sábado, 28 de novembro de 2020

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [6] por Adília César

A galope, a galope, ó Fantasia,

Plantemos uma tenda em cada estrela!

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Pintura surrealista de Remedios Varo (1908-1963)


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ESTOU AQUI

em frente ao espelho a olhar para dentro há algum tempo. Não vejo a nitidez do que estou a pensar. A máscara é a minha cara, agora, durante o tempo todo. Não gosto. Hoje, logo de manhã, deixei cair a máscara ao chão quando tentava colocá-la. Olhei-a demoradamente e em vez de a apanhar para a deitar no lixo, pisei-a como se fosse um escorpião venenoso. Não é. A máscara é o meu rosto de todos os dias, o rosto oculto, a espessura protectora face ao agente infeccioso. Onde havemos de deitar a inquietação, se a visão periférica da patologia atordoa os nossos sentidos? Resta-nos olhar em frente, mas sem a distracção dos espelhos.

 

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ESTOU AQUI

perante a percepção de um número infindável de corpos reais, irreais e a-reais que possuo. Alguns servem-me na perfeição como uma segunda pele e outros não cabem nesta forma disforme que se transformou em salina. Os corpos não estão todos vivos. Caminho por entre os mortos com o meu corpo imaginário, despido de nobreza e de afectos permitidos. Apenas uma enorme compaixão anónima e universal por aquilo que consigo ser, a personificação da tragédia, quando as palavras arrefecem abruptamente e congelam naqueles gritos silábicos, fonemas condensados em alturas tonais fortificadas nos medos: uma sinfonia harmónica do terror da morte afogada no sofrimento. Caminhamos agora todos juntos outra vez e o que não vemos é o que sabemos não nos pertencer, a fisicalidade perene dos corpos vivos. Talvez os deuses nos esperem. Talvez os demónios sombrios sejam cegos na sua fome de maldade e não reconheçam os sinais de quem aceitou a fatalidade enquanto passeia serenamente sobre as águas. Talvez a vida seja isto. Um oceano infinito de paz, ao alcance do nosso corpo imaginário, sem nome, longe dos trópicos do medo.

 

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ESTOU AQUI

numa fuga à percepção viva do que julgo ser a minha realidade, através de um imaginário emocional de nevoeiro melancólico. A vida, antes fantasiada - a fuga à realidade impõe-se através da fantasia - torna-se agora estéril e imutável, pela impossibilidade de existência no meu mundo que penso ser real, através dos arrepios de frio. A essência do que sinto não existe, apenas insiste num gesto de telepatia espiritual – a realidade inatingível do universo dos outros, antes irreal e idealista, torna-se agora "a-real". No entanto, desenvolver conceitos abstractos é agora uma tarefa árdua e irrelevante: há dias que são apenas dias parecidos com os anteriores; há um frio que é apenas o frio que me obriga a vestir um casaco; há um tempo de confinamento forçado que me leva a escrever um longo conto sobre, precisamente, o tempo de confinamento. Decerto, um tema pouco original. Esta vontade abrupta de dizer qualquer coisa, levada ao seu expoente máximo, como um galope da fantasia que quer entender a realidade. Então, um dia, as palavras escreveram-se sozinhas:

- Lá fora, os outros.

E eu, cá dentro, a viver uma não-vida, pensando, lendo, escrevendo. Lá fora, os outros, alguns atentos e tantos distraídos. O acto público de exposição do pensamento criativo está cravejado de estrelas cintilantes que os outros adoram ou ignoram. Eu escrevo, tu escreves, ele escreve, nós escrevemos, vós escreveis, eles não lêem. Ponto final.

 

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FICO POR AQUI

porque hoje não consigo ir mais longe. Os dias são, na verdade, provisórios e possuem uma fronteira demagógica em relação ao corpo das notícias elevado até ao expoente do absurdo: números, estatísticas, orientações, restrições, contradições. E depois ainda mais números, mais estatísticas, mais orientações, mais restrições, mais contradições. E depois… O melhor é não pensar mais nisto em que estou a pensar. Partir o espelho, quebrar a muralha da inquietação.


Adília César

https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__273

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