sábado, 9 de fevereiro de 2019

ALQUIMIA DAS FLORES

A menina de olhos amendoados ardia em febre. Chamas, prostrações, desfalecimentos. A febre é o grande olho na cabeça da noite branca, o anjo quente que pisa as flores indefesas nascidas no campo e arrancadas ao seu paraíso. É uma quase-morte, à espera de um acontecimento por que valha a pena morrer. Nascem ramos no peito e nas costas, folhas e flores querem embelezar a inocência das pálpebras trémulas. De dentro para fora, a imaginação da menina insiste na mesma viagem. Depois chega o bafo do dragão e todas as pétalas murcham de repente, parecem derreter. Tique-taque-tique-taque-tique-taque. Não há tempo a perder. O coração é um relógio partido, um sino que argumenta badaladas descompassadas. No labirinto tenso da febre, a menina de olhos amendoados percorre a mesma espiral com os olhos vendados de vermelho. E as visões, do sangue das pétalas esmagadas e da seiva das folhas, persistem como antídoto da maleita.

Aguarela de Kazumi Tanaka

Kazumi é a menina de olhos amendoados, desde sempre focada na conexão entre a natureza efémera da sua memória e as lembranças tangíveis da história da doença prolongada, onde os longos períodos febris potenciaram o seu espírito científico, através das alucinações invocadas pela febre alta: ela “via” as belas flores do seu jardim correndo pelo quarto, os pés do anjo sujos do sangue das flores esmagadas. Depois o anjo esquecia Kazumi. Caminhava sobre as águas da lagoa Manitoga, tingindo-as de belos e diferentes tons pastel: as cores das flores mortas.

Kazumi sentira desde sempre um fascínio muito especial pela ligação à natureza, à arquitectura orgânica daquele lugar. E nunca esquecera as visões repetidas, acolhidas pelas crises de febre, onde as plantas reencarnavam os seus próprios espíritos vegetais, como um prolongamento da alma humana. Vivera desde sempre numa casa feita de madeira, bambu e papel, no Japão. Habituara-se desde criança a sentir a energia das coisas vivas, a estreita simbiose entre o efémero e o eterno. Diferentes organismos e conceitos estranhamente ligados entre si, como linhas confluentes para um único universo concebido por Kazumi: energias químicas e poéticas como solução para o problema da morte, a ponte entre o corpo e o espírito da flor, a ponte entre o corpo e a alma da menina.

Tão simples e belas as flores silvestres, a viverem depois de morrerem. Kazumi recolhe as pétalas no preciso momento que antecede a sua perda, moendo-as pacientemente com um almofariz: refresca essa pasta com água pura da lagoa: recolhe a aguarela num frasco de vidro: dá-lhe um nome: pinta o retrato da flor com o sangue e a seiva da mesma flor, fazendo desaparecer o tempo e a distância. A flor viverá para sempre pintada na tela: o jardim no interior da casa.

No quotidiano poético e espiritual deste mundo, a alquimia das flores mostra um caminho possível para a eternidade. Nas mãos de Kazumi, as mãos de um qualquer deus, que um dia pintará o seu retrato com o seu próprio sangue. E Kazumi será eterna.
 
Kazumi Tanaka
(Kazumi Tanaka, nascida em 1962, é uma artista japonesa que utiliza pigmentos naturais nas suas aguarelas, obtidos através de um processo concebido por ela num laboratório onde a química e a criatividade são as palavras-chave).

Adília César

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