O
riso é a mais útil forma da crítica, porque é a mais acessível à multidão. O
riso dirige-se não ao letrado e ao filósofo, mas à massa, ao imenso público
anónimo. É por isso que hoje é tão útil como irreverente rir das ideias do
passado: a multidão não se ocupa de ‘ideias’, ocupa-se das ‘fórmulas visíveis’,
convencionais das ideias.
Eça de Queirós (1845-1900),
in Notas Contemporâneas (1909, obra
póstuma)
AS
IDEIAS
são
como as pessoas que as idealizam. As ideias velhas vêm do passado e ficam por
ali, a aquecer a garganta, como um cachecol de lã. Por vezes, surge uma ideia
nova que insiste em vestir o mesmo corpo, como um lenço de seda. Não sabemos o
que fazer com tantas ideias, com tantos adereços. Tentamos guardá-las nas
prateleiras do cérebro e nas gavetas do coração, mas elas limitam-se a vaguear
pelas ruelas do silêncio e da solidão. Às vezes, as nossas ideias vestem-se com
palavras. Neste sentido, há palavras de couro, gaze, lã, seda e outras tramas
desmoronadas. Outras vezes, o espírito encerra uma violência insuportável e
ainda alguns preconceitos, tão, mas tão inúteis: as palavras de arame farpado
ostracizam o inefável humano.
*
são
tesouros sólidos, difíceis de preservar. Os seus constituintes – átomos,
moléculas, iões, pensamentos e actos – estão organizados num padrão
tridimensional bem definido, que se repete nos seus espaços de permanência,
interiores ou exteriores, formando uma estrutura com uma geometria única, sendo
que cada pessoa exibe a sua substância mais ou menos confiável. Tanto a
confiança como o cristal perecem quando menos se espera, pelo toque brusco,
pela vibração exasperada, pelo pensamento estupidificado ou pelo acto
enganador. É necessário um apurado desvelo na sua manutenção, sendo
irreversível a sua quebra.
Escultura de Gustav Vigeland - Parque Vigeland, Oslo |
MAS
também
podemos pensar nos panos que cobrem a nudez do corpo e do espírito como
um vestuário emocional que nos protege das intempéries relacionais e sociais. Sabemos
que esses panos têm as cores dos preconceitos e dos falsos pudores, essas
terríveis vagas de desconforto. O que quer dizer que podemos despir as roupas,
mas nunca ficamos completamente nus. A nudez é sempre interior. A pele que vês
em mim é apenas o contorno do meu corpo vestido com as ideias que extravasam as
fronteiras da minha humanidade.
*
nenhuma
perspectiva sobre o mundo é definitivamente verdadeira, apenas te resta rir da
minha vaga desorientação, da minha tentativa de levar a vida a sério e, ao
mesmo tempo, de não a levar a sério. Rio e choro, tento agarrar o mundo e
também o abandono. A vida é tão irónica e presunçosa. Conhece a relação entre a
morte e a beleza, entre o mistério e o sangue derramado. O paradigma será
sempre de expressão auto-destrutiva do amplo universo paradoxal que existe em
cada pessoa. Destruir para poder construir. E assim se passam os dias. O tempo
o tempo. A vida a vida. Eu e tu.
*
somos murmúrios do tempo, depois de uma breve interacção com as alegrias e as tristezas dos que me rodeiam e dos que nem sequer sabem que eu existo. Somos ironias ecoadas no infinito cosmos até aos confins da última luz, aquela estrela que guardámos para rir no fim, em luminosa companhia. Eu e tu vestidos de nada. Tão vivos, tão fascinantes, passamos incógnitos por entre uma massa de ideias convencionais face à brevidade da nossa passagem. E de repente, tomamos consciência das infinitas possibilidades ao nosso alcance. Assumimos um estilo, uma forma de aparecer perante os outros. Tu e eu, a rir.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__291
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