Resta essa imobilidade, essa economia
de gestos,
essa inércia cada vez maior diante do
infinito.
Vinicius de Moraes
Não posso limitar a minha existência a
este pano de fundo do minimamente aceitável, dizias. Então, eu
deixava-te cair naquele estado negativo de lamento, apesar do amor que recebias
e que já não conseguias retribuir. Não havia qualquer dúvida sobre a tua
condição, foste vítima de uma qualquer circunstância do destino, completamente
alheia à tua vontade ou acção intencional, logo, não te podia ser atribuída. Há
uma relação de causa-efeito que não me pertence e que não mereço, dizias. Sim,
a paraplegia não é uma doença, mas é uma tortura.
Todos os dias nasce e morre alguém. Assim,
a finitude da vida está intimamente ligada à sua própria eternidade, ao longo
de uma espiral de acontecimentos em sequência, na linha do tempo. As relações
activas e passivas de causa e efeito são, muitas vezes, inexplicáveis,
intraduzíveis, inexprimíveis. Como explicar o teu acidente naquele dia? Como
traduzir em novos hábitos a vida que te era agora possível viver? Como exprimir
as emoções contraditórias em relação ao teu estado de paraplegia física a
propagar-se na tua mente?
Tinhas 55 anos num belo domingo de inverno
e não viste o muro a aproximar-se a uma velocidade vertiginosa. Era o infinito
a chamar por ti e as rodas da tua Honda Gold Wing obedeceram cegamente, decerto
contra a tua vontade. No momento do desastre, a tua linguagem transformou-se na
replicação de um discurso deprimente e cansativo: a queda, a sexta vértebra
seccionada, o corpo literalmente morto abaixo do ponto molestado. E os teus olhos
tristes, vazios, eram duas rodas em permanente estado de rodagem doentia sobre
os seus eixos.
Tantos amigos: vieram todos visitar-te. E
todos eles te provocavam a mesma sensação de fracasso, a condenação à inércia e
à economia de movimentos. Recordavam o tempo em que eras atleta de ciclismo de
alta competição – as rodas sempre a rodar – e tu baixavas a cabeça. Relembravam
o teu papel determinante na criação do Motoclube de Faro – as rodas sempre a
rodar – e tu sorrias melancolicamente. Insistiam no tempo em que
orgulhosamente conduzias a tua Honda Gold Wing, nada mais nada menos do que
asas douradas para cumprir o propósito da tua vida sobre rodas – as rodas
sempre a rodar – até que deixaram de aparecer.
O teu infortúnio foi o céu daquele belo
domingo de inverno a desabar sobre os bichos que ficaram a morar na tua cabeça,
a corroerem-te tudo por dentro, acima e abaixo do ponto da sexta vértebra
seccionada. Tudo o que tu eras antes. E depois, limitámos a nossa existência a
esse pano de fundo do minimamente aceitável: alimentar-te, lavar-te, vestir-te;
ainda sobre rodas, as rodas da cadeira onde te sentávamos. O amor não o
querias, já não o querias.
Desfile da 38ª Concentração Internacional de Motos (Faro) |
Noutro belo domingo tão longe do teu – 21
de julho de 2019, dia do Desfile da 38ª Concentração Internacional de Motos do
Motoclube de Faro – foi o tempo de ver, admirar e comover-me. Sei agora que
estás em paz, porque todos os que vi a desfilar continuam a cumprir o propósito
da tua vida e das suas próprias vidas sobre rodas, essas asas douradas do
orgulho de ser motard. Nada mais nada menos, meu querido Pai.
Adília César