«O trabalho de Gaëtan é realizado contra
qualquer ideia de tranquilidade, é feito Contra Mundum, não com
uma vontade de ruptura, mas com o irresistível arrepio de quem passa sobre um
gato, uma e outra vez, uma mão a contrapelo.»
João
Pinharanda
Gaëtan Lampo Martins de Oliveira (1944 - 2019) |
Ainda estou vivo. Vejo os meus inúmeros rostos, múltiplos da única pessoa que sou: Gaëtan.
O artista desenha representações do seu
rosto e exibe uma actividade criadora peculiar, há um ensimesmamento que
irradia continuamente de dentro para fora e de fora para dentro. O traço, os
traços tão leves de todos os seus rostos, o risco, os riscos tão rápidos e
violentos de todos os seus rostos. É uma obsessão descontinuada, uma procura da
sua interioridade através do apelo à transgressão; mas não necessariamente, uma
intenção de romper com o mundo que o rodeia. Antes, durante e depois da doença,
o ensaio e o aperfeiçoamento desta arte da fuga: Gaëtan insiste na
auto-representação do seu rosto e persiste sempre, numa espécie de encenação de
si próprio, na procura das diferenças entre imagens sucessivas e na
explicitação de matrizes literárias e cinematográficas, com vista à
interpelação do espectador, que vê as máscaras que Gaëtan coloca não sobre o
seu rosto mas em frente dele.
Procuro incessantemente as marcas do tempo
no meu rosto quando eu era outro “eu” em comparação com o “eu” que sou agora. O
meu gesto criador é o voo livre do pardal à solta, sem vontade de ir embora
perante a janela aberta.
Todos os seus desenhos são o reflexo de
uma observação demorada e detalhada, de uma interpretação da coisa vista – o
“eu” daquele momento preciso – e inscrevem-se numa teoria da representação
apropriada, totalmente isenta de quaisquer tiques de academismo ou vícios de um
talento inato. Por isso, esquece a sua dominante mão direita e desenha apenas
com a mão esquerda. O tempo e a memória fogem-lhe, mas voltam sempre nas ínfimas
minúcias, nas pequenas circunstâncias físicas que Gaëtan percepciona no(s)
rosto(s) e no(s) corpo(s): a apropriação e a possibilidade de projecção. A vida
é apenas isto; e é também a doença, a finitude.
Procuro o último rabisco mas não consigo
encontrá-lo. Olho-me ao espelho e lá está ele, mais um rosto, mais um “eu”,
riscos violentos ornamentados com traços leves: vejo ainda a cópia sublinhada
do que ainda sou, um homem vivo através da minha mão, e por fim, desistente nem
sei bem do quê. Onde está, afinal, o que tanto procurei dentro e fora de mim? O
que vos deixo é a minha busca incessante ao longo de muitos anos de trabalho
intenso, nada mais do que isso. Mas não lhes chamem auto-retratos, por favor!
Gaëtan Lampo Martins de Oliveira (Luanda, 1944 – Lisboa, 2019): em 1978 expôs individualmente pela primeira vez na Galeria Módulo, e a partir dessa data realizou inúmeras exposições individuais e colectivas. Destaca-se a grande antológica feita no antigo Centro de Arte Moderna da Gulbenkian (1996), intitulada Terra de Ninguém e uma outra no museu do Chiado (2004). Preparava uma segunda individual importante para a Fundação Carmona e Costa. Entre as exposições colectivas que realizou destacam-se: a XI Biennale de Paris (1980); a LIS’81 (exposição destruída no incêndio do pavilhão de Belém, no mesmo ano); a V Trienal da Índia (1982), Tríptico, durante a Europália, no Museum van het Hedendaagse de Gent (1991); e O Rosto da Máscara, no CCB (1994). Gaëtan está representado em todos os grandes museus nacionais. Usando o nome Gaëtan Martins de Oliveira, trabalhou na Editora Ulisseia e assinou traduções de autores como António Tabucchi, Marguerite Yourcenar, Italo Calvino, Bruno Zevi. Morreu a 10 de julho de 2019, com 75 anos, vítima de doença prolongada.
https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__210
Sem comentários:
Enviar um comentário