sábado, 13 de julho de 2019

O "EU" QUE LHE FUGIA SEMPRE


«O trabalho de Gaëtan é realizado contra qualquer ideia de tranquilidade, é feito Contra Mundum, não com uma vontade de ruptura, mas com o irresistível arrepio de quem passa sobre um gato, uma e outra vez, uma mão a contrapelo.»
João Pinharanda

Gaëtan Lampo Martins de Oliveira (1944 - 2019)

Ainda estou vivo. Vejo os meus inúmeros rostos, múltiplos da única pessoa que sou: Gaëtan.

O artista desenha representações do seu rosto e exibe uma actividade criadora peculiar, há um ensimesmamento que irradia continuamente de dentro para fora e de fora para dentro. O traço, os traços tão leves de todos os seus rostos, o risco, os riscos tão rápidos e violentos de todos os seus rostos. É uma obsessão descontinuada, uma procura da sua interioridade através do apelo à transgressão; mas não necessariamente, uma intenção de romper com o mundo que o rodeia. Antes, durante e depois da doença, o ensaio e o aperfeiçoamento desta arte da fuga: Gaëtan insiste na auto-representação do seu rosto e persiste sempre, numa espécie de encenação de si próprio, na procura das diferenças entre imagens sucessivas e na explicitação de matrizes literárias e cinematográficas, com vista à interpelação do espectador, que vê as máscaras que Gaëtan coloca não sobre o seu rosto mas em frente dele.

Procuro incessantemente as marcas do tempo no meu rosto quando eu era outro “eu” em comparação com o “eu” que sou agora. O meu gesto criador é o voo livre do pardal à solta, sem vontade de ir embora perante a janela aberta.

Todos os seus desenhos são o reflexo de uma observação demorada e detalhada, de uma interpretação da coisa vista – o “eu” daquele momento preciso – e inscrevem-se numa teoria da representação apropriada, totalmente isenta de quaisquer tiques de academismo ou vícios de um talento inato. Por isso, esquece a sua dominante mão direita e desenha apenas com a mão esquerda. O tempo e a memória fogem-lhe, mas voltam sempre nas ínfimas minúcias, nas pequenas circunstâncias físicas que Gaëtan percepciona no(s) rosto(s) e no(s) corpo(s): a apropriação e a possibilidade de projecção. A vida é apenas isto; e é também a doença, a finitude.

Procuro o último rabisco mas não consigo encontrá-lo. Olho-me ao espelho e lá está ele, mais um rosto, mais um “eu”, riscos violentos ornamentados com traços leves: vejo ainda a cópia sublinhada do que ainda sou, um homem vivo através da minha mão, e por fim, desistente nem sei bem do quê. Onde está, afinal, o que tanto procurei dentro e fora de mim? O que vos deixo é a minha busca incessante ao longo de muitos anos de trabalho intenso, nada mais do que isso. Mas não lhes chamem auto-retratos, por favor!


Gaëtan Lampo Martins de Oliveira (Luanda, 1944 – Lisboa, 2019): em 1978 expôs individualmente pela primeira vez na Galeria Módulo, e a partir dessa data realizou inúmeras exposições individuais e colectivas. Destaca-se a grande antológica feita no antigo Centro de Arte Moderna da Gulbenkian (1996), intitulada Terra de Ninguém e uma outra no museu do Chiado (2004). Preparava uma segunda individual importante para a Fundação Carmona e Costa. Entre as exposições colectivas que realizou destacam-se: a XI Biennale de Paris (1980); a LIS’81 (exposição destruída no incêndio do pavilhão de Belém, no mesmo ano); a V Trienal da Índia (1982), Tríptico, durante a Europália, no Museum van het Hedendaagse de Gent (1991); e O Rosto da Máscara, no CCB (1994). Gaëtan está representado em todos os grandes museus nacionais. Usando o nome Gaëtan Martins de Oliveira, trabalhou na Editora Ulisseia e assinou traduções de autores como António Tabucchi, Marguerite Yourcenar, Italo Calvino, Bruno Zevi. Morreu a 10 de julho de 2019, com 75 anos, vítima de doença prolongada.

Adília César
https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__210

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