sábado, 3 de agosto de 2019

MÁQUINAS DE PESTANEJAR


É o império da emoção contra a chateação, da excitação contra o tédio, da rapidez contra o tempo natural das coisas, da festividade contra a tranquilidade, da ebriedade contra a sobriedade.
Marcia Tiburi


Erica, o estranho robô japonês

Agosto é o mês dourado do tempo de férias: festas, petiscos, festivais, feiras, cocktails, sunsets, viagens. Muito tempo perdido: disparates, superficialidades, indiferenças, devaneios, amores e amizades sem futuro. Planeiam-se as férias, imaginando um mundo que não existe, ao qual se chama paraíso, geralmente tornado real através de uma fotografia – verdadeira ou falsa – partilhada nas redes sociais. Outros mundos mostram-se tal como são desenhados, nos meios de comunicação social: loucos e cruéis, muito distanciados dos tais paraísos de férias dos folhetos publicitários de propaganda demagógica e turística. Ainda assim, ansiamos pelas férias de verão.

É no verão que nos aproximamos a largos passos do precipício que é o nosso vazio interior, enquanto seres humanos. Porque cumprimos as ordens do sol, da publicidade, do calendário, do consumismo, das ideias prontas, temos propensão para esquecermos a nossa essência de pessoas. Ser pessoa é um verbo formado por três conceitos – pensamento, emoção, acção – veiculados, por um lado, pelas pseudo-necessidades redimensionadas pela ditadura do consumo e, por outro, pelas necessidades reais substanciadas pela decisão pessoal ou colectiva que deveria ter em conta – mas não tem – a reflexão, o questionamento, a crítica e o discernimento.

A linguagem e a comunicação assumem outras formas numa contemporaneidade caracterizada pelos vazios do pensamento, da emoção, da acção, em grande parte devido ao papel social imposto pelas redes virtuais. As redes são sociais porque estão a mudar a sociedade, mas também são, em grande parte, demolidoras da própria comunicação entre as pessoas, parecendo um enorme manicómio onde cada “louco” diz o que lhe apetece: os outros parecem estar lá, mas não o ouvem, logo, não lhe respondem, ignoram-no, ostracizam-no, bloqueiam-no. Estas acções de causa expectante e efeito negativo promovem insatisfação, desalento, raiva e fazem surgir outros fenómenos psicológicos de esvaziamento do conteúdo emocional que parece não terem ainda nome clínico.

Cartoon de Pawel Kuczynski

Por outro lado, muita gente partilha infinitamente um enorme fluxo de ideias feitas, que assume como apelativas, sendo consumidas de imediato e não questionadas pelos destinatários; nessa viagem virtual levamo-las connosco na bagagem, esse excesso de peso que nos torna menos humanos. As pessoas procuram emoções em todos os cenários ditos radicais ao seu alcance: espectáculo, sexo, comida, droga, álcool, desporto, etecetera, mas não descodificam as emoções quando as encontram, assumem-nas levianamente como “mais uma experiência” e rapidamente partem para outra caça ao tesouro, como uma deambulação anestesiada pela procura do êxtase. Pelo caminho, os acidentes, as catástrofes e os desastres noticiados nos meios de comunicação social e redes sociais já não os comovem, parecendo existir um estado de frieza generalizada face ao sofrimento dos outros, nada fazendo para o minimizar. É difícil manter a lucidez no meio do caos, mesmo após um agradável mergulho nas águas cristalinas do oceano. As solicitações são tantas, que não sobra tempo para olhar o mundo com a percepção nítida de que realmente vimos alguma coisa comovente e nos faz intervir como cidadãos cívicos.

A violência e a banalidade do mal referidas por Hannah Arendt não têm como base a malignidade, a perversão ou o pecado humano. Ela argumentou que os seres humanos podem realizar acções extremas de destruição e de morte sem qualquer motivação maligna, sem razão aparente ou justificável, tendo em conta os processos de naturalização da sociedade e de artificialização da natureza, ambos decorridos da massificação, da industrialização e da “tecnificação” das atitudes no seio das organizações humanas, ou seja, o mal é abordado numa perspectiva ético-política e não na visão moral ou religiosa. Se o pensamento, a emoção e a acção constituem o triângulo de forças que dá corpo à essência do ser humano, também é verdade que estamos a ser invadidos pelos vazios correspondentes, para os quais em muito contribui o tempo perdido com as novas formas virtuais de relacionamento e de comunicação: porque o que procuramos já lá não está, quando nos transformarmos em máquinas de pestanejar, quando formos menos humanos, por vontade e responsabilidade própria.

É urgente tomarmos consciência de que o desenho da realidade já não é figurativo nem abstracto: é real, confuso, literal, a mudar os conceitos éticos que tudo justificam, esquecendo que todos viajaremos a caminho da eternidade no mesmo barco, pois todas as coisas se compram menos a passagem para o tempo da morte. Paradoxos da civilização a impor novos conceitos éticos. Não há soluções à vista. Na verdade, não necessitamos de profetas da luz ou da escuridão, mas sim de amor incondicional ao próximo e do regresso às coisas simples, antes de chegarmos ao ponto sem retorno: a água pura e o pão que a terra nos dá, a abelha e o lobo, o silêncio da solidão os gritos do sofrimento alheio; abolir preconceitos; e esperar um big bang que nos traga um novo mundo mais humano, depois do grande desastre. Há uma indiferença latente que ainda nos é permitida, uma espécie de falsa inocência, tendo em conta a facilidade com que nos apropriamos dos vazios que nos chegam através do prolongamento da nossa mão: o smartphone e a sua divina omnipresença. Até quando?

Adília César

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