sábado, 10 de outubro de 2020

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [2] por Adília César

 

A ciência realmente só tem alcançado tornar mais intensa e forte uma certeza:

 - a velha certeza socrática da nossa irreparável ignorância.

De cada vez sabemos mais - que não sabemos nada.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 


Niymas Najafov, "A Conversação", 2013


*

 

A DEMAGOGIA

é uma doença assintomática e conduz o ser humano a um estado letal de ignorância e até de indiferença perante o mundo. Estamos todos doentes, mas ninguém o admite. Uma quantidade enorme de informação rodeia-nos por todos os lados, é como um oceano de plástico. Está ali por via da nossa própria insensatez, mas parece não nos dizer respeito. Compadecemo-nos dos pobres animais marinhos presos no lixo que lançamos às águas, vistos com os nossos olhos lacrimosos no documentário televisivo, e depois comemos uma bela sandes muito bem embrulhada em papel de alumínio e acondicionada dentro de um saco de plástico, enquanto molhamos os pés na babuja da praia mais próxima, para onde nos deslocámos no nosso BMW a gasóleo e gastamos meia hora, às voltas, à procura de um sítio para estacionar. É só esta vez, pensamos. E o mar, tão puro na relação que estabelece com todas as criaturas que serpenteiam por entre as algas, ainda cumpre a sua intenção de vida: o vai e vem das marés é isso mesmo, a oscilação da sua luta inglória nas correntes de vida, de morte e de demagogia. Quais serão as correntes mais fortes? Siza Vieira disse que “nenhuma árvore ou pedra arrancada à natureza nos é restituída”. Eu diria que o planeta é um parceiro de peso neste desumano jogo de xadrez: a causa e o seu efeito, tão conhecidos e ao mesmo tempo tão ignorados em cada jogada.

 

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A VIDA

tem os seus próprios direitos, mas nem sempre deles goza. Cometem-se crimes, mas o que mais impera são as absolvições. Tudo é perdoado, tudo é passível de um qualquer esquema de subterfúgios lamechas. É só esta vez, pensou ela quando ele lhe deu a primeira bofetada. Mas ele gostou da sensação que o ciclo de violência lhe soprou ao ouvido: a mão que bate é a mão que acaricia e limpa as lágrimas. É a mesma mão feita de osso, sangue, força bruta e adrenalina. Ela também gostou desta espécie de desamor, porque a face é feita de medo e o medo alimenta-se do ensimesmamento da rotina diária do crime e da sua inevitável absolvição. Ela acredita no seu precioso pensamento de luxo e adorna o seu pescoço, a sua garganta, a sua voz com um colar de pérolas feito de ideias nocivas: é melhor ter uma desilusão do que não ter coisa nenhuma.

 

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O SER HUMANO

está a transformar-se no seu maior inimigo. Somos indivíduos predadores em relação a todas as outras criaturas vivas, o que quer dizer que também somos auto-destrutivos. Lutamos pela terra, pela água, pela comida, pelos valores em que acreditamos. A cidadania tem muitos apelidos: somos feitos de sonhos, queremos ir mais rápido e mais longe, possuir mais coisas: equipamentos mais eficientes e gagdets com mais funcionalidades, comida rápida, medicamentos para curar todas as doenças, objectos essencialmente inúteis para usar e deitar fora. Não olhamos a meios para atingirmos os fins – corrupção política, destruição planetária e desigualdade social em larga escala. Mais, mais, mais. E se o futuro for mais do mesmo, não haverá um ponto sem retorno em que a única velocidade seja, inevitavelmente, a da câmara lenta? Menos, menos, menos, por favor. Nós, os humanos e a nossa irreparável ignorância num mar de destruição.

 

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 A FUTUROLOGIA

define cenários possíveis, prováveis, desejáveis. Hoje em dia somos todos peritos. Cada um invoca o seu oráculo: uns, consultam a sua divindade favorita e outros, lêem a legenda curta que aparece a correr na parte inferior ou superior do ecrã da televisão durante a emissão do telejornal. Qual será a informação mais fiável? Só o futuro o dirá.

Vamos ficar todos bem?

Isto vai piorar e muito?

Vem depressa, espírito (o futuro não tem corpo), ajuda-me a contar essa história.

A invocação do real é erro, pavor. E mortalidade suspensa sobre as nossas cabeças. A ciência como cura para todos os males, enfiada na nossa carne através do buraco feito por uma agulha.

É mesmo isso que querem? Um deplorável mundo novo?

Na verdade, faltam poucos meses para acontecer a melhor coisa deste ano: o fim dele. E depois, na medida do possível, tudo irá recomeçar num novo ciclo temporal mergulhado no mesmo molho agridoce. Mais do mesmo. E ainda assim, não escaparemos ilesos.

Adília César, in https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__265

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