(...) Você, bem sei, acha isso risível. Mas que diabo! Você é um poeta, um orador, um lutador – e eu sou apenas um pobre homem (...).
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
"Diário de Descobertas" - O surrealismo romântico de Vladimir Kush |
*
DIZER
“PALAVRA”
é
quase o mesmo que dizer “realidade”. A palavra é, está, constrói, destrói, vive
e morre nas coisas deste mundo que nos parece tão real e de outros que
imaginamos. A palavra dita, escrita, lida, imaginada. Se as coisas não tiverem
um nome, temos mesmo a certeza que elas existem?
*
DIZER
“PALAVRA”
é
quase o mesmo que dizer “humanidade”. A palavra é, está, constrói, destrói,
vive e morre em cada homem e cada mulher. Se as ideias humanas não puderem ser
evidenciadas pela linguagem (falada, escrita, lida e imaginada), temos mesmo a
certeza que elas existem? E o ser humano, enquanto personificação de algo mais
que a mera sobrevivência da espécie, existe sem as palavras? O que teria levado
o grande Jean-Paul Sartre a deixar para as gerações futuras uma obra
autobiográfica intitulada precisamente “As Palavras”? Disse ele: «continuo a
escrever. Que outra coisa posso fazer? Nulla dies sine linea. É o meu
hábito e é, também, o meu ofício. Durante muito tempo tomei a pena por uma espada;
agora, conheço a nossa impotência. Não importa: faço e farei livros; são
necessários; sempre servem, apesar de tudo. A cultura não salva nada nem
ninguém, não justifica. Mas é um produto do homem: o homem projecta-se nela,
reconhece-se nela; só esse espelho crítico lhe devolve a própria imagem.» Sim,
o que nos resta?
*
GOSTO
DE PENSAR
que
somos tantas palavras e também tantas linguagens, não esquecendo que a
expressão e a comunicação são facilitadas através de diferentes códigos. Mas
voltemos às palavras. Todas as palavras são importantes, as utilitárias e as
estéticas, desde o som nítido das sílabas até ao seu eco. Por exemplo, é
inverno e o dia apresenta-se muito nublado, com temperaturas inferiores a 5
graus; saio para a rua sem casaco, sinto o frio no corpo e arrepio-me; a
sensação é desagradável. A percepção física do clima conduziu-me a um discurso
meteorológico e utilitário. Mas a palavra pode ser mais do que isso, através da
comunicação estética de uma intenção poética e assim, escrevo um poema:
“Contemplar as ideias como quem olha botões de rosa no tecto do jardim. Num lugar médio alguns espinhos predestinam-te aos acontecimentos e ocultam-se num plano profundo as raízes da linguagem. Ah, esplendor de sabedoria. Mas é o idioma da fome, algoz de todas as dúvidas, que te fustiga. Enrolas-te nesse destino cruel para a pele sentir o frio desde o primeiro inverno. É urgente sentir alguma coisa. Secam as pétalas das flores e há uma ideia de inverno que perdura, não se sabe se por um instante ou por toda a eternidade. Não se sabe ainda nada sobre esse imenso frio da ignorância.”
O
que disse eu neste fragmento de linguagem que pretendia atingir a significação
estética? E qual poderá ser a utilidade deste poema?
*
PODEREI
ESCREVER
o
mundo todo como se fosse um imenso oceano. Gotas de água, gotas de
significados. Uma gota de água, onde se condensam mil sentidos. Mas de que
serve inventariar o possível da linguagem poética, se a ela não estiver
subjacente a experiência emocional sobre a qual pretendo poetizar? Quero
escrever sobre os pássaros, mas nunca vi a plenitude do voo da águia. Quero
escrever sobre as flores, mas nunca cheirei o perfume de um jasmim a
desabrochar. Quero escrever sobre o amor, mas nunca toquei o rosto do meu filho
por nascer. E ainda que me disponha a sentir o que é apenas um desejo de sentir,
devo ultrapassar a obviedade do discurso: este é o apelo do meu caráter
intrinsecamente humano. Não há poesia sem dúvidas, sem questionamento e sem as divergentes
linhas de resposta, mas alguém há-de sobreviver no profundamente humano e
espiritual, entre abismos, quedas e cadeirões de veludo. A salvação pode estar na
intencionalidade de um poema que se escreve a si mesmo através dos gestos
metafóricos da minha mão. E depois, poderei fechar os olhos e descansar antes
do abismo.
Adília César,
in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__282
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