É o império da emoção
contra a chateação, da excitação contra o tédio, da rapidez contra o tempo
natural das coisas, da festividade contra a tranquilidade, da ebriedade contra
a sobriedade.
Marcia
Tiburi
Erica, o estranho robô japonês |
Agosto é o mês
dourado do tempo de férias: festas, petiscos, festivais, feiras, cocktails, sunsets,
viagens. Muito tempo perdido: disparates, superficialidades, indiferenças, devaneios,
amores e amizades sem futuro. Planeiam-se as férias, imaginando um mundo que
não existe, ao qual se chama paraíso, geralmente tornado real
através de uma fotografia – verdadeira ou falsa – partilhada nas redes sociais.
Outros mundos mostram-se tal como são desenhados, nos meios de comunicação
social: loucos e cruéis, muito distanciados dos
tais paraísos de férias dos folhetos publicitários de propaganda demagógica e turística.
Ainda assim, ansiamos pelas férias de verão.
É no verão que nos aproximamos a largos passos do precipício
que é o nosso vazio interior, enquanto seres humanos. Porque cumprimos as
ordens do sol, da publicidade, do calendário, do consumismo, das ideias
prontas, temos propensão para esquecermos
a nossa essência de pessoas. Ser pessoa é um verbo formado por três
conceitos – pensamento, emoção, acção – veiculados, por um lado, pelas
pseudo-necessidades redimensionadas pela ditadura do consumo e, por outro, pelas
necessidades reais substanciadas pela decisão pessoal ou colectiva que deveria ter
em conta – mas não tem – a reflexão, o questionamento, a crítica e o
discernimento.
A linguagem e a comunicação assumem outras formas numa
contemporaneidade caracterizada pelos vazios do pensamento, da emoção, da
acção, em grande parte devido ao papel social imposto pelas redes virtuais.
As redes são sociais porque estão a mudar a sociedade, mas também são,
em grande parte, demolidoras da própria comunicação entre as pessoas, parecendo
um enorme manicómio onde cada “louco” diz o que lhe apetece: os outros parecem
estar lá, mas não o ouvem, logo, não lhe respondem, ignoram-no, ostracizam-no,
bloqueiam-no. Estas acções de causa expectante e efeito negativo
promovem insatisfação, desalento, raiva e fazem surgir outros fenómenos
psicológicos de esvaziamento do conteúdo emocional que parece não terem ainda
nome clínico.
Cartoon de Pawel Kuczynski |
Por outro lado, muita gente partilha infinitamente um enorme
fluxo de ideias feitas, que assume como apelativas, sendo consumidas de
imediato e não questionadas pelos destinatários; nessa viagem virtual
levamo-las connosco na bagagem, esse excesso de peso que nos torna menos
humanos. As pessoas procuram emoções em todos os cenários ditos radicais ao seu
alcance: espectáculo, sexo, comida, droga, álcool, desporto, etecetera, mas não
descodificam as emoções quando as encontram, assumem-nas levianamente como
“mais uma experiência” e rapidamente partem para outra caça ao tesouro, como uma
deambulação anestesiada pela procura do êxtase. Pelo caminho, os acidentes, as
catástrofes e os desastres noticiados nos meios de comunicação social e redes
sociais já não os comovem, parecendo existir um estado de frieza generalizada
face ao sofrimento dos outros, nada fazendo para o minimizar. É difícil
manter a lucidez no meio do caos, mesmo após um agradável mergulho nas águas
cristalinas do oceano. As solicitações são tantas, que não sobra tempo para olhar
o mundo com a percepção nítida de que realmente vimos alguma
coisa comovente e nos faz intervir como cidadãos cívicos.
A violência
e a banalidade do mal referidas por Hannah Arendt não têm como base a
malignidade, a perversão ou o pecado humano. Ela argumentou que os seres
humanos podem realizar acções extremas de destruição e de morte sem qualquer
motivação maligna, sem razão aparente ou justificável, tendo em conta os
processos de naturalização da sociedade e de artificialização da natureza,
ambos decorridos da massificação, da industrialização e da “tecnificação” das atitudes
no seio das organizações humanas, ou seja, o mal é
abordado numa perspectiva ético-política e não na visão moral ou religiosa. Se
o pensamento, a emoção e a acção constituem o triângulo de forças que dá corpo
à essência do ser humano, também é verdade que estamos a ser invadidos pelos
vazios correspondentes, para os quais em muito contribui o tempo perdido com as
novas formas virtuais de relacionamento e de comunicação: porque o que
procuramos já lá não está, quando nos transformarmos em máquinas de pestanejar,
quando formos menos humanos, por vontade e responsabilidade própria.
É urgente tomarmos consciência de que o desenho da realidade já não é
figurativo nem abstracto: é real, confuso, literal, a mudar os conceitos éticos
que tudo justificam, esquecendo que todos viajaremos a
caminho da eternidade no mesmo barco, pois todas as coisas se compram menos a passagem para o tempo
da morte. Paradoxos da civilização a impor novos
conceitos éticos. Não há soluções à vista. Na verdade, não necessitamos de
profetas da luz ou da escuridão, mas sim de amor incondicional ao próximo e do regresso
às coisas simples, antes de chegarmos ao ponto sem retorno: a água pura e o pão
que a terra nos dá, a abelha e o lobo, o silêncio da solidão os gritos do
sofrimento alheio; abolir preconceitos; e esperar um big bang que nos traga
um novo mundo mais humano, depois do grande desastre. Há uma indiferença
latente que ainda nos é permitida, uma espécie de falsa inocência, tendo
em conta a facilidade com que nos apropriamos dos vazios que nos chegam
através do prolongamento da nossa mão: o smartphone e a sua divina
omnipresença. Até quando?
Adília César
Sem comentários:
Enviar um comentário