Toda a violência doméstica sobre as
mulheres se protagoniza numa questão de verbo: o verbo “não-ser”, o verbo “não-estar”,
o verbo “não-poder”. Mas o verbo “não-querer” é o único que pode mudar alguma
coisa.
Escultura de Willy Verginer |
8 de março de 1960
Madalena namorava desde os 16 anos e o pai
entendeu que ela devia casar-se o quanto antes, “para evitar desgraças e
más-línguas”. “Ano Novo Vida Nova”, disse ele. Maria nada respondeu e sentiu-se
agoniada, mas casou pouco tempo depois com um namorado que já se sabia
violento. Madalena foi assassinada pelo marido antes do 1º aniversário de
casamento.
8 de março de 1970
Diana tinha uma saúde frágil, padecendo de
maleitas que lhe causavam dores e transtornos, enquanto tentava organizar a
família e o lar antes do marido regressar do trabalho. Aquele tinha sido um dia
particularmente difícil e o jantar estava atrasado. E como de costume, a
contrariedade despoletou a agressão. Diana foi espancada pelo marido em frente
dos filhos de 4 e 6 anos, vindo a falecer poucas horas depois, após
traumatismos graves e hemorragias internas.
8 de março de 1980
Odete era casada e tinha três filhos.
Sustentava a casa com o salário de professora enquanto o marido ciumento mandriava
pelas tabernas. Frequentemente, ele aparecia à porta da escola para a insultar.
Num desses dias, Odete saiu da escola acompanhada por um colega e o marido
atacou-a, assassinando-a com uma única facada.
7 de março de 1990
Antónia lia romance atrás de romance. Não
queria ser “a mulher” de ninguém nem ter filhos, não lhe interessava ser a fada
do lar; queria estudar, ter uma carreira, dar um contributo relevante para a
sociedade. Era a melhor aluna da turma de Pós-Graduação em Biologia Molecular.
Do namoro com um colega resultou uma gravidez indesejada. Antónia queria abortar e seguir outro
caminho, mas ele não aceitou. No decurso de uma discussão acesa na clínica de
obstetrícia, o homem estrangulou Antónia sem ninguém impedir.
8 de março de 2000
Cristina estava preocupada com a sua irmã Vera
que casara havia apenas 6 meses. Da festa deslumbrante pouco tinha restado: a
jovem apresentava hematomas no rosto e no corpo que mal conseguia disfarçar,
chorava sem razão e recusava-se a sair de casa. Um dia, ela não atendeu o
telefone. Cristina bateu à porta até que o cunhado a abriu. “Fiz asneira”,
disse ele, visivelmente transtornado e com a roupa desalinhada. Junto ao último
degrau das escadas, Vera estava dobrada numa posição estranha. “A culpa foi
toda tua, andaste a meter-lhe coisas na cabeça”.
Eis 5 mulheres pousadas nos 5 dedos de uma
mão violenta. A outra mão tenta defendê-las, mas o verbo “não-querer” não foi
dito ou não foi ouvido e a mão defensora é, agora e ainda, uma mão apenas
apaziguadora, que engana tudo e todos; faz de conta que se importa convosco,
mas só vos lastima: “coitadinhas, que pouca sorte”… E passa à frente, desliga a
televisão, dobra o jornal, faz festinhas ao gato, rega as flores. Além disso,
“entre marido e mulher não se mete a colher”, não é, seus hipócritas? As
notícias nos jornais e nos noticiários televisivos sucederam-se, sucedem-se.
Hoje estamos mais informados, sabemos o que acontece em cima do acontecimento.
E habituamo-nos: “olha, mais uma”. Já são 16 as mulheres assassinadas em 2019
num quadro de violência doméstica. Como é possível este fenómeno? Somos tão cegos
de espírito que não sabemos ler com o pensamento do livre arbítrio focado na
igualdade de direitos, na educação dos mais jovens e na penalização imediata
dos indomáveis, antes que os crimes tenham lugar. A justiça contraria a própria
justiça desde o início dos processos das queixosas, ao “não-actuar” com a
devida eficácia, ao “não-ouvir” os gritos e os silêncios. O tempo traz o mesmo
tempo de indecisão. De que serve a denúncia?
8 de março de 2020
Olho o calendário do futuro. “Olha, mais
uma, que pouca sorte”. O luto continua. Até quando seremos capazes de
“não-dizer” – “eu não-quero”?
Nota: os crimes referidos foram descritos
tal como aconteceram, mas as datas e os nomes das vítimas foram alterados para proteger
as respectivas famílias.
Adília César
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