrey

Ser ou não ser UP-LIT, eis a questão desta crónica. Como cada início de ano traz algumas novidades, apresento-vos a UP-LIT, um novo género literário inaugurado pela necessidade de catarse da humanidade leitora, mas de positivismo, nas palavras de Beth Morrey, autora do aclamado livro “The Love Story of Miss Carmichael”. A este respeito, Martha Ashby, da editora Harper Collins, diz que «os leitores estão a gravitar em direcção a histórias que os façam sentir esperançosos e tranquilos em relação ao mundo. Livros que nos relembrem que nem tudo é mau».

UP-LIT: os livros que nos dão esperança?

Então, vejamos “o que nos dizem os grandes grupos editoriais”, no que respeita à crescente procura dos leitores e aos fenómenos de vendas, de acordo com uma notícia publicada na revista ESTANTE (Fnac). Ora, estando o mundo a passar por crises sucessivas, propagadas até à exaustão pelas estações de televisão e de rádio, jornais e redes sociais, a toda a hora deparamo-nos com notícias que relatam tensões: políticas, económicas, sociais. O negativismo é moeda corrente nas relações e na comunicação humanas. Numa pessoa mais ou menos equilibrada, de um modo geral, a psicologia faz o seu trabalho e instiga à procura de contrapesos para suportar todo esse negativismo. Assim, as pessoas procuram os seus paraísos interiores, os tais refúgios por vezes encontrados nos territórios da dita “sociedade do espectáculo” - a música comercial, o filme cómico, o teatro de revista, a literatura de cordel. Até aqui, nada a opor: cada um procura o que lhe falta em determinado momento catártico da sua vida.

Analisando agora o que acontece na cena literária, verificamos que é nesta fronteira do entretenimento que aparece a “nova ordem” (?) de oferta-procura dos títulos em destaque nas grandes superfícies, a UP-LIT. O conceito é uma apropriação literária de “uplifting”, termo em inglês que significa “inspiradora” ou “edificante”, e diz respeito a narrativas que exploram temas sombrios, mas num tom optimista pautado pela esperança, do tipo “corre tudo mal mas vai acabar tudo bem sabe-se lá como”; os protagonistas lutam para superar as suas adversidades e “inspiram” os leitores a seguirem o exemplo: uma espécie de conto de fadas dos tempos modernos com intenções aforísticas de conteúdo duvidoso à mistura. Estes romances de auto-ajuda e de crescimento pessoal, para terem muito êxito, precisam de uma premissa que estará ao alcance da maioria dos escritores: a história deve ser contada através de frases simples e fáceis de entender pelos leitores que apenas querem divertir-se com a leitura, não pretendendo, de modo algum e por oposição, entregar-se à obra difícil, de ideias e conceitos, que os obrigue a pensar. Porque para pensar, estão aí os “outros” – os intelectuais, os filósofos, os escritores chatos, que terão, espero eu, os seus próprios leitores.

A ideia dos romances “feel good” não é nova. Um dos grandes êxitos a nível mundial, geralmente consagrados pela versão cinematográfica da obra, foi “Um Homem Chamado Ove” de Fredrik Bachman, publicado em 2012. Seguiram-se outros exemplos: “A Improvável Viagem de Harold Fry” de Rachel Joyce; “A Educação de Eleanor” de Gail Honeyman; “Lincoln no Bardo” de George Saunders; “A Tua Segunda Vida Começa Quando Percebes Que Não Terás Outra” de Raphaëlle Giordano; “O Homem que Foi para Marte Porque Queria Estar Sozinho” de David M. Barnett; “Como Parar o Tempo” de Matt Haig. E muitos, muitos outros já traduzidos para português, facilmente encontrados numa Fnac perto de si.

Mas agora eis a questão: ser ou não ser UP-LIT? Queremos realmente ler esses livros que contam histórias tão extraordinárias e que foram publicados para serem sucessos de vendas? Os que se lêem de um fôlego, os que são tão bonitos e comoventes, os que são cor-de-rosa, os que são de fácil leitura até para um adolescente, os que distraem, os que são arrebatadores, os que são hilariantes e encantadores, os que servem de divã terapêutico? Já se percebeu o tom destas obras, não é necessário ir mais além. Aliás, basta ler as críticas pejadas de adjectivos da imprensa de referência e as badanas dos próprios livros – marketing de vendas falacioso - para ficarmos “convencidos” da sua relevância na montra literária: assombroso, original, comovente, inspirador, envolvente. E sobre quem escreve, a informação ainda é mais exuberante, pois o leitor poderá ler na badana de cada livro um veredicto definitivo sobre o lugar que aquele autor ocupa na hierarquia literária, geralmente algo como “um dos mais promissores escritores da actualidade”, “um escritor incontornável”, etecetera. Cada livro é “o livro” que o leitor tem de comprar compulsivamente, através da instrumentalização psicológica do conteúdo da respectiva badana. Os leitores querem ser informados sobre os livros em que vão gastar o seu dinheiro, mas não querem ser enganados. Então porque nos contam tantas mentiras?

Em resumo: se alguém falar de um livro ou de um autor é para sugerir que é “o melhor livro” escrito pelo “melhor escritor” (a sério que é?...). 

Ser UP-LIT? Não, muito obrigada. 

LÓGOS 10 - MAIO 2022 (ÍNDICE)