Num mundo realmente às avessas, o
verdadeiro é um momento do falso.
(Guy Debord, in “A Sociedade do Espectáculo”,
1967)
Kiss Andrea © 2019 |
Estamos todos juntos,
estamos todos de costas voltadas para não nos vermos, mas envergamos, gulosos,
as máscaras de quem queríamos ser. Agosto congestiona as estradas, as
esplanadas, as expectativas, a filosofia do quotidiano; contudo, se todos os
desejos são precários, não é menos verdadeira a certeza de que as férias
chegarão rapidamente ao seu fim. Existe uma circularidade nos elementos que
compõem os nossos dias e noites, as horas reconduzidas ao seu lado excessivo e…
inútil. Olhamos em volta e percebe-se que os sentidos lato e específico da produção
de bens e serviços (não só em agosto, mas durante todo o ano), é a procura obrigatória
de horizontes substituíveis. E nós obedecemos.
A substância das
relações sociais que ligam as pessoas umas às outras modificou-se, passando a
ser menos autêntica, especulativa e ficcional: simulada. Temos prova desta
premissa na encenação do teatro da vida – a irrealidade virtual – como uma
representação dessa mesma vida da qual fomos expropriados na omnipresença da
cultura do estrelato, onde as celebridades se pavoneiam perante os nossos
olhares de cobiça. E nós, os pobres espectadores, somos meros figurantes nos
cenários de agosto e vivemos as nossas vidas em segunda mão. A cultura do
excesso, do espectáculo, conduz a um grande vazio na ruptura com a nossa
essência humana: a emoção, o pensamento e a acção enfiados no buraco sem fim da
lógica do consumo, a disciplina do parecer a qualquer preço. O “ser pessoa”
é agora o processo quantificador na busca da uma miragem, o “parecer ser outra
pessoa” que acumula. O “ser” é “ter”: mais coisas, mais experiências, a um
ritmo avassalador e à imagem de um deus qualquer com os pés enfiados nuns
chinelos.
As personagens construídas
com vista ao engodo global e com as quais somos levados a identificar-nos, não
são, elas próprias, um fragmento dessa enorme miragem que é a escalada social
da vida moderna? Até as nossas crianças sonham com a fama, identificam-se diariamente
com as personagens célebres das séries que visualizam nos écrans. Exigem ser
como elas, querem possuir os adereços que compõem a personagem que admiram.
Imitam, apropriam-se, iludem-se. E depois substituem por outra qualquer, mais
apelativa ou mais presente, por via do espectáculo que lhes é oferecido através
da publicidade, da nova série produzida precisamente para esse efeito: assim se
educa para a omnipresença de um novo mundo virtual e infinitamente descartável,
para sermos dependentes de uma imagem criada não à nossa própria imagem, mas de
acordo com a lógica da disciplina económica e a-politizada, tão perigosa porque
não a compreendemos.
Agosto até pode ser um
mês de calendário como outro qualquer, mas também é o “desagosto” da vida, o
tempo dito livre que acaba por não nos dar nenhuma liberdade de pensamento-acção,
pois andamos distraídos, queremos andar entretidos. Pelo contrário, é um
sujeito colaborador e pactuante no enorme cinismo da manipulação colectiva num
mundo saturado de imagens: «tudo o que aparece é bom e tudo o que é bom
aparece», disse Guy Debord, preconizando que nós, os espectadores, ao não
encontrarmos o que desejamos, desejamos o que encontramos. Cuidado, muito
cuidado, o perigo apenas espreitava, mas agora vive entre nós, é o elo servil e
invisível que nos liga e aprisiona.
Adília César
Sem comentários:
Enviar um comentário