Segundo o World Population Clock, uma ferramenta online que nos permite visualizar o número de humanos na terra, somos cerca de 7,6 mil milhões. Então, atrevo-me a afirmar que teremos 7,6 mil milhões de definições sobre o amor. Na verdade, toda a gente tem uma opinião a respeito do sentimento mais falado de todos os tempos. Lembrei-me disto porque ainda esta semana assisti às velhas manobras de publicidade e marketing relativamente à forma como devemos gerir o Dia de São Valentim, transformado agora no Dia (consumista) dos Namorados, preenchido com manobras de diversão nos meios de comunicação social e nas montras das lojas.
Pensa-se que São Valentim terá sido o primeiro bispo da cidade italiana de Terni, e alcançou grande popularidade devido à sua santa e zelosa vida apostólica. Mas foi condenado à morte pelo imperador Aureliano por ter renunciado à fé católica e por celebrar casamentos em segredo, tendo sido morto a 14 de fevereiro de 273. Acabou por ser canonizado pela Igreja. No ano 494, o Papa Gelásio definiu que São Valentim passaria a ser o padroeiro dos noivos e dos namorados, devido às várias lendas que se conheciam em torno da sua vida. Mas este mártir não é o único, havendo pelo menos três bispos com o mesmo nome, não se sabendo muito bem quem teria sido, afinal, o protagonista daqueles acontecimentos, uma vez que as lendas se fundiram umas com as outras. Curiosamente, o dia assinalado e festejado por milhões de pessoas em todo o mundo – 14 de fevereiro – já não consta do calendário dos santos desde 1969, ou seja, já não é oficialmente o Dia de São Valentim. Então porque perdura? Porque o amor é bonito e as pessoas gostam do apelo amoroso, ainda que só aconteça uma vez por ano? Ou porque o tema serve de desculpa à propagação de valores comerciais e consumistas, dando corpo ao processo de compra e venda de objectos inúteis?
Também as diferentes disciplinas do conhecimento se têm debruçado sobre todo o processo amoroso, dissecando-o como um objecto experimental e artístico. No campo da arte, a literatura convoca frequentemente as narrativas amorosas, sendo a poesia a maior divulgadora do amor. E é aqui que me quero focar, servindo a passagem recente deste dia para vos deixar três exemplos dos mais belos textos sobre o amor.
Séc.
XVI – De Luís Vaz de Camões (1524-1580), «Amor é fogo que arde sem se ver», in “Sonetos”:
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo
Amor?
Anos 60 – De Vitor Barroca Moreira (9 anos de idade), in “A criança e a vida”:
«O amor é um pássaro verde num campo azul no alto da madrugada».
«O amor é um pássaro verde num campo azul no alto da madrugada».
2017 – De Rui Costa (1972-2012), in “Myke Tyson para principiantes”, «Não sei se sabes»:
Não sei se sabes
que a meio da manhã
o verde dos teus lábios
passou para as encostas
e um gomo transparente
adormeceu nos juncos e abriu.
Abriu um brilho qualquer
na gruta fria e pôs uma fogueira
pequenina numa taça
e elevou as mãos quentes
pelo dia.
Talvez tu saibas que o principal
do amor
é uma montanha de efeitos secundários.
Não sei se sabes
que a meio da manhã
o verde dos teus lábios
passou para as encostas
e um gomo transparente
adormeceu nos juncos e abriu.
Abriu um brilho qualquer
na gruta fria e pôs uma fogueira
pequenina numa taça
e elevou as mãos quentes
pelo dia.
Talvez tu saibas que o principal
do amor
é uma montanha de efeitos secundários.
Três perspectivas diferentes entre milhões. E foi assim que passei grande parte do Dia dos Namorados – o qual é, afinal, um “dia fantasma” – a ler belos versos de amor. E o que é o amor? «É fogo que arde sem se ver, é um pássaro verde, é uma montanha de efeitos secundários».
Adília César
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