Bem sei, meu Deus, que nem todas as crianças podem nascer sobre as palhas de um curral, entre a vaquinha e o burrinho, com uma grande estrela espreitando, deslumbrada, através das vigas rotas do telhado! Muitas crianças têm necessariamente de nascer num quarto aconchegado, bem tapetado, onde as fraldinhas finas aquecem diante de um lume alegre, e a gorda ama espera, risonhamente desabotoada, sustentando o peito enorme, túmida promessa de todas abundâncias. Outras mesmo, e numerosas, são forçadas a encetar a vida com tradicional sumptuosidade, logo lavadas em velhas e pesadas bacias de prata, deitadinhas logo, sob preciosas rendas, em berços do mais rico lavor que uma alfaia de altar… Assim o determina a lei imutável e rígida das desigualdades humanas.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
"Criança geopolítica assistindo ao nascimento de um novo homem": Salvador Dali, 1943 |
*
NOVO
ano, nova vida. Ou então, não. É o primeiro dia do
ano, mas afinal já é tarde. Exaustas as nuvens, as fontes, as pessoas
importantes coroadas de angústia. E depois os outros, os anónimos. O corpo é,
porventura, corruptível. Transporta em si mesmo, sem orgulho, as facas, as
balas, os venenos. E a cura?
*
A
NOITE
acordou
e não sabia onde estava. Talvez depois de ontem e antes de amanhã. Ela diz. Não sei onde estou. Ela pensa. Este silêncio eterno. A noite acordou-me
e eu não sabia onde estava. Acordo exactamente agora e abro os olhos ao tempo. Paraondefoiotempo? O que é a eternidade?
Não sei o nome destes olhos abertos. Os meus olhos abertos, os olhos de Deus. O
nome do tempo que é um instante supremo de luz. O nome da luz da utopia que
embala o instante puro.
*
O
INSTANTE
que
cai entre ontem e amanhã não faz parte do idioma que sei falar. É uma outra
palavra que significa berço, cofre, ninho,
purificação. Mas não tenho mãos para o agarrar. Guardo para sempre esse
instante supremo de luz que ilumina eternamente o primeiro Menino e a sua Mãe. Virgem
é a Luz, o Instante, a Pureza, a Mãe, o Menino. O Menino está nu, vestido de
luz. Eu sou outra vez virgem e estou com Ele. E nasce um tempo sempre novo
enquanto os meus olhos nunca se fecharem. Repito o mantra continuamente: e
nasce um tempo sempre novo enquanto os meus olhos nunca se fecharem.
*
NUNCA,
é
depois de ontem e antes de amanhã. Nunca, é para sempre. Um lugar velho para um
tempo novo. E porque o Menino se fez Homem, morreu muitas vezes até à
eternidade, até não haver mais instantes supremos de luz. Uma coisa que faz
apenas algum barulho e depois desaparece, como uma mediação estética num filme
que ninguém quer ver. Há muitas coisas no mundo que estão no lugar errado e eu
não sei como tirá-las de lá. Ninguém as quer ver.
*
NÃO
consigo
sair desta compreensão e encosto a minha cabeça alienada ao colo da Mãe. O
espanto da morte revisita este quadro na Catedral do Tempo. O Menino nasce e o
Homem morre, nunca se esbatendo a atracção e a intocabilidade na narrativa do
milagre. Dorme meu Menino, que a noite não se vai embora. Já não importa
o que aconteceu às pessoas adoradoras, mas sim o vazio das suas vidas, os
constantes estados de pânico por não conseguirem sair dos seus infernos.
*
O
CÉU,
parecendo, não é sempre o mesmo céu. Tudo muda, tudo muda. Ergue-se corajoso de encontro à sombra das noites porque sabe que é o céu onde todos os anos de todos os séculos o Menino nasce e dorme ao colo de sua Mãe. Aquele menino, o primeiro, guardado na casa de vidro do jardim, outra vez intocável, mas admirado por todos. Silent Night. O céu silencioso dos nossos infernos. As hipóteses utópicas da existência não visam a mudança, mas a redenção. O que esperar de um céu que já não brilha no escuro?
Perdoa-me, porque eu não sei o que digo.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__278
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