Mas eu só sei que há nisso algo de
anormal
Havia um tempo, um olhar, um sorrir,
um começo
Mas agora tudo perdeu seu brilho.
Na minha vida só houve um abraço como
o teu
Um sonho, um livro, uma aventura sem
igual
Linda, linda, esta balada que te dou.
Armando Gama
A 4 de Março de 1983, no Coliseu do Porto,
mil e novecentos espectadores viram Armando Gama, ao vivo, vencer o Festival RTP
da Canção com “Esta Balada Que Te Dou”, da qual ele próprio foi o autor.
A apresentar o evento, transmitido em directo pela televisão, Eládio Clímaco e
a estreante Valentina Torres; as audiências televisivas superaram os dez mil
espectadores. Este Festival da Canção deu que falar, por um lado porque a
canção vencedora não era uma das favoritas, e, por outro, porque teve início a
história de amor entre Armando Gama e Valentina Torres. O casal viria a
protagonizar uma dupla musical de sucesso, principalmente nos anos 90 e também um
longo casamento de vinte e seis anos preenchido com muitas baladas e actuações
ao vivo. O casamento terminou após vinte e seis anos, apesar de tantas lindas baladas
partilhadas pelos dois.
Valentina Torres e Armando Gama |
Um facto curioso sobre esta balada foi
recordado por Rui Cardoso Martins na sua crónica na Antena 1 de 28 de Fevereiro
do ano passado: Armando Gama ter-se-ia inspirado numa outra canção para compor
a sua mediática vencedora, transformando “steel crazzy, after all this
years” de Paul Simon (datada de 1975) numa “linda, linda, esta balada
que te dou”! Na época não havia internet e ninguém se teria apercebido das
fortes coincidências melódicas, nem em Portugal, nem em Munique, mesmo quando
Armando Gama levou a sua linda balada – uma aventura sem igual – ao
Festival Eurovisão da Canção, a 23 de Abril de 1983.
Numa das minhas frequentes visitas a
espaços onde se vendem livros, observei discretamente um senhor de cerca de 50
anos interessado num livro intitulado “Um Amor Imenso”; parecendo
hesitar, largou-o e pegou “Uma Prova de Amor”; não estando ainda
satisfeito, agarrou-se ao “Faz-me Ficar”, com um semblante angustiado.
Com os três livros dispostos em cima da bancada, o homem observou as capas
demoradamente (nunca lendo as contracapas, as badanas ou o conteúdo), a fim de tomar
uma decisão sobre o livro que iria comprar, estabelecendo as devidas relações
com o destinatário ou a destinatária. A sua história poderia ser a seguinte: “Armando”,
um homem prestes a comemorar as Bodas de Prata do seu então precário casamento,
na ânsia de fazer renascer o amor perdido algures ao longo dos vinte e cinco
anos naquela linha do tempo da sua vida matrimonial, compra um livro pelo
título, na tentativa de fazer passar ao destinatário ou à destinatária uma
mensagem inequívoca: eu amo-te e quero salvar o nosso casamento, por favor,
diz que também me amas e faz-me ficar.
O “Armando” acabou por levar os três
livros, o que corrobora a minha tese hipotética: na verdade, o homem tinha um
problema sério para resolver e não quis deixar nada ao acaso. Enquanto ele se encaminhava
para a caixa de pagamento e pedia um embrulho de presente, eu fazia um
exercício de imaginação, no qual o jogo ficcional me encaminhou até uma espécie
de epifania, uma conclusão que, apesar de empírica, ia ao encontro de outras
observações similares que tenho feito na mesma livraria: há pessoas que compram
os livros apenas pela mensagem do título, sem se preocuparem com o autor ou
sequer com o conteúdo narrativo, concretizando uma espécie de auto-ajuda que
envolve duas pessoas muito especiais, a que oferece e a presenteada, ou seja, os
armandos e as valentinas em processo de remediação amorosa. Dei-me conta que
este raciocínio também serviria para diferentes tipos de desejos. Por exemplo,
qual é o objectivo de oferecer a outra pessoa o livro “Viver o Sexo Com
Prazer”? Ou “O Novo Kamasutra Ilustrado”? Ou ainda “A Bíblia do
Prazer”? É bastante óbvio, certo? É interesse reflectir e aceitar que é
possível que o escritor (e por vezes o próprio editor) pense maduramente sobre
o título do seu livro e também sobre o público a que o livro se destina, no
sentido de potenciar as vendas de exemplares. Afinal, as bancadas dos livros
são também palcos mútuos de esperança: “lindo, lindo, este título que te dou”.
Mais tarde, enquanto bebia uma água fresca
na esplanada e lia o livro de poesia que tinha trazido de casa, “O Livro das
Tréguas” de Lídia Jorge, vi o senhor “Armando” passar com um grande ramo de
flores, as tréguas perfumadas da esperança. Muito bem senhor “Armando”, vale
sempre a pena tentar salvar o amor, usa todos os teus trunfos. Eu usei os meus
e venci.
Adília César