«Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível.»
Arthur Rimbaud (1854-1891)
Sons. Que sons? Quem os ouve?
Felizes os cegos, esses mestres dos sentidos avassaladores. Escolhi esta
especialização, espécie de cegueira subjectiva e representação do mundo formada
por imagens trazidas pelos sons e pelos odores, depois de desistir de visões
das palavras poéticas. Poderosas sensações. Poderosos sons e odores que vêm de
outros séculos menos amenos.
O riso sarcástico de Rimbaud
apanhou-me desprevenida, como um golpe de vento que levanta a saia rodada. Que
som. Fiquei confinada àquele lugar misterioso entre África e Europa. Estou
convencida de que viajo há anos e que os meus companheiros de viagem são – por
favor façam um esforço de imaginação – Rimbaud e Rimbaud. O Rimbaud da ida e o
Rimbaud do regresso, os quais se encontram naquele lugar peculiar: um, com cerca
de 20 anos, a procurar um renascimento aventureiro e infinito e o outro, com 36
anos, a aceitar o renascimento definitivo da morte.
O comboio parou. É uma pequena
Estação à margem do burburinho civilizado. O Chefe da Estação esteve ali toda a
sua vida e além dos comboios e dos passageiros, que constituem o seu monótono
fardo diário, tem uma paixão: o pequeno jardim. Sinto o perfume das flores, uma
colecção de odores perfeitamente ordenada: rosas ao centro, três filas em “u”
de jasmim e bem ao fundo, junto ao pequeno muro onde se senta o Chefe da
Estação enquanto come o seu pão quente com presunto fumado, grandes arbustos de
damas-da-noite. O perfume intenso denuncia a ausência do sol e a noite tomba
sobre o meu espírito.
O riso de Rimbaud ecoa no seu
próprio riso, como uma metáfora. Qual é o Rimbaud que ri? O que desistiu de
escrever por nada mais ter a dizer, porque se convenceu de que ninguém estaria
interessado em ler a sua poesia, angustiado e revoltado contra a banalidade do
meio literário francês? Ou seria o andarilho, comerciante de café, traficante
de armas, mercador de escravos, doente canceroso à beira do precipício da
morte? Que som.
O comboio partiu. Rimbaud era um
especialista em partir, isso sabia eu. Aos 20 anos já ele tinha lido todos os
livros da Biblioteca de Babel, que como se sabe é infinita, e ele partia,
partia continuamente, como se o mundo que apenas conhecera dos livros o chamasse.
E mesmo quando estava parado Rimbaud viajava para dentro de si próprio à
procura da próxima partida pelos descaminhos de França, Inglaterra, Áustria,
Alemanha, Itália, Suécia. Indonésia. Chipre. Etiópia. Como se desenhasse uma
geografia da inquietação.
Auto-retrato de Rimbaud em Harar (Etiópia) em 1883 |
E depois o regresso. A vida e a
morte a partir e a chegar, a dor, o último descaminho. Mas antes da última dor
os seus pés eram como um tapete mágico, levando-o numa viagem linear e também alegórica.
Molhava o rosto num ribeiro e ali estava a imensidão do oceano. Empurrava a
pedra a custo até ao topo da montanha, o Parnaso, porque julgava ser um deus, porque
acreditava que um dia poderia ter reunido em si toda a poesia e todos os
poetas, mas era apenas Sísifo, condenado a repetir para sempre a mesma tarefa.
Todas as viagens de Rimbaud eram um absurdo, uma preparação para o regresso,
uma procura recorrente da compreensão da própria viagem. Nesse regresso, Rimbaud
remeteu-se ao silêncio e ao exílio, contando com o seu engenho para tudo
experimentar e de tudo desistir.
Eu era a sombra da morte. E era
também nesta encruzilhada que eu vacilava qual Sísifo, à procura do riso de
Rimbaud, aquele som, que som. À procura da poesia e de todos os poetas, sempre
a viajar e também a regressar para compreender todas as minhas viagens. Para
escrever silêncios, noites, anotar o inexprimível.
Não posso abdicar da minha
cegueira subjectiva e persigo outros odores que não me satisfazem: café,
pólvora, peixe seco, suor, dor e sangue. Quando o comboio pára, saio e regresso
a pé. Caminho levemente sobre os passos do Poeta. À procura dos sons. Que sons?
Quem os ouve? Pressinto esta realidade sonhada à medida que me aproximo do
jardim onde o Chefe da Estação está sentado no pequeno muro, enquanto come o
seu pão quente com presunto fumado. Tão nítida a fome, tão perfumada a noite,
tão inexprimível o riso de Rimbaud.
Arthur Rimbaud aos 17 anos fotografado por Étienne Carjat |
Depois, o silêncio. Se a palavra
não for iluminação, é urgente deixar a página em branco, é melhor manter os olhos
fechados nas sombras.
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