«A melancolia é uma doença que
permite ver as coisas como elas são.»
Gérard de Nerval
Um corpo pendurado e estático exibe a
magnificência da estátua da morte. Não há equívocos. Escolher a morte é
comandar e vencer a vida que já não se quer como ela é. A melancolia permite
ver o que já não se pode olhar e são os fios dos seus perfumes secretos que
seguram o suicida; esses odores doentios tão invisíveis aos olhos dos outros.
Gérard de Nerval escolheu a morte por enforcamento na noite de 25 para 26 de
janeiro de 1855, numa rua escura e gelada de Paris, com os últimos capítulos da
novela “Aurélia” no bolso. Tinha 46 anos.
Gérard de Nerval |
O primeiro episódio psicótico acontece em
fevereiro de 1841. Até à data, o escritor compõe poesia, sátiras políticas,
traduz para o francês a obra “Fausto” de Goethe, escreve peças de teatro, cria
a revista “Le Monde Dramatique”; a sua forte ligação ao romantismo de Victor Hugo
leva-o a publicar uma antologia de poesia alemã e outra de poesia francesa. 1837
tinha sido um ano de viragem, ao colaborar com Alexandre Dumas no libreto da
ópera cómica “Piquillo”. A actriz Jenny Colon tem o papel principal na peça e
na vida de Nerval, quando este se apaixona e não é correspondido. O breve convívio
entre ambos tem o seu fim quando Jenny casa com um flaustista e Nerval viaja
com Dumas para a Alemanha. Mas ele continua a escrever e a publicar continuamente:
sempre a poesia, e ainda novelas, libretos, artigos – simbologias delirantes,
analogias arquetípicas, genealogias fantásticas. Alguns desses textos, escritos
entre as sucessivas crises psicóticas e as consequentes entradas e saídas de
clínicas, exibem contornos alucinantes que propõem, sem equívocos, a imagem de
um Nerval intensamente criativo sentado na cadeira negra da melancolia.
Jenny Colon |
Jenny Colon morre em 1842 e 13 anos depois
é publicada a primeira parte da novela “Aurélia” na revista “Revue de Paris”. No
excerto seguinte é bem visível a angústia amorosa, o desalento da perda do objecto
e da função do amor de Nerval: (…) «Uma senhora
que eu amava há muito tempo e a quem chamarei de Aurélia estava perdida para
mim. Não importa que as circunstâncias deste evento tenham uma influência
tão grande na minha vida. Todos podem olhar nas suas memórias a emoção
mais comovente, o mais terrível golpe na alma pelo destino; devemos então
decidir morrer ou viver: direi depois por que não escolhi a morte.» O narrador,
na sua demanda reflexiva, expressa nas palavras o desejo íntimo e paradoxal de
não cair no precipício, ensaia um equilíbrio impossível de alcançar, tal como o
escritor na vida. A corda com que Gérard de Nerval se enforcou era também uma
corda de metáforas esotéricas, de maldições reflectidas na face oculta do mundo.
A segunda parte da novela “Aurélia”, retirada do bolso do suicida, é publicada
um mês após a sua morte, em fevereiro de 1855, e constitui um testemunho vivo
de um amor maldito, uma homenagem eterna a quem não a merecia: não se escolhe
quem se ama, mas escolhe-se quem não se ama. O obscuro objecto do amor, do
desejo nunca satisfeito, as frustrações e os sonhos não cumpridos, podem ser
estranhos instrumentos que ditam a morte. Como poderá haver justiça neste
epitáfio? Que possibilidade existe de penetrar no mistério e desvendá-lo?
Queremos mesmo destruí-lo? Melhor seria guardar o grande significado do desconhecido
nessa pose soberana de iminência do seu desvendamento, aquele instante
imediatamente anterior à abertura da caixa de Pandora. E depois, a paz eterna.
Grande parte da obra de Nerval, de uma enorme
intensidade poética e de construção melancólica, indomável e intemporal, segue
por uma estrada difícil com inúmeros obstáculos e abismos: contrariedade,
obsessão, luto – Aurélia ou Jenny? Escreve
Gérard de Nerval que no amor não correspondido por Jenny Colon «há muito
passado para que não haja muito futuro», como se o seu caminho fosse percorrido
por passos à retaguarda. Assim é a ressonância deste poeta maldito e misterioso,
considerado um dos autores fundamentais da história da literatura e um
precursor da poesia e arte modernas, de Baudelaire, Mallarmé e do surrealismo (in
“Génio: Os 100 autores mais criativos da história da literatura”, Harold Bloom,
2014); veja-se, por exemplo, os impressionantes sonetos de “Chimères” incluídos
na colectânea “Les filles du feu” (1854), dos quais vos deixo o seguinte
excerto, com tradução de M. Kawano:
Je suis le ténébreux, – le veuf, –
l’inconsolé,
Eu sou o tenebroso, – o viúvo, – o inconsolado,
Eu sou o tenebroso, – o viúvo, – o inconsolado,
Le prince d’Aquitaine à la tour abolie:
O príncipe d’Aquitânia da torre abolida:
O príncipe d’Aquitânia da torre abolida:
Ma seule étoile est morte, – e mon luth
constellé
Minha única estrela é morta, – e meu alaúde constelado
Minha única estrela é morta, – e meu alaúde constelado
Porte le Soleil noir de la Mélancolie.
Traz o Sol negro da Melancolia.
Traz o Sol negro da Melancolia.
O direito à melancolia
perpetuada nas emoções guardadas no lugar mais recôndito do espírito, tem sido
amplamente tratado por inúmeros poetas e romancistas nos seus escritos. A
literatura melancólica que Gérard de Nerval nos legou é um projecto existencial
onde a obra e a vida se confundem: entre o génio e a loucura, as palavras
transcendem o real, mesmo quando esse real é uma corda literal a apertar o
pescoço.
Adília César
in https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__208
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