Eça de Queirós (1845-1900),
in Notas Contemporâneas (1909, obra
póstuma)
Blasphemous Enemies Concept Art - Juan Miguel López Barea |
ESTRANHO
nome
para o meu poema magro e áspero, como se a luz amanhecesse desbotada, ausente
de pontos cardeais ou de velocidades de ventos. Sem referencial, sigo a marcha
do desnorte em câmara lenta, numa bobine antiga de um filme mudo de outra época,
com imagens imperfeitas e holofotes sujos de insectos desviados do seu rumo. Estranho
sentido para o meu poema, vazio e redundante, como se a luz desistisse dela
própria e se transformasse em espiral de escuridão.
*
UM
REFERENCIAL
enganador, perdida que estou neste lugar intermédio, em vésperas de nada acontecer. Dizes que és idioma poético. Dizes que tens a verdade dentro de ti. Dizes que és um fazedor de milagres. Brilharias sempre assim nas manhãs indecisas? Ofuscarias humanos e anjos por entre instantes da loucura? Luz, um referencial de alegria para o meu poema sombrio. Uma teoria de tudo. Funde-se o verso nessa intensidade.
*
MAS
não
existem zonas lúcidas quando o mel escorre em vão. O que é visto nunca nos
deixa do outro lado deste pequeno mundo cheio de chapéus pretos sem cabeças
dentro. Nas ruas rolam cabeças improváveis, acamadas no mel que dá a volta ao
mundo, todas iguais e inúteis, sem pensamentos por dentro. Os chapéus pretos de
tamanhos diferentes parecem dominar a paisagem ainda dourada e quente, em
veneração ao deus sol, e riem. Oh… como riem. De quê?... Afinal, há uma única
verdade, decadente e sem qualquer espécie de humor: aquilo que existe afinal
não existe; não há mundos feitos de chapéus pretos; tudo o que vês é a
descrição de um caos definitivo, uma gélida planície de cabeças a rolar nas
ruínas das ruas desertas. Debaixo dos meus pés, em triunfo, a impermanência da
vida.
*
QUERIA
não
ter medo. Um poema é sempre demente, ainda que calado em murmúrio traiçoeiro. Sustenho
a respiração do poema e ele cai em câmara muito lenta. É certo que não há
forças de gravidade no plano irracional, mas quando cai o poema parte-se devagar
e eu parto-me com ele. Por vezes, conserto o poema com a baba da minha demência
e ele aceita o curativo. Entende a sua própria resignação como vitória das
palavras humedecidas, mas não: é apenas um episódio surreal, um triste e
anónimo poema colado com cuspo.
*
EU,
cada
vez mais partida e não consigo consertar-me. O que se afoga é o que ninguém lê.
O que se fragmenta é a compreensão avulsa da literatura. Das palavras apenas se
deviam erguer as dúvidas, nunca as respostas. Que interessam as certezas se não
souberes que pergunta deves fazer? E regresso à profundidade de tudo o que
ainda não tem luz: o poço da indiferença.
Adília César,
in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_295
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