«A maioria ignora o que não tem nome;
e a maioria acredita na existência de
tudo o que tem um nome».
Paul Valéry
Uma mulher transparente
espreita atrás da cortina da linguagem. A transparência pode ser uma qualidade.
Estar ali, mas não estar ali. Estar ali e não ser vista. Se a dimensão visual e
diáfana não é a realidade, então o que espera a mulher atrás da cortina da
linguagem que ainda desconhece? Espera não ser vista, para poder estar ali a
espreitar dentro do seu pensamento. O silêncio e o seu significado através da
cortina da linguagem.
Imaginemos que no princípio do mundo havia poucas coisas e não tinham nome, mas tudo estava no seu devido lugar. Depois, a existência de muitas coisas implicou dar um nome diferente a cada uma, na tentativa de controlar o caos visual e sensitivo. Assim, quando as imagens das coisas eram vistas ou sentidas, o pensamento sobre elas era o prenúncio de um significado para cada uma – um nome. Ela, a mulher transparente, pensa nas coisas e nas palavras das coisas, e sabe que o significado de um nome é a essência da própria matéria viva ou inerte, ínfima ou gigantesca, particular ou universal, e que tudo existe apenas porque pode ser nomeado. Ela chama um nome naquele preciso momento, atrás da cortina, em que tem a certeza que não pode ser ouvida. Na escuta da própria voz, o som do nome de qualquer coisa esvazia o sentido dessa palavra e procura uma essência anterior à substância da coisa. É urgente o entendimento da génese material e espiritual do ser, no campo mórfico de forças que sintonizam a energia da linguagem expressiva.
Antes de
qualquer outro pensamento, a mulher sabe que é ainda uma quase-vida, uma
quase-viagem. Tantos caminhos, mas apenas um a percorrer, o da procura da sua
própria interioridade, através da declamação da palavra-chave da sua existência:
eu a chamar por ela, e ela a chamar por mim. Somos o espelho uma da outra
enquanto os nossos olhos dizem o que tem de ser dito – “tu” – a palavra não
chega para encontrar caminhos dentro de nós, mas mesmo assim, é dita e
esvaziada do próprio som, teimosamente repete-se e multiplica-se, reverbera num
eco absurdo, insignificante, rugoso. É um ensimesmamento incomodativo e apenas
parcial.
Tão
frágil a imagem transparente dela atrás da cortina, tão frágeis as palavras, tão
ténues as ligações entre as palavras, as coisas, os sentimentos. Elos torcidos
enredam-se e partem-se, a energia impõe a sua inércia e tenacidade. Mas mesmo
assim, há uma espécie de morte: as coisas e as imagens das coisas deixam de
existir quando não há palavras para as nomear, deixam de ter importância por
não existir um sentimento acoplado, quando ela, a mulher, deixa de ser vista
atrás da cortina: “tu tu tu”, a autofagia do pronome. A palavra a cair num
salto abismal sem rede, a perder a forma enquanto mergulhas no sentido
esvaziado, matéria viva a perder a luz.
Obra de Paula Klien |
Escondo-me. Este cansaço de ser coisa quase sem nome, a rasgar a camada da sua significação, a arrancar as escamas das possibilidades poéticas, é como a visualização do que é humano e imperfeito, uma quase-miragem, o eco a enganar o som que já não é som, é apenas o seu eco. O eco de mim em ti. Eu e tu a dizermos “eu”, a significar tudo: o “eu”, a essência de mim; o “eu”, a essência de ti. Este eco intermutável de ti em ti e de mim em mim pode significar alguma coisa?
Creio que a palavra “eu”, parecendo uma palavra de totalidade, afinal nada significa. Se eu
digo “eu” e tu dizes “eu”, quem é o “eu”? És “tu” ou sou “eu”? O corpo em
sequencial transformação é um “eu”? O “eu” que nasci não é o “eu” que hoje se
me apresenta. O pensamento acumulado de memórias e raciocínios é um outro “eu”.
As lembranças são nuvens a agregar e a deixar cair, assim é o “eu” que pensa e
recorda, sempre a conspirar e a mudar na bravura da persistência. Ambas ainda
em frente uma da outra: “eu eu eu”, eco contínuo da palavra-refrão, apenas um estilo,
uma maneira de aparecer, nunca uma pessoa, uma coisa, um sentimento. Apenas a
mesma palavra que nada significa: “eu”. Sim, somos “eu”, na brevidade de um
momento ou para toda a eternidade, somos ecos de palavras contornadas pela
emergência de um significado oco.
Há
palavras e coisas perdidas no tempo e no espaço. Vejo a pedra, penso a pedra, sei
que é uma pedra, mas não sei quem sou. Vejo a mulher transparente atrás da
cortina e não sei quem ela é. Sei que é a tua imagem, a imagem de ti na imagem
de mim: sou “eu” a mulher que espreita atrás da cortina. Sou “eu” a mulher que não
quer ser vista enquanto não aprender a linguagem que a define.
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__191