sábado, 6 de março de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [11] por Adília César

 (...) Você, bem sei, acha isso risível. Mas que diabo! Você é um poeta, um orador, um lutador  e eu sou apenas um pobre homem (...).

                       

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"Diário de Descobertas" - O surrealismo romântico de Vladimir Kush

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DIZER “PALAVRA”

é quase o mesmo que dizer “realidade”. A palavra é, está, constrói, destrói, vive e morre nas coisas deste mundo que nos parece tão real e de outros que imaginamos. A palavra dita, escrita, lida, imaginada. Se as coisas não tiverem um nome, temos mesmo a certeza que elas existem?

 

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DIZER “PALAVRA”

é quase o mesmo que dizer “humanidade”. A palavra é, está, constrói, destrói, vive e morre em cada homem e cada mulher. Se as ideias humanas não puderem ser evidenciadas pela linguagem (falada, escrita, lida e imaginada), temos mesmo a certeza que elas existem? E o ser humano, enquanto personificação de algo mais que a mera sobrevivência da espécie, existe sem as palavras? O que teria levado o grande Jean-Paul Sartre a deixar para as gerações futuras uma obra autobiográfica intitulada precisamente “As Palavras”? Disse ele: «continuo a escrever. Que outra coisa posso fazer? Nulla dies sine linea. É o meu hábito e é, também, o meu ofício. Durante muito tempo tomei a pena por uma espada; agora, conheço a nossa impotência. Não importa: faço e farei livros; são necessários; sempre servem, apesar de tudo. A cultura não salva nada nem ninguém, não justifica. Mas é um produto do homem: o homem projecta-se nela, reconhece-se nela; só esse espelho crítico lhe devolve a própria imagem.» Sim, o que nos resta?

 

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GOSTO DE PENSAR

que somos tantas palavras e também tantas linguagens, não esquecendo que a expressão e a comunicação são facilitadas através de diferentes códigos. Mas voltemos às palavras. Todas as palavras são importantes, as utilitárias e as estéticas, desde o som nítido das sílabas até ao seu eco. Por exemplo, é inverno e o dia apresenta-se muito nublado, com temperaturas inferiores a 5 graus; saio para a rua sem casaco, sinto o frio no corpo e arrepio-me; a sensação é desagradável. A percepção física do clima conduziu-me a um discurso meteorológico e utilitário. Mas a palavra pode ser mais do que isso, através da comunicação estética de uma intenção poética e assim, escrevo um poema:

“Contemplar as ideias como quem olha botões de rosa no tecto do jardim. Num lugar médio alguns espinhos predestinam-te aos acontecimentos e ocultam-se num plano profundo as raízes da linguagem. Ah, esplendor de sabedoria. Mas é o idioma da fome, algoz de todas as dúvidas, que te fustiga. Enrolas-te nesse destino cruel para a pele sentir o frio desde o primeiro inverno. É urgente sentir alguma coisa. Secam as pétalas das flores e há uma ideia de inverno que perdura, não se sabe se por um instante ou por toda a eternidade. Não se sabe ainda nada sobre esse imenso frio da ignorância.”

O que disse eu neste fragmento de linguagem que pretendia atingir a significação estética? E qual poderá ser a utilidade deste poema?

 

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PODEREI ESCREVER

o mundo todo como se fosse um imenso oceano. Gotas de água, gotas de significados. Uma gota de água, onde se condensam mil sentidos. Mas de que serve inventariar o possível da linguagem poética, se a ela não estiver subjacente a experiência emocional sobre a qual pretendo poetizar? Quero escrever sobre os pássaros, mas nunca vi a plenitude do voo da águia. Quero escrever sobre as flores, mas nunca cheirei o perfume de um jasmim a desabrochar. Quero escrever sobre o amor, mas nunca toquei o rosto do meu filho por nascer. E ainda que me disponha a sentir o que é apenas um desejo de sentir, devo ultrapassar a obviedade do discurso: este é o apelo do meu caráter intrinsecamente humano. Não há poesia sem dúvidas, sem questionamento e sem as divergentes linhas de resposta, mas alguém há-de sobreviver no profundamente humano e espiritual, entre abismos, quedas e cadeirões de veludo. A salvação pode estar na intencionalidade de um poema que se escreve a si mesmo através dos gestos metafóricos da minha mão. E depois, poderei fechar os olhos e descansar antes do abismo.

Adília César, 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__282

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