sábado, 5 de setembro de 2020

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [1] por Adília César


Nada facilita mais uma civilização que um bom clima.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma) 

  

Pintura de William Blake

 

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O SOM

predestina-se ao desprezo. Não ao ruído de fundo, sim à escuta. Estas teias de pequenos massacres diários cansam-me. E de repente, na cidade saturada de sons, há qualquer coisa que se sobrepõe ao resto: é a mansidão do bando de pardais que se recolhe na folhagem fresca. Agora mesmo: olho, mas nada vejo, apenas sinto o essencial. O coração é o ouvido absoluto da existência.

 

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A MÚSICA CLÁSSICA

tem uma relação imediata com a saudade que sinto pelo meu pai, essa linha efémera de água a brilhar ao sol, ao alcance da melodia da vida. E depois outras gotas vão passando pelo mesmo lugar, dando de beber à sede das memórias da infância. Não é uma tristeza verdadeira, nem sequer um desalento perante a respiração da ausência. A morte do meu pai aconteceu há muito tempo. Hoje, ele é este leve peso interior, como se fosse um acorde perfeito que se ouve com o coração. O andamento lento da vida perante a inevitabilidade da morte. Há vida para além de tudo o que nos atormenta.

 

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O RITMO

incentiva a velocidade até ao infinito. Um calendário não mede apenas a passagem do tempo. Afinal, os dias são provisórios, efémeros, tornam-se passado, mas também são o futuro comprometido com a tragédia humana. Que fazer com os dias? Têm assim tanta importância? Sim, os dias são meus, guardo-os amorosamente na carta sem princípio nem fim que escrevo aos meus herdeiros. Quero difundir a ideia banal, mas tão verdadeira, sobre a urgência de ter opinião formada sobre as vicissitudes que transformaram o tecido social, no sentido de cada um optar por uma atitude cívica perante si e perante os outros. Hoje, mais do que nunca, não há "bolhas" individuais: o colectivo impera nestes dias tão definitivos.

 

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O TEMPO

passa por nós ou nós levamos o tempo connosco: há duas velocidades (podendo ser um processo rápido ou lento), mas não há duas medidas: é preciso decidir, logo desde o início, que tipo de vida queremos viver. A obrigação de ter um espírito positivo, a toda a hora, é tão entediante como um ramo de flores de plástico na montra de um talho. Num mundo onde nos atiram com uma enjoativa diversidade de mensagens positivas, sublimares e explícitas, pensar sobre a depressão é ainda um preconceito; e admiti-la parece constituir uma fraqueza do próprio espírito.

 

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O CLIMA

predispõe-se a amuos e incongruências. As estações do ano exibem visíveis devaneios, bem diferentes de outros tempos. Este fenómeno climatérico influencia, em larga escala, as mentes caprichosas dos criadores de canções populares. Até a fadista Mariza canta Quem me dera/ abraçar-te no outono, verão e primavera/ quiçá viver além uma quimera/ herdar a sorte e ganhar teu coração. O inverno desapareceu da equação amorosa, vá-se lá saber porquê. Matias Damásio, o autor da canção, provavelmente não gosta do inverno, estando em perfeita sintonia com Eça de Queirós, quanto este afirma: Nada facilita mais uma civilização que um bom clima.


Adília César 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__263

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