sábado, 13 de fevereiro de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [10] por Adília César

A minha alma, segundo afirma aquele homem diabólico, jaz enterrada sob densas camadas de materialidade. Acredito. Mas ela está lá muito quieta, muito confortável, muito feliz. Para que hei-de eu desbastar, adelgaçar, e furar essas abóbadas da matéria, para que a minha alma se escape para as regiões tormentosas e aterradoras da espiritualidade? É uma coisa perigos, uma alma assim solta pelos ares, em companhia de espíritos... Não lhe parece?

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"Blaubenren" - O maior meteorito encontrado na Terra (30Kg, Alemanha)

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A ENORMIDADE

dos gestos maléficos da espécie humana, perdida no abismo de um mundo que a rejeita. A água dá a vida, a água mata a vida. A criança bebe a água pura da concha das mãos de sua mãe. O cão afoga-se com dois tijolos presos ao pescoço pelo próprio dono. As mãos e as mãos, feitas de ossos, ligamentos, músculos, pele. As mãos iguais e antagónicas. O cérebro comanda o corpo, o livre arbítrio induz a filosofia do quotidiano à ética. Qual?

 

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OS DIAS

passam a correr, desenfreados, de um lado para o outro. Estão irremediavelmente longe da linha do tempo e nem as frases repetidas nos ecos das notícias permitem a interiorização satisfatória dos últimos acontecimentos. Também esses, os acontecimentos do presente, se perdem. Para sempre? Não. Há uma criança que nasce e tudo volta ao seu lugar. O medo cede à esperança.

 

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A MINHA ALMA

está onde eu a coloquei: no pedestal da serenidade, dentro da casa de vidro. À volta, dispus os acontecimentos não fatais perfeitamente alinhados de acordo com a sua importância. E é este sigilo em redor a sussurrar: o meu coração é uma faca de sangue que se enterra na manteiga ao ritmo de longas frases sem sentido. É uma história que já ninguém quer ouvir. Para não desaparecer de vez apoia-se nos cotovelos das rochas e chora essas dores submersas. As lágrimas são vermelhas e riscam a minha face em sulcos de fogo líquido. Lento como o sussurro que perdura no eco daquilo que sou. A serenidade estende-me os seus braços líquidos e frescos, enlaça-me como se fosse um espírito manso, meigo, primaveril. Como se fosse a minha mãe a dar-me de beber na concha das suas mãos. E assim sobrevivo.

 

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A COMÉDIA HUMANA

dos preguiçosos torna invisíveis as novas oportunidades de reflexão. As pessoas vivem no caos do pensamento e não sabem onde se situa a linha entre a loucura e a lucidez, entre a sombra e a luz, entre a morte e a vida, entre o corpo e o espírito. As palavras e as imagens são diferentes na sua substância, embora a um nível superior palavra e imagem sejam uma totalidade. A palavra é a expressão de um sentido abstracto, é o espírito da imagem que tem esse nome. A palavra acende o caos. Sensações, sentimentos, expectativas com nomes próprios e intransmissíveis. A imagem como apêndice da palavra conduz o seu nome até ao universo real. É difícil eliminar uma ideia recriada numa imagem porque a criação devolve-a à vida, à realidade que conheço. A imagem é física, palpável, mas pode ser uma ilusão se o imprevisível impedir o visível. O que é uma percepção da realidade? O perigo dos oxímoros: faço um gesto e guardo esse gesto numa imagem; continuo a fazer gestos e não os guardo; os gestos não inscritos nas imagens são irreais por não existirem na realidade, pertencendo, inevitavelmente, ao passado? O meu corpo é uma realidade irreal. O meu espírito é uma irrealidade real. A imagem é um drama do meu inconsciente elevado a uma consciência absoluta daquilo que sinto, o conhecimento interior que possuo naquele preciso momento e que te quero mostrar. Estamos perto do fim e já não restam imagens das lembranças, apenas sobraram as palavras.

Olha-me. Eu estou a revelar-te o que vejo, o que sinto, o que sei. Consegues ver?

Adília César, 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__280

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