sábado, 22 de junho de 2019

16 - O LUTO CONTINUA


Toda a violência doméstica sobre as mulheres se protagoniza numa questão de verbo: o verbo “não-ser”, o verbo “não-estar”, o verbo “não-poder”. Mas o verbo “não-querer” é o único que pode mudar alguma coisa.

Escultura de Willy Verginer

8 de março de 1960
Madalena namorava desde os 16 anos e o pai entendeu que ela devia casar-se o quanto antes, “para evitar desgraças e más-línguas”. “Ano Novo Vida Nova”, disse ele. Maria nada respondeu e sentiu-se agoniada, mas casou pouco tempo depois com um namorado que já se sabia violento. Madalena foi assassinada pelo marido antes do 1º aniversário de casamento.

8 de março de 1970
Diana tinha uma saúde frágil, padecendo de maleitas que lhe causavam dores e transtornos, enquanto tentava organizar a família e o lar antes do marido regressar do trabalho. Aquele tinha sido um dia particularmente difícil e o jantar estava atrasado. E como de costume, a contrariedade despoletou a agressão. Diana foi espancada pelo marido em frente dos filhos de 4 e 6 anos, vindo a falecer poucas horas depois, após traumatismos graves e hemorragias internas.

8 de março de 1980
Odete era casada e tinha três filhos. Sustentava a casa com o salário de professora enquanto o marido ciumento mandriava pelas tabernas. Frequentemente, ele aparecia à porta da escola para a insultar. Num desses dias, Odete saiu da escola acompanhada por um colega e o marido atacou-a, assassinando-a com uma única facada.

7 de março de 1990
Antónia lia romance atrás de romance. Não queria ser “a mulher” de ninguém nem ter filhos, não lhe interessava ser a fada do lar; queria estudar, ter uma carreira, dar um contributo relevante para a sociedade. Era a melhor aluna da turma de Pós-Graduação em Biologia Molecular. Do namoro com um colega resultou uma gravidez indesejada.  Antónia queria abortar e seguir outro caminho, mas ele não aceitou. No decurso de uma discussão acesa na clínica de obstetrícia, o homem estrangulou Antónia sem ninguém impedir.

8 de março de 2000
Cristina estava preocupada com a sua irmã Vera que casara havia apenas 6 meses. Da festa deslumbrante pouco tinha restado: a jovem apresentava hematomas no rosto e no corpo que mal conseguia disfarçar, chorava sem razão e recusava-se a sair de casa. Um dia, ela não atendeu o telefone. Cristina bateu à porta até que o cunhado a abriu. “Fiz asneira”, disse ele, visivelmente transtornado e com a roupa desalinhada. Junto ao último degrau das escadas, Vera estava dobrada numa posição estranha. “A culpa foi toda tua, andaste a meter-lhe coisas na cabeça”.

Eis 5 mulheres pousadas nos 5 dedos de uma mão violenta. A outra mão tenta defendê-las, mas o verbo “não-querer” não foi dito ou não foi ouvido e a mão defensora é, agora e ainda, uma mão apenas apaziguadora, que engana tudo e todos; faz de conta que se importa convosco, mas só vos lastima: “coitadinhas, que pouca sorte”… E passa à frente, desliga a televisão, dobra o jornal, faz festinhas ao gato, rega as flores. Além disso, “entre marido e mulher não se mete a colher”, não é, seus hipócritas? As notícias nos jornais e nos noticiários televisivos sucederam-se, sucedem-se. Hoje estamos mais informados, sabemos o que acontece em cima do acontecimento. E habituamo-nos: “olha, mais uma”. Já são 16 as mulheres assassinadas em 2019 num quadro de violência doméstica. Como é possível este fenómeno? Somos tão cegos de espírito que não sabemos ler com o pensamento do livre arbítrio focado na igualdade de direitos, na educação dos mais jovens e na penalização imediata dos indomáveis, antes que os crimes tenham lugar. A justiça contraria a própria justiça desde o início dos processos das queixosas, ao “não-actuar” com a devida eficácia, ao “não-ouvir” os gritos e os silêncios. O tempo traz o mesmo tempo de indecisão. De que serve a denúncia?

8 de março de 2020
Olho o calendário do futuro. “Olha, mais uma, que pouca sorte”. O luto continua. Até quando seremos capazes de “não-dizer” – “eu não-quero”?

Nota: os crimes referidos foram descritos tal como aconteceram, mas as datas e os nomes das vítimas foram alterados para proteger as respectivas famílias.

Adília César

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