sábado, 12 de dezembro de 2020

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [7] por Adília César

Assim a ciência vai usurpando as mais preciosas funções da poesia. São agora os astrónomos, e não os poetas, que penduram sonhos na Lua e nos raios das estrelas. E é um velho filósofo que se torna bucólico e que celebra as glórias da rosa.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Foto de William Wild

*

PARECIA

um sonho. A cidade, um lugar onde eu já estive. A montra suja está decorada com sapatos fora de moda e alguns almanaques Borda D’Água amarelados. A humidade ondulou as páginas do tempo, arruinou os caminhos. Sei que já estive naquele lugar, é tão nítida a percepção de estar dentro de um filme exibido na tela do mundo. Contudo, nada será como dantes. Agora é um sonho de gente encapuçada e ninguém recorda com a veemência necessária, porque ainda está ali. Acordo. Continuo por dentro do sonho e volto a adormecer. Os meus sapatos velhos ficam presos na lama e eu descalço-os, abandono tudo e imagino que há uma porta que se abre para um mundo morno. Sei que esse mundo existe porque conheço pessoas reais – a mãe, o irmão, as filhas, os netos, o companheiro – a quem ofereço tanto amor sem qualquer máscara. Olho-os nos olhos, sem filtros. Na rua, as máscaras negras escondem as más caras que compõem o teatro do quotidiano.

 

*

SOMOS TODOS

estrelas, rosas e outros rescaldos presos numa rede tecida pela vaidade ou a discrição de cada um. Parece não haver meio termo, parece não haver bom senso, parece não haver comunicação. Na verdade, os avatares não se entendem entre si: o que uns emitem não é entendível pelos outros que recepcionam. Partilhar, gostar, comentar… e o que resta, na maior parte das vezes, é um pigarro desagradável na garganta com sabor a morte. A morte noticiada e partilhada. Constato que a morte está na moda, tendo sido iniciada uma muito consistente e elaborada necrologia facebookiana, que atravessa vários níveis de dificuldade e requinte nos inúmeros obituários à disposição do freguês: a notícia mais ou menos assolapada da morte de um familiar, bem como a memória recorrente do seu desaparecimento, ano após ano; a desconstrução exaustiva da morte trágica de uma figura pública, bem como as tentativas patéticas de fazer humor com a dor alheia. Se o primeiro nível de actividade necrológica não me choca e até colaboro no processo enviando sentidas condolências, já o segundo nível deste jogo perigoso deixa-me em estado de náusea emocional: explora-se a morte de uma figura pública até à exaustão, até ao ridículo, até à indecência de não se respeitar a dor de uma família quando morre um filho. Mas afinal, qual sofre mais, a família mediática ou a família incógnita? Isto é uma não-questão (que desconforto)! Vejo uma frágil humanidade nesta inclemência virtual e tento aprender qualquer coisa de útil para os poucos anos que ainda me restam. Não sendo possível renegar a rede (os processos virtuais para a comunicação atingiram-nos como um meteorito disfarçado de cometa, mas fazem parte da vida contemporânea e terão alguns benefícios) parece-me que um perigo maior reside, precisamente, na adoração pagã das múltiplas janelinhas virtuais do nosso dia-a-dia.

 

*

POR MUITO

que me custe, antes de partilhar algo de que me arrependa mais tarde, penso primeiro, para avaliar o meu impulso. Uso os meus filtros. Na rede social onde os "amigos" são, quase todos, desconhecidos entre si, o que significa essa "amizade" para cada um de nós? A rede pode ser muita coisa, mas não é a cura para as nossas pequenas-grandes tragédias interiores. E o ruído virtual é tão incomodativo como uma sirene de ambulância que nos sobressalta de madrugada. Continuo a usar os meus filtros e vou desistindo de criaturas que gritam, esperneiam, agridem, desabafam imundices, lugares comuns e auto-retratos flagelados pela realidade.

Abandono-as porque ignorá-las não é suficiente.

Fazer de conta que não vejo não é suficiente.

Tentar ser tolerante com a oferenda inquinada não é suficiente.

Ou então são elas que me abandonam.


*

E

calo-me. Ainda estou ali, presa na teia, mas a serenidade que ofereço a mim mesma é real e quase libertadora, sem chicotes de demagogia. O silêncio é o meu botão de pânico. Porque sei que não falar não é o mesmo que estar calada. O silêncio assumido é uma apoteose do pensamento, é a minha rosa sem espinhos. E leio poesia filosófica. A poesia é o meu botão de vida.


Adília César,

https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__275

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