sábado, 24 de agosto de 2019

BESTSELLERS E ASTERISCOS


Aquilo que passa por sabedoria muitas vezes não é mais do que as ideias disparatadas do nosso tempo.

James M. Russell

Quando estou de férias, tenho mais tempo para dedicar à leitura e chego a ser uma compradora compulsiva de livros e nesse sentido, visito regularmente livrarias e alfarrabistas. No entanto, leio para conhecer e não propriamente para me distrair. Assim, acredito que devo ter todo o cuidado em relação aos livros pelos quais me interesso: será que aquele livro em particular que tenho entre mãos vale o meu dinheiro e o meu tempo?

Top de Vendas de livros na FNAC (Agosto de 2019)

Há poucos dias visitei o espaço Fnac da minha cidade. À entrada, o escaparate dos livros top de vendas da semana chamou por mim, estranhamente, o que não é comum; de um modo geral, as escolhas que faço têm a ver com outro tipo de critérios, mais pessoais, críticos, e até desconfiados em relação às sugestões “da moda”. No 1º lugar deste podium literário, há mais de 500 dias e com cerca de 90 mil exemplares vendidos, está o bestseller do escritor americano Mark Manson e o primeiro livro deste autor a ser editado em Portugal – “A arte subtil de dizer que se f*da” – o qual parece ter inaugurado, no panorama literário internacional, uma moda de livros mais ou menos de auto-ajuda, com invocações histórico-sociológicas e apelos filosóficos: os que têm a palavra f no título e um número estonteante de palavrões espalhados pelo texto. Ao longo de quatro capítulos recheados de humor, experiências de vida e palavrões em todas as páginas, através de um “estilo brutalmente honesto” (segundo uma nota do editor), o autor pretende ajudar o leitor a lidar com a adversidade, a conhecer os seus limites e a reconhecer receios, falhas e incertezas, para começar a enfrentar as verdades dolorosas e focar-se no que realmente é importante. O livro apresenta “uma abordagem contraintuitiva para viver uma vida melhor”. Afinal, no dialecto de Mark Manson, “Que se fod*” quer apenas dizer “Ignorar o que não interessa na vida”.  E dá as suas instruções bem focadas num discurso sem desperdícios linguísticos de estilo ou de estética, carregado de lugares comuns, através de “palpites”: “não tente”, porque “a felicidade é um problema” e “você não é especial”, aprenda comigo “o valor do sofrimento” de uma vez por todas; por outro lado “estamos sempre a escolher”, tendo em conta que “você está errado acerca de tudo” e “o fracasso é o caminho para a frente”, não esquecendo “a importância de dizer não”, porque “…e depois morremos”.  Pronto. Mark Manson aponta problemas do cidadão comum e quer ensinar-nos a viver, através de uma narrativa popularucha que se assemelha a uma filosofia quotidiana de consolo. Mas as suas directrizes consolam quem?

Diz-nos o mesmo autor: “Vivemos numa época estranha. Apesar de termos mais liberdade, saúde e riqueza do que em qualquer outra época da história, tudo à nossa volta parece terrivelmente f*dido: aquecimento global, queda de governos, economias em colapso e todos permanentemente ofendidos nas redes sociais. Temos acesso a tecnologia, a educação e a formas de comunicar que os nossos antepassados nem sequer imaginavam, mas ainda assim sentimos uma esmagadora desesperança. Afinal, o que é que se passa connosco?” Esta é a grande questão patente no segundo livro de Mark Manson editado em Portugal, “Está tudo f*dido”, que já se posiciona no quinto lugar do mesmo top de vendas. Aqui, a abordagem é “contraintuitiva à esperança”, chegando mesmo o editor a sugerir que é “um livro de leitura obrigatória que nem todos merecemos, mas de que todos precisamos”! Realmente, nem todos merecemos.

Sim, vivemos numa época estranha. Temos tanto conhecimento relevante nos livros ao nosso dispor, mas é a espuma da literatura que atrai as moscas. Como se não nos bastasse estas duas subtilezas, ainda temos no escaparate, em nono lugar, um livro escrito pelo coach de desenvolvimento pessoal Gary John Bishop, outro bestseller mundial e nacional: o “Não te f*das” trata o leitor por “tu”, apresenta-se como “um verdadeiro manifesto para uma mudança real e significativa, e avisa que “se és do tipo que se ofende facilmente, é melhor não continuares a ler: este livro não é para ti.” As sinopses dos livros de filosofia de asterisco estão tão bem escritas, que são como sinais vermelhos de disfunção emocional, e ainda bem: esta filosofia quotidiana não me serve de consolo e o estilo demasiado coloquial com palavrões à mistura também não! Agora vou ler Friedrich Nietzsche, Santo Agostinho, David Hume, Ludwig Wittgenstein, São Tomás de Aquino, Georg Hegel, René Descartes, Platão, Immanuel Kant e Aristóteles. Apetece-me saber como falava Zaratustra, conhecer a Cidade de Deus, investigar os princípios da moral, a suma teológica, a fenomenologia do espírito, encontrar um discurso do método, mergulhar na apologia, criticar a razão pura e invocar a ética a Nicómaco. Esta sim, é filosofia consoladora para o meu quotidiano e ensina-me a viver melhor sem asteriscos. 

Adília César
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__216

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