A menina de olhos amendoados ardia em
febre. Chamas, prostrações, desfalecimentos. A febre é o grande olho na cabeça
da noite branca, o anjo quente que pisa as flores indefesas nascidas no campo e
arrancadas ao seu paraíso. É uma quase-morte, à espera de um acontecimento por
que valha a pena morrer. Nascem ramos no peito e nas costas, folhas e flores
querem embelezar a inocência das pálpebras trémulas. De dentro para fora, a
imaginação da menina insiste na mesma viagem. Depois chega o bafo do dragão e
todas as pétalas murcham de repente, parecem derreter. Tique-taque-tique-taque-tique-taque.
Não há tempo a perder. O coração é um relógio partido, um sino que argumenta
badaladas descompassadas. No labirinto tenso da febre, a menina de olhos
amendoados percorre a mesma espiral com os olhos vendados de vermelho. E as
visões, do sangue das pétalas esmagadas e da seiva das folhas, persistem como
antídoto da maleita.
Aguarela de Kazumi Tanaka |
Kazumi
é a menina de olhos amendoados, desde sempre focada na conexão entre a natureza
efémera da sua memória e as lembranças tangíveis da história da doença
prolongada, onde os longos períodos febris potenciaram o seu espírito
científico, através das alucinações invocadas pela febre alta: ela “via” as
belas flores do seu jardim correndo pelo quarto, os pés do anjo sujos do sangue
das flores esmagadas. Depois o anjo esquecia Kazumi. Caminhava sobre as águas
da lagoa Manitoga, tingindo-as de belos e diferentes tons pastel: as cores das
flores mortas.
Kazumi sentira desde sempre um fascínio
muito especial pela ligação à natureza, à arquitectura orgânica daquele lugar. E
nunca esquecera as visões repetidas, acolhidas pelas crises de febre, onde as
plantas reencarnavam os seus próprios espíritos vegetais, como um prolongamento
da alma humana. Vivera desde sempre numa casa feita de madeira, bambu e papel,
no Japão. Habituara-se desde criança a sentir a energia das coisas vivas, a
estreita simbiose entre o efémero e o eterno. Diferentes organismos e conceitos
estranhamente ligados entre si, como linhas confluentes para um único universo
concebido por Kazumi: energias químicas e poéticas como solução para o problema
da morte, a ponte entre o corpo e o espírito da flor, a ponte entre o corpo e a
alma da menina.
Tão simples e belas as flores silvestres,
a viverem depois de morrerem. Kazumi recolhe as pétalas no preciso momento que
antecede a sua perda, moendo-as pacientemente com um almofariz: refresca essa
pasta com água pura da lagoa: recolhe a aguarela num frasco de vidro: dá-lhe um
nome: pinta o retrato da flor com o sangue e a seiva da mesma flor, fazendo
desaparecer o tempo e a distância. A flor viverá para sempre pintada na tela: o
jardim no interior da casa.
No quotidiano poético e espiritual deste
mundo, a alquimia das flores mostra um caminho possível para a eternidade. Nas
mãos de Kazumi, as mãos de um qualquer deus, que um dia pintará o seu retrato
com o seu próprio sangue. E Kazumi será eterna.
(Kazumi Tanaka, nascida em 1962, é uma
artista japonesa que utiliza pigmentos naturais nas suas aguarelas, obtidos
através de um processo concebido por ela num laboratório onde a química e a
criatividade são as palavras-chave).
Adília César
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