sábado, 15 de junho de 2019

A FLOR BELA


«alma sonhadora
Irmã gémea da minha!»

(Excerto de poema dactilografado e não datado
À memória de Florbela Espanca de Fernando Pessoa)

Estamos vivos há tanto tempo que caminhamos descalços sobre a lava acesa do vulcão e nem sentimos a dor. Somos reféns de um chão de dentro e é por dentro que existimos para lá do que somos capazes de existir. Viver é morrer. Não vivemos realmente, estamos apenas a morrer devagar. Mas a morte também se escreve com outras palavras: alma, amor, paixão, saudade, beijos, versos, poeta, temas recorrentes de todos os poetas. Serão os poetas mais altos, maiores do que os homens, almas gémeas uns dos outros?

Se o Universo e Deus eram uma e a mesma coisa, decifrar os mistérios da vida seria o resíduo imanente da poesia de Florbela Espanca – amar, ser amada, no corpo e no espírito concretos. O erotismo como louvor da vida. Possuir o objecto passional e ainda assim ser infeliz. Tentar a glorificação da vida e do amor, trocando olhares com a solidão, a tristeza, a saudade, a sedução, o desejo e a morte. Viver plenamente. Tentar a morte, tentar, tentar, e por fim, morrer.


Florbela Espanca nasce em 1894, numa época caracterizada por uma opressiva tradição patriarcal. A mulher portuguesa era a submissão abnegada em todos os aspectos da vida familiar, profissional e social. Mas o “eu” florbeliano ressurge continuamente, sedento de glória. É através da poesia que se glorifica, que enaltece a sua condição feminina, embora distanciada desse problema real, ou seja, ela aparece sempre desligada das preocupações de conteúdo humanista, social ou político. Mas é intensa, enfática, exacerbada, excessiva, recolhida no seu próprio “eu” emocional. Uma vida carregada de sofrimento, inquieta e tumultuosa. A sua poesia é o desabafo da exaltação sentimental, ambígua e predominantemente pecadora: o amor que canta imoderadamente pelo seu irmão Apele não será incomum?

O título do primeiro livro de Florbela, publicado há precisamente 100 anos, realça bem a sua condição e sentimento perante o mundo de infortúnio que a cerca Livro de Mágoas. Pois é de mágoas que tudo se expressa, a poesia, a necessidade constante de encontrar um lugar interior de voos quebrados. Diz-nos Florbela que a morte é doce e serena, diz Florbela que morreu tantas vezes desde que escreveu as suas primeiras composições poéticas, nomeadamente o poema “A vida e a morte”, um soneto dedicado ao seu irmão Apele.

Não tenhas medo, não! Tranquilamente,
Como adormece a noite pelo outono,
Fecha os olhos, simples, docemente,
Como à tarde uma pomba que tem sono…

Florbela e Apele

A pessoa confunde-se com a poetisa, a vida substancia a obra e a obra retrata a vida. Mas aos 36 anos, Florbela está perdida. A flor que nasce bela na Charneca em Flor adormece, perdidamente, sempre bela. E é amar-te, assim, perdidamente… que nos enche de esperança. Porque assim, é seres alma e sangue e vida em mim, e dizê-lo cantando a toda a gente! Na sede pelo infinito, a poetisa foi no seu tempo uma personalidade lírica isolada, mas ainda é uma voz poética universal. Ela sabia o que era ser poeta.

Florbela Espanca controlou o caos da sua vida nascendo em 1894 e morrendo em 1930 no mesmo dia – 8 de dezembro. Pois se a vida é um sonho, a morte é o outro lado do espelho sonhador: é a tua última mágoa, é a Flor mais Bela, és tu.

Adília César
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__206

1 comentário:

  1. Já há muito Tempo atrás, fui incondicional amante da poesia de Florbela, mais precisamente durante a adolescência, sabia todos os poemas de cor. À noite, eu e a minha irmã desfiávamos ao desafio o sonetos de "Sóror Saudade"...
    Depois nunca mais voltei aos seus versos, comecei a ler a conhecer e a amar a Luísa Neto Jorge, a Fiama, a Maria Velho da Costa...e a Florbela ficou na estante da memória!MJ

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