sábado, 26 de junho de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [16] por Adília César


Por isso preferiu permanecer calado – tendo por consolação entrever «o norte para que se inclina a divina bússola do espírito humano».

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Salvador Dalí, Figura Cubista, 1925

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COMO NOS OLHA

este olhar parado, esta íris de nudez clandestina, o véu que desoculta a vida a entontecer. A vida… é um turbilhão e nós rodopiamos na periferia, na ânsia de chegar ao epicentro. Dança menina dança na tua saia redonda. Que cintilava olhos de ser coisa viva. E nós ficaremos aqui a olhar. A vida.

 

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VER

a luz e a sombra. As esquinas, os cantos, a verticalidade do teu espírito. É um espectáculo com morte por dentro, porque toda a coisa viva está, inevitavelmente, quase a morrer. Assim, devagar, como restolho ao sol. Mas este é o teu momento presente e esta é a nossa expectativa de acumulação, uns em cima dos outros, em forma de pirâmide. Se conseguires trepar por cima dos nossos corpos, a cúpula cimeira será o trono dos teus momentos futuros. Tenta. Vais ver que vale a pena.

 

*

SENTIR

uma emoção emendada à última hora. O cão rosna com afinco e sente o teu medo. Fecha os olhos. Ouve o zumbido do calor na parede do aquário onde te refrescas. À tua volta, a multidão corre desenfreada e não sai do mesmo sítio. É um caracol monstruoso de múltiplos rumores. Repara, amanhã tudo isto estará apagado, silencioso. Sentirás então a perspectiva de um anúncio verdadeiro, a sensação de morte nesse peso que carregas nos ombros. Respira. Ainda não é a morte: é apenas o teu coração atulhado de mentiras, é a tua cabeça enroscada em tantos rostos falsos.

 

*

O NORTE

pode ser uma imagem disruptiva que orienta o teu espírito. Afinal, a tua mente é caótica. Sangras os teus desconcertos diários e a ordem melódica não te agrada. Rompes com as normas impostas e procuras outro rumo; o Sul, talvez. Tentas, tentas, mas a espiral que te aprisionou quando ainda eras uma criança não te liberta. O que resta é uma imagem no horizonte que se altera a cada instante e que tu não consegues agarrar.

 

 Adília César, 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_293

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