sábado, 26 de junho de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [17] por Adília César

 

E nós, aqui, a escrevinharmos não sei que coisinhas minúsculas, que, apenas rabeiam um momento sobre o papel, são logo pó imperceptível!... – Você não tem vontade de se atirar a um poço? Eu tenho.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)


Blasphemous Enemies Concept Art - Juan Miguel López Barea



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ESTRANHO

nome para o meu poema magro e áspero, como se a luz amanhecesse desbotada, ausente de pontos cardeais ou de velocidades de ventos. Sem referencial, sigo a marcha do desnorte em câmara lenta, numa bobine antiga de um filme mudo de outra época, com imagens imperfeitas e holofotes sujos de insectos desviados do seu rumo. Estranho sentido para o meu poema, vazio e redundante, como se a luz desistisse dela própria e se transformasse em espiral de escuridão.

 

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UM REFERENCIAL

enganador, perdida que estou neste lugar intermédio, em vésperas de nada acontecer. Dizes que és idioma poético. Dizes que tens a verdade dentro de ti. Dizes que és um fazedor de milagres. Brilharias sempre assim nas manhãs indecisas? Ofuscarias humanos e anjos por entre instantes da loucura? Luz, um referencial de alegria para o meu poema sombrio. Uma teoria de tudo. Funde-se o verso nessa intensidade.


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MAS

não existem zonas lúcidas quando o mel escorre em vão. O que é visto nunca nos deixa do outro lado deste pequeno mundo cheio de chapéus pretos sem cabeças dentro. Nas ruas rolam cabeças improváveis, acamadas no mel que dá a volta ao mundo, todas iguais e inúteis, sem pensamentos por dentro. Os chapéus pretos de tamanhos diferentes parecem dominar a paisagem ainda dourada e quente, em veneração ao deus sol, e riem. Oh… como riem. De quê?... Afinal, há uma única verdade, decadente e sem qualquer espécie de humor: aquilo que existe afinal não existe; não há mundos feitos de chapéus pretos; tudo o que vês é a descrição de um caos definitivo, uma gélida planície de cabeças a rolar nas ruínas das ruas desertas. Debaixo dos meus pés, em triunfo, a impermanência da vida.

 

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QUERIA

não ter medo. Um poema é sempre demente, ainda que calado em murmúrio traiçoeiro. Sustenho a respiração do poema e ele cai em câmara muito lenta. É certo que não há forças de gravidade no plano irracional, mas quando cai o poema parte-se devagar e eu parto-me com ele. Por vezes, conserto o poema com a baba da minha demência e ele aceita o curativo. Entende a sua própria resignação como vitória das palavras humedecidas, mas não: é apenas um episódio surreal, um triste e anónimo poema colado com cuspo.

 

*

EU,

cada vez mais partida e não consigo consertar-me. O que se afoga é o que ninguém lê. O que se fragmenta é a compreensão avulsa da literatura. Das palavras apenas se deviam erguer as dúvidas, nunca as respostas. Que interessam as certezas se não souberes que pergunta deves fazer? E regresso à profundidade de tudo o que ainda não tem luz: o poço da indiferença.


Adília César, 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_295

 

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