sábado, 30 de janeiro de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [8] por Adília César

 

A consciência é uma outra ilusão, uma modalidade efémera, pois que nada de eterno se pode nela realizar. De que serve ter sido, ou procurar ser, justo e bom? Justiça e bondade findam no pó, infecundos como o pó. A vida é um desolado logro. E o melhor é morrer, pois que nos liberta da miséria, da vergonha, do horror da universal falsidade.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Untitled (Two on Gold), 1982, Jean-Michel Basquiat

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CONTEMPLAR

as ideias como quem olha botões de rosa no tecto do jardim. Num lugar médio, alguns espinhos predestinam-te aos acontecimentos e ocultam-se num plano profundo as raízes da linguagem: esplendor de sabedoria atrás de uma cortina. Mas é o idioma do medo, algoz de todas as dúvidas, que te fustiga. Enrolas-te nesse destino cruel para a pele sentir o frio desde o primeiro inverno. É urgente sentir alguma coisa. Quando as pétalas das flores desaparecem, há sempre uma ideia de inverno que perdura, não se sabe se por um instante ou por toda a eternidade. Não se sabe ainda nada sobre esse imenso frio da ignorância. Aqui tão perto, outras Flores do Mal[1] apregoam crimes de decadência e tédio e conduzem, impunemente, à absolvição.

 

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A ÉTICA

como salvação implica um olhar amplo, como uma espécie de respiração da vida que a visão periférica alcança. No caminho dos meus olhos, o que guardo predispõe-me à acção: eu e os outros, eu com os outros, eu por dentro dos outros. O simples olhar não convoca o desequilíbrio nem as decepções, apenas a serenidade de uma flor, a força de uma gaivota, o poder das ondas, a liberdade das nuvens, a sabedoria de uma árvore, permanecem plasmados na retina. Todo o universo silencioso em meu redor. O que fazer com o que não compreendo?

 

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OS SILÊNCIOS

também têm sangue, recolhido nas palavras sentidas, pensadas, ditas e escritas. Sensibilidade, inteligência, criatividade, pensamento divergente. O Mal e o Bem à disputa pelo lugar mais improvável: a cabeça ou o coração olham-se de frente, sem distracções; constroem pontes entre a realidade e a imaginação, sem demagogias. A ética pode salvar-nos, mas o que nos perde é o ar que respiramos e a cedência aos nossos impulsos mais viscerais, animalescos, dementes.

 

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A CONFIANÇA

e o cristal são tesouros sólidos, difíceis de preservar. Os seus constituintes - átomos, moléculas, iões, pensamentos e actos - estão organizados num padrão tridimensional bem definido, que se repete nos seus espaços de permanência, interiores ou exteriores, formando uma estrutura com uma geometria única, sendo que cada pessoa exibe a sua substância mais ou menos confiável. Tanto a confiança como o cristal perecem quando menos se espera, pelo toque brusco, pela vibração exasperada, pelo pensamento estupidificado ou pelo acto enganador. É necessário um apurado desvelo na sua manutenção, sendo irreversível a sua quebra.

 

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RECOMECEMOS

sem angústias a reorganização do mundo. Plantemos as Flores do Bem. Pois se há uma névoa que tudo apaga, também há um perfume que perdura na obra incessante da civilização. Quero acreditar que ainda há tempo.


Adília César, 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__279



[1] «Esse/Paira sobre a vida e entende sem explicar a língua das flores/A comunicação do mudo vivo.», p. 37, in As Flores do Mal, Charles Baudelaire, tradução de Maria Gabriela Llansol.

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