sábado, 16 de maio de 2020

A PRIMEIRA MANHÃ DO TEMPO


SÍFISO

Recomeça…
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…

Miguel Torga*, in Diário XIII, s/d




Pode a Poesia ser uma forma de ver o mundo?  De que mundo estamos a falar? “Há mais Mundos”, já o dizia José Régio no seu livro de contos; há muitos mundos – um por cada ser humano – que por sua vez se compartimentam noutros, de acordo com as percepções face ao real e ao imaginário. O meu lugar-mundo é permeável e sensível aos sonhos e às tragédias de todos os mundos – os meus e os dos outros. Sou a sonhadora racional que se quer conhecer através de todas as possibilidades até ao limite do impossível, questionando o seu contributo em relação ao próximo, inventando novas formas de intervenção através do poema. A Poesia dá a conhecer o mundo do poeta que escreve e se dá a ler, numa perspectiva de punição existencial na procura do seu lado mais negro. A punição, o castigo e o alívio andam de mãos dadas e recriam o mundo, acordando outros mundos em nós e mostrando que não estamos sós nos momentos difíceis. A Poesia é mais uma forma de questionamento que poderá resultar em epifania. E aí, sim, alcançamos algum conhecimento do mundo que nos rodeia e novas maneiras de intervir.

O mundo que nos rodeia é, na actualidade, um ambiente pandémico, escuro, confinado. Ou seja, voltado para dentro apesar da exacerbada utilização das redes e plataformas virtuais que vieram substituir as relações humanas presenciais. A peste amedronta e traumatiza, mas não paralisa. Hoje, tal como noutras épocas pandémicas, a humanidade sabe que os indivíduos são capazes de transformar a sociedade cultural, económica e ética, apesar de se focarem numa “celebração do presente”, como já o disse Bruna Vargas. Existe um apelo inequívoco à produção artística como uma tentativa de racionalizar o trauma perpetrado pela intensidade emocional deste momento trágico que agora vivemos. Em cada dia que acorda connosco, o mundo é pandémico e a arte também, enquanto expressão viva das vicissitudes. Em cada dia, a primeira manhã do tempo é a primeira manhã deste mundo novo, talvez admirável pela forma criativa como experimentamos novas formas de vida e novos modos de sobrevivência. Somos actores e espectadores numa peça de teatro sempre improvisada, com a coragem de actuar, em presença, até ao fim.

O poema Sífiso de Miguel Torga é um hino melancólico à vida, um apoio espiritual e estético nesta demanda diária e global pejada de inconstâncias. A vida enquanto nascimento, experiência e morte é uma condenação, uma aventura de constantes recomeços. Se o mundo é uma armadilha ampla que ameaça de modo tão concreto e doentio a nossa sobrevivência, como podemos encará-lo de frente? Tal como o rei Sífiso, carregando o rochedo até ao alto da colina, no Inferno, durante toda a eternidade, apesar do rochedo rolar encosta abaixo sempre que estivesse prestes a chegar ao cume? Ou como seres detentores do nosso destino, ainda que por vezes infernal, usufruindo das sucessivas oportunidades que a vida oferece, em busca de realização pessoal e solidária para com os que mais precisam?

A Arte e muito concretamente, a Poesia, enquanto expressão de liberdade criativa, podem trazer lucidez ao caos humano, à insanidade da besta. O poema não é uma simples imagem dos acontecimentos, mas também um mapa de prospecção da nossa própria humanidade. O poema apela à consciência e à moral, ao traço distintivo da nossa espécie: temos plena consciência da nossa loucura. E mesmo que nos sintamos infelizes, temos também a satisfação intrínseca de nos sabermos livres e saudavelmente loucos.

Adília César

*Miguel Torga [S. Martinho de Anta/Vila Real, 1907 - Coimbra, 1995]
Nome literário do médico Adolfo Rocha. Poeta, ensaísta, dramaturgo, romancista e contista. Cultivou a escrita autobiográfica num extenso "Diário" (escrito entre 1932 e 1994) e em "A Criação do Mundo". Além de poeta, é também conhecido pelos contos, muito estudados no ensino. Foi o primeiro autor lusófono a receber o Prémio Camões, em 1989.


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