sábado, 28 de novembro de 2020

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [4] por Adília César

Ora, fazer rapidamente, e cada semana, esta simplificação concentrada da história, como o Tempo detidamente a faz através dos séculos vagarosos, é tarefa mais arquejante do que fabricar uma nobre teoria social ou desenrolar uma nova fórmula de arte.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)



Arte de Michal Klimezack-SHUME
 

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A HISTÓRIA

da humanidade está cheia de pontos de exclamação. O Bem e o Mal, Deus e o Diabo, Eu e Tu. O que parece ser nome de oposição é, afinal, complementar, deliberativo; tantas margens para a mesma ponte que tentamos atravessar durante as nossas vidas coexistentes: nós e os outros. Como reconheceríamos uma boa nova, se a malignidade não existisse na comparação das respectivas consequências das nossas acções? Como invocaríamos um qualquer deus, se queremos fugir dos diabos a todo o custo? E por fim, mas talvez o mais importante, quem sou eu sem ti, nesta trama social onde construímos lugares mentais em constante movimento, nem sempre devidamente registadas nos arquivos do tempo?

 

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A ARTE

é uma tautologia. A arte existe na arte, é arte enquanto processo e produto (criativos), está omnipresente no ser humano, perpetua-se a si mesma numa projecção eterna. A arte, nas suas diferentes manifestações, é tudo aquilo a que chamamos arte. Insisto na arte da mesma maneira que pareço ansiar por uma doença, um eczema incomodativo: sinto um ímpeto e escrevo compulsivamente, mas não quero apesar de querer. A experiência estética vai muito além do mero entretenimento, da compreensão natural de um fenómeno artístico, causando-me, por vezes, uma espécie de náusea emocional. A obsessão pela escrita perdura para lá de um frágil equilíbrio, atravessa uma fronteira que eu nem sabia que existia. Escrever porquê? Só tenho uma "não-resposta": escrevo porque tenho que escrever, escrevo porque sim. Escrevo a minha escrita e chamo-lhe arte. Porque sim.

 

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A IGNORÂNCIA

sabe que tem um destino oculto. O dorso macio e morno, os olhos pestanejantes e assombrosos, o discurso fácil e comovente. De vez em quando volta-se do avesso: crescem-lhe cornos na cabeça, saem-lhe espinhos das mãos, torna-se cega e muda. E fica muito quieta, à espera dos incautos que caem na sua armadilha. A ignorância pode surgir na forma de uma ideologia política, uma religião, um provérbio popular, mas nunca é uma distracção ou um acidente de percurso. Pelo contrário, é uma tenacidade voluntária fundamentada na incompetência colectiva e no medo face ao poder – formal ou informal – instituído. Aceitar a ignorância, sem esforço de contestação, é uma espécie de morte. É um crime.

 

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O QUOTIDIANO

é superlativo. Noticiários infindáveis, decalcados uns nos outros, fazem a história da actualidade pandémica. As imagens e os sons passam a galope, parecem dirigir-se a mim, mas passam mesmo ao lado, sem deixar rasto. Por vezes, ocorre-me a infeliz ideia de que essas notícias não conseguem comunicar comigo porque eu não sou deste mundo. Não sou daqui, ocupo este lugar por mero engano cósmico. Não, eu não posso ser daqui quando não posso ausentar-me para parte incerta, longe dos velhos que morrem entubados, sozinhos; longe das barrigas inchadas por hérnias que parecem querer explodir sem que o SNS intervenha; longe das mãos estendidas; longe das obrigações impostas. A máscara não cobre apenas a boca e o nariz: é uma outra face total deste abominável mundo novo que nos caiu em cima da cabeça. A máscara serve para ocultar a tristeza. Eu agora uso máscara e assumo esta crua consciência de que sou de um país que ainda não existe.

Adília César

https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__269

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