A rotina, numa das suas formas mais estúpidas,
é a persistência caturra numa primeira impressão.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
"Atelier do Pintor" de Gustave Coubert
*
A
CEGUEIRA
é
uma forma de desver. Olhamos e somos olhados nas colecções privadas da
existência. Porque é do foro essencialmente humano que se trata, a matéria
emocional assume-se como sendo da maior importância. Mas os estímulos visuais
cansam-nos. Quantas vezes desviamos o olhar desse instante fugidio de miséria nos
outros? Vemos a pedra, a árvore, o pássaro, a nuvem. Perdemo-nos num céu tão
engrandecido pelo nosso sonho que se torna impossível organizar a nitidez das
estrelas que o compõem. E de repente, eis uma pequena luz que se amplia e nos
ilumina: é o desconhecido à nossa frente, na rua, no noticiário, no filme, no
livro, no pensamento, no espelho. É aquele desvisto vezes sem conta, dia
após dia na vida sobrevivida a tanto custo: é o meu vizinho, é o meu irmão, sou
eu.
*
O
ENSIMESMAMENTO
das
impressões causadas pelo quotidiano esmeram-se na possibilidade infinita de
pormenores. Queremos ser o outro: aquele que é mais magro, mais rico,
mais belo, mais talentoso do que nós. Tornamo-nos açambarcadores de ambição. O
espelho volta sempre em cada dia que, logicamente, pode ser o último, mostrando
a rotina do nosso rosto que parece nunca mudar na sequência breve do tempo.
Demoro-me na visão desta longa caminhada, mas volto sempre a mim mesma. Retiro
a poeira dos olhos e esqueço o sol e a lua. Componho o cenário antes da
desilusão.
*
DE
VEZ EM QUANDO
a
vertigem assoma-se no preâmbulo da tragédia sempre anunciada. É um cenário
disponível para todos os seres vivos, inertes, colocados em frente ao écran.
Tombam as pálpebras sobre a indisposição passageira, mas rapidamente se abrem
perante o anúncio publicitário e manipulador. O que resta? A rotina da
infelicidade dos outros ou o vislumbre nítido da nossa própria bondade? Ah, se
as duas coisas fossem uma só, jamais adiada para o dia seguinte… Quantos de nós
seriam capazes de tal proeza?...
*
UM
LUGAR
de
surpresas. Imagino o mapa que me atravessa de lés a lés. Ele percorre as minhas
estradas sem pressa, os faróis acesos para aceitar o desconhecido, mas ainda
assim, perde-se para me encontrar. O caminho percorrido é, em cada noite, o
caminho já percorrido numa outra noite. A isto chamo de amor, verdade,
inocência.
*
NO
OUTRO LADO
do
mundo, um homem escuta a sua música favorita num gira-discos tão velho como
ele. Este tem sido o seu despertar rotineiro desde há muito tempo. Porque
haveria hoje de ser diferente? Porque a explosão bélica se aquietou, por fim,
no quarto destruído onde um velho liquefeito na cama não chegou a acordar e vai
dormir eternamente naquela posição impossível? Não se vê o seu sangue na imagem
a preto a preto, mas sei que o vermelho existe. Invento outras posições mais
humanas para devolver dignidade àquele corpo, mais próximas do rigor necessário
à redenção, mas não há dignidade na morte arrancada a ferros. O velho homem não
entende o meu esforço e insiste em desfazer-se, confundindo-se com as ruínas da
melodia. E eu, tão inútil na minha pretensão, adormeço exactamente à mesma hora
em que todo o mundo acorda. O passado, esse espaço-tempo de incompreensão,
rodeia-me através de um círculo sonoro de onde não pretendo sair. No sonho, sei
que não pertenço a este monstro que agora acordou. No meu sonho, sei que sou a
loba destemida que rompe os limites do impossível.
Adília César
in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__267
Sem comentários:
Enviar um comentário