Aquilo
que passa por sabedoria muitas vezes não é mais do que as ideias disparatadas
do nosso tempo.
James M. Russell
Quando estou de férias, tenho mais tempo
para dedicar à leitura e chego a ser uma compradora compulsiva de livros e
nesse sentido, visito regularmente livrarias e alfarrabistas. No entanto, leio
para conhecer e não propriamente para me distrair. Assim, acredito que devo ter
todo o cuidado em relação aos livros pelos quais me interesso: será que aquele
livro em particular que tenho entre mãos vale o meu dinheiro e o meu tempo?
Top de Vendas de livros na FNAC (Agosto de 2019) |
Há poucos dias visitei o espaço Fnac da
minha cidade. À entrada, o escaparate dos livros top de vendas da semana chamou
por mim, estranhamente, o que não é comum; de um modo geral, as escolhas que
faço têm a ver com outro tipo de critérios, mais pessoais, críticos, e até
desconfiados em relação às sugestões “da moda”. No 1º lugar deste podium
literário, há mais de 500 dias e com cerca de 90 mil exemplares vendidos, está o
bestseller do escritor americano Mark Manson e o primeiro livro deste autor a
ser editado em Portugal – “A arte subtil de dizer que se f*da” – o qual parece
ter inaugurado, no panorama literário internacional, uma moda de livros mais ou
menos de auto-ajuda, com invocações histórico-sociológicas e apelos filosóficos:
os que têm a palavra f no título e um número estonteante de palavrões espalhados
pelo texto. Ao longo de quatro capítulos recheados de humor, experiências de
vida e palavrões em todas as páginas, através de um “estilo brutalmente
honesto” (segundo uma nota do editor), o autor pretende ajudar o leitor
a lidar com a adversidade, a conhecer os seus limites e a reconhecer receios,
falhas e incertezas, para começar a enfrentar as verdades dolorosas e focar-se no
que realmente é importante. O livro apresenta “uma abordagem contraintuitiva
para viver uma vida melhor”. Afinal, no dialecto de Mark Manson, “Que se fod*”
quer apenas dizer “Ignorar o que não interessa na vida”. E dá as suas instruções bem focadas num
discurso sem desperdícios linguísticos de estilo ou de estética, carregado de
lugares comuns, através de “palpites”: “não tente”, porque “a
felicidade é um problema” e “você não é especial”, aprenda comigo
“o valor do sofrimento” de uma vez por todas; por outro lado “estamos
sempre a escolher”, tendo em conta que “você está errado acerca de tudo”
e “o fracasso é o caminho para a frente”, não esquecendo “a
importância de dizer não”, porque “…e depois morremos”. Pronto. Mark Manson aponta problemas do
cidadão comum e quer ensinar-nos a viver, através de uma narrativa popularucha
que se assemelha a uma filosofia quotidiana de consolo. Mas as suas directrizes
consolam quem?
Diz-nos o mesmo autor: “Vivemos
numa época estranha. Apesar de termos mais liberdade, saúde e riqueza do que em
qualquer outra época da história, tudo à nossa volta parece terrivelmente f*dido:
aquecimento global, queda de governos, economias em colapso e todos permanentemente
ofendidos nas redes sociais. Temos acesso a tecnologia, a educação e a formas
de comunicar que os nossos antepassados nem sequer imaginavam, mas ainda assim
sentimos uma esmagadora desesperança. Afinal, o que é que se passa connosco?” Esta é a grande questão patente
no segundo livro de Mark Manson editado em Portugal, “Está
tudo f*dido”, que já se posiciona no quinto lugar do mesmo top de vendas. Aqui,
a abordagem é “contraintuitiva à esperança”, chegando mesmo o editor a sugerir
que é “um livro de leitura obrigatória que nem todos merecemos, mas de que
todos precisamos”! Realmente, nem todos merecemos.
Sim, vivemos numa época estranha. Temos
tanto conhecimento relevante nos livros ao nosso dispor, mas é a espuma da
literatura que atrai as moscas. Como se não nos bastasse estas duas subtilezas,
ainda temos no escaparate, em nono lugar, um livro escrito pelo coach de
desenvolvimento pessoal Gary John Bishop, outro bestseller mundial e nacional:
o “Não te f*das” trata o leitor por “tu”, apresenta-se como “um verdadeiro
manifesto para uma mudança real e significativa, e avisa que “se és do tipo que
se ofende facilmente, é melhor não continuares a ler: este livro não é para
ti.” As sinopses dos livros de filosofia de asterisco estão tão bem
escritas, que são como sinais vermelhos de disfunção emocional, e ainda bem:
esta filosofia quotidiana não me serve de consolo e o estilo demasiado
coloquial com palavrões à mistura também não! Agora vou ler Friedrich Nietzsche,
Santo Agostinho, David Hume, Ludwig Wittgenstein, São Tomás de Aquino, Georg
Hegel, René Descartes, Platão, Immanuel Kant e Aristóteles. Apetece-me saber
como falava Zaratustra, conhecer a Cidade de Deus, investigar os princípios da
moral, a suma teológica, a fenomenologia do espírito, encontrar um discurso do
método, mergulhar na apologia, criticar a razão pura e invocar a ética a
Nicómaco. Esta sim, é filosofia consoladora para o meu quotidiano e ensina-me a
viver melhor sem asteriscos.
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__216
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