sábado, 2 de maio de 2020

LAOS DEO


O estado em que vivemos, é o verdadeiro apocalipse: o apocalipse estável.
 Karl Krauss, Janeiro de 1917



A imprensa e o Estado de Emergência decretado pelo governo conseguiram fechar-me em casa, e actualmente a única filosofia de vida que professo é a do confinamento. Pensando convictamente que estaria a proceder da melhor maneira, dei por mim a ressentir-me de uma outra espécie de maleita: a da obediência ao jugo do poder do Estado e da imprensa.

A imprensa tem exercitado a sua função informativa, formativa e deformativa de modo controlador, coercivo e intimidante, plagiando a interioridade emocional dos Cidadãos – os indivíduos portadores da doença do Medo – e influenciando estados do espírito colectivo: amedrontar e comover, para controlar e fazer obedecer.  O poder central e o poder regional andam de mãos dadas: na minha rua, diariamente, uma viatura do município dissemina no autofalante a seguinte mensagem aos seus munícipes:

- Mantenha a distância de segurança. Proteja-se a si e aos seus, fique em casa. Aguarde com a distância de segurança pela sua vez no atendimento. Seja responsável. Juntos, vamos parar o Coronavírus. Mensagem do Município de Faro.

A epidemia causada pelo coronavírus chegou e veio para ficar nos “últimos dias da humanidade” (ainda Karl Krauss), tendo em conta que vivemos uma nova pandemia, a tal “catástrofe permanente” evidenciada por Walter Benjamin – pois não são todos os dias os últimos dias da humanidade? Na nossa tragédia, tal como na de Krauss em “Os Últimos Dias da Humanidade”, quase não existe desenvolvimento dramático. Nas notícias incessantemente difundidas, ou melhor dizendo, na única notícia difundida – a pandemia Covid 19 – assiste-se a uma vaga progressão dos acontecimentos a ela relativos, mas na verdade somos apenas coagidos a obedecer aos aspectos principais da “cura”: o distanciamento social que destrói o afecto humano, a avidez pelos números de infectados e de mortos que nos amedronta, a destruição do tecido empresarial que implica uma quase total dependência económica do Estado, a vigilância exacerbada das autoridades que impede a deslocação normal dos cidadãos, a não ser em caso de absoluta necessidade; e tudo isto imposto por decreto-lei. Como não obedecer, se o que está em causa é a saúde pública e qualquer desvio à norma é um elo acusatório e vergonhoso da conduta humana? Não há como negar que todo o acto humano pode implicar consequências desumanas e em épocas históricas de peste está sempre ligada a uma noção inequívoca de poluição moral, de sujidade e conspurcação da alma.

O poeta Rimbaud escreveu: «O ar e o mundo já são demandados. A vida.» Também o psicanalista Wilhelm Reich corroborou a ideia de ar humano contaminado: «Existe uma energia orgânica mortal. Ela está na atmosfera.» e se a tese proposta por Paulo Varela Gomes (1981) fizer todo o sentido em 2020 ou em qualquer época, como na Idade Média ou no Antigo Regime? Ele sugere que se ponha de parte a questão biológica da epidemia e da infecção, admitindo que são os organismos sociais humanos que a contraem e se contaminam. A epidemia seria um fenómeno ideológico e político e pertenceria ao Estado e aos seus Aparelhos. Nesta análise, o editor e psicanalista Vasco Santos sintetiza o fenómeno, em forma de alerta: «O que é dito é que a Peste, quer na Idade Média quer no Antigo Regime, foi uma doença das formas de dominação de classe, dos aparelhos de Estado e das ideologias. Tal como no passado, o coronavírus, um vírus afinal modesto e tímido, serve para impor a ordem, higienizar o corpo e a cidade e relativizar o contrato social. Ele permite controlar, vigiar e punir. O coronavírus intensifica a biopolítica e o niilismo, a máscara e a assepsia. Trata-se de um vírus, ou melhor, de uma estratégia higienista, antipsicanalítica pela acentuada diminuição da empatia, pela distância social legitimada e pela perda da poesia do real quotidiano. Esta política espectacular acentua a ideologia da saúde (por falência da ideia de salvação) e forclui a morte, esse tabu excelentíssimo de agora. Desinfectamos magicamente as mãos porque somos contra a morte.» Não está tudo dito, mas é um excelente ponto de partida para uma urgente reflexão nesta semana em que recordámos o 25 de abril e o 1º de maio como marcos de Liberdade na sociedade portuguesa; é também um momento bastante oportuno para reler a ficção “1984” de George Orwell, uma distopia muito bem conseguida sobre as tendências totalitárias das sociedades do século XXI.

Krauss é, decididamente, o “mestre da indignação”, conforme referiu Elias Canetti num ensaio que a ele dedicou. Indignemo-nos também, ainda que sem grandes dramas. Mas não nos fiquemos pela rama dos acontecimentos. As ciências médicas tiveram avanços tremendos no que diz respeito ao controlo de doenças e no aumento da esperança de vida das pessoas. Pensámos que a Demagogia – a Peste, a Praga, a Epidemia – tinha sido erradicada, mas aí a temos, de novo, avassaladora e destrutiva dos nossos princípios básicos, do nosso livre arbítrio. E volto a Krauss, nas palavras de Vasco Santos: «pois tudo o que não foi destruído pela peste, sê-lo-á pela imprensa.»

Ao toque de clarim do primeiro Estado de Emergência senti-me afundar num pântano, mas ao fim do terceiro consegui agarrar alguns ramos fortes do pensamento de diversas personalidades que aqui tentei sintetizar. E juro que não morrerei ainda hoje. Laos Deo.

Adília César

https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__246

1 comentário:

  1. palavras importantes para o nosso instável e precário equilíbrio. Obrigada, Adília

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