sábado, 29 de junho de 2019

AURÉLIA, A PSICOSE INACABADA


«A melancolia é uma doença que permite ver as coisas como elas são.»
Gérard de Nerval

Um corpo pendurado e estático exibe a magnificência da estátua da morte. Não há equívocos. Escolher a morte é comandar e vencer a vida que já não se quer como ela é. A melancolia permite ver o que já não se pode olhar e são os fios dos seus perfumes secretos que seguram o suicida; esses odores doentios tão invisíveis aos olhos dos outros. Gérard de Nerval escolheu a morte por enforcamento na noite de 25 para 26 de janeiro de 1855, numa rua escura e gelada de Paris, com os últimos capítulos da novela “Aurélia” no bolso. Tinha 46 anos.

Gérard de Nerval

O primeiro episódio psicótico acontece em fevereiro de 1841. Até à data, o escritor compõe poesia, sátiras políticas, traduz para o francês a obra “Fausto” de Goethe, escreve peças de teatro, cria a revista “Le Monde Dramatique”; a sua forte ligação ao romantismo de Victor Hugo leva-o a publicar uma antologia de poesia alemã e outra de poesia francesa. 1837 tinha sido um ano de viragem, ao colaborar com Alexandre Dumas no libreto da ópera cómica “Piquillo”. A actriz Jenny Colon tem o papel principal na peça e na vida de Nerval, quando este se apaixona e não é correspondido. O breve convívio entre ambos tem o seu fim quando Jenny casa com um flaustista e Nerval viaja com Dumas para a Alemanha. Mas ele continua a escrever e a publicar continuamente: sempre a poesia, e ainda novelas, libretos, artigos – simbologias delirantes, analogias arquetípicas, genealogias fantásticas. Alguns desses textos, escritos entre as sucessivas crises psicóticas e as consequentes entradas e saídas de clínicas, exibem contornos alucinantes que propõem, sem equívocos, a imagem de um Nerval intensamente criativo sentado na cadeira negra da melancolia.

Jenny Colon

Jenny Colon morre em 1842 e 13 anos depois é publicada a primeira parte da novela “Aurélia” na revista “Revue de Paris”. No excerto seguinte é bem visível a angústia amorosa, o desalento da perda do objecto e da função do amor de Nerval: (…) «Uma senhora que eu amava há muito tempo e a quem chamarei de Aurélia estava perdida para mim. Não importa que as circunstâncias deste evento tenham uma influência tão grande na minha vida. Todos podem olhar nas suas memórias a emoção mais comovente, o mais terrível golpe na alma pelo destino; devemos então decidir morrer ou viver: direi depois por que não escolhi a morte.» O narrador, na sua demanda reflexiva, expressa nas palavras o desejo íntimo e paradoxal de não cair no precipício, ensaia um equilíbrio impossível de alcançar, tal como o escritor na vida. A corda com que Gérard de Nerval se enforcou era também uma corda de metáforas esotéricas, de maldições reflectidas na face oculta do mundo. A segunda parte da novela “Aurélia”, retirada do bolso do suicida, é publicada um mês após a sua morte, em fevereiro de 1855, e constitui um testemunho vivo de um amor maldito, uma homenagem eterna a quem não a merecia: não se escolhe quem se ama, mas escolhe-se quem não se ama. O obscuro objecto do amor, do desejo nunca satisfeito, as frustrações e os sonhos não cumpridos, podem ser estranhos instrumentos que ditam a morte. Como poderá haver justiça neste epitáfio? Que possibilidade existe de penetrar no mistério e desvendá-lo? Queremos mesmo destruí-lo? Melhor seria guardar o grande significado do desconhecido nessa pose soberana de iminência do seu desvendamento, aquele instante imediatamente anterior à abertura da caixa de Pandora. E depois, a paz eterna.


Grande parte da obra de Nerval, de uma enorme intensidade poética e de construção melancólica, indomável e intemporal, segue por uma estrada difícil com inúmeros obstáculos e abismos: contrariedade, obsessão, luto – Aurélia ou Jenny? Escreve Gérard de Nerval que no amor não correspondido por Jenny Colon «há muito passado para que não haja muito futuro», como se o seu caminho fosse percorrido por passos à retaguarda. Assim é a ressonância deste poeta maldito e misterioso, considerado um dos autores fundamentais da história da literatura e um precursor da poesia e arte modernas, de Baudelaire, Mallarmé e do surrealismo (in “Génio: Os 100 autores mais criativos da história da literatura”, Harold Bloom, 2014); veja-se, por exemplo, os impressionantes sonetos de “Chimères” incluídos na colectânea “Les filles du feu” (1854), dos quais vos deixo o seguinte excerto, com tradução de M. Kawano:

Je suis le ténébreux, – le veuf, – l’inconsolé,                              
Eu sou o tenebroso, – o viúvo, – o inconsolado,

Le prince d’Aquitaine à la tour abolie:                                       
O príncipe d’Aquitânia da torre abolida:

Ma seule étoile est morte, – e mon luth constellé                        
Minha única estrela é morta, – e meu alaúde constelado

Porte le Soleil noir de la Mélancolie.                                          
Traz o Sol negro da Melancolia.

O direito à melancolia perpetuada nas emoções guardadas no lugar mais recôndito do espírito, tem sido amplamente tratado por inúmeros poetas e romancistas nos seus escritos. A literatura melancólica que Gérard de Nerval nos legou é um projecto existencial onde a obra e a vida se confundem: entre o génio e a loucura, as palavras transcendem o real, mesmo quando esse real é uma corda literal a apertar o pescoço.


Adília César
in https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__208

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