sábado, 28 de novembro de 2020

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [3] por Adília César

A rotina, numa das suas formas mais estúpidas,

é a persistência caturra numa primeira impressão.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"Atelier do Pintor" de Gustave Coubert

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A CEGUEIRA

é uma forma de desver. Olhamos e somos olhados nas colecções privadas da existência. Porque é do foro essencialmente humano que se trata, a matéria emocional assume-se como sendo da maior importância. Mas os estímulos visuais cansam-nos. Quantas vezes desviamos o olhar desse instante fugidio de miséria nos outros? Vemos a pedra, a árvore, o pássaro, a nuvem. Perdemo-nos num céu tão engrandecido pelo nosso sonho que se torna impossível organizar a nitidez das estrelas que o compõem. E de repente, eis uma pequena luz que se amplia e nos ilumina: é o desconhecido à nossa frente, na rua, no noticiário, no filme, no livro, no pensamento, no espelho. É aquele desvisto vezes sem conta, dia após dia na vida sobrevivida a tanto custo: é o meu vizinho, é o meu irmão, sou eu.

 

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O ENSIMESMAMENTO

das impressões causadas pelo quotidiano esmeram-se na possibilidade infinita de pormenores. Queremos ser o outro: aquele que é mais magro, mais rico, mais belo, mais talentoso do que nós. Tornamo-nos açambarcadores de ambição. O espelho volta sempre em cada dia que, logicamente, pode ser o último, mostrando a rotina do nosso rosto que parece nunca mudar na sequência breve do tempo. Demoro-me na visão desta longa caminhada, mas volto sempre a mim mesma. Retiro a poeira dos olhos e esqueço o sol e a lua. Componho o cenário antes da desilusão.

 

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DE VEZ EM QUANDO

a vertigem assoma-se no preâmbulo da tragédia sempre anunciada. É um cenário disponível para todos os seres vivos, inertes, colocados em frente ao écran. Tombam as pálpebras sobre a indisposição passageira, mas rapidamente se abrem perante o anúncio publicitário e manipulador. O que resta? A rotina da infelicidade dos outros ou o vislumbre nítido da nossa própria bondade? Ah, se as duas coisas fossem uma só, jamais adiada para o dia seguinte… Quantos de nós seriam capazes de tal proeza?...

 

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UM LUGAR

de surpresas. Imagino o mapa que me atravessa de lés a lés. Ele percorre as minhas estradas sem pressa, os faróis acesos para aceitar o desconhecido, mas ainda assim, perde-se para me encontrar. O caminho percorrido é, em cada noite, o caminho já percorrido numa outra noite. A isto chamo de amor, verdade, inocência.

 

*

 

NO OUTRO LADO

do mundo, um homem escuta a sua música favorita num gira-discos tão velho como ele. Este tem sido o seu despertar rotineiro desde há muito tempo. Porque haveria hoje de ser diferente? Porque a explosão bélica se aquietou, por fim, no quarto destruído onde um velho liquefeito na cama não chegou a acordar e vai dormir eternamente naquela posição impossível? Não se vê o seu sangue na imagem a preto a preto, mas sei que o vermelho existe. Invento outras posições mais humanas para devolver dignidade àquele corpo, mais próximas do rigor necessário à redenção, mas não há dignidade na morte arrancada a ferros. O velho homem não entende o meu esforço e insiste em desfazer-se, confundindo-se com as ruínas da melodia. E eu, tão inútil na minha pretensão, adormeço exactamente à mesma hora em que todo o mundo acorda. O passado, esse espaço-tempo de incompreensão, rodeia-me através de um círculo sonoro de onde não pretendo sair. No sonho, sei que não pertenço a este monstro que agora acordou. No meu sonho, sei que sou a loba destemida que rompe os limites do impossível.


Adília César

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__267

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