Os meus passeios musicais foram sempre
intensos, imersos em sons e tonalidades. A minha mãe cantava o fado. O meu pai
compunha melodias dançáveis e tocava-as com o seu grupo de música ligeira nos
bailes das sociedades recreativas, em Vila Real; era grande a sua cultura
musical, que já vinha do tempo da adolescência, em que ele fazia parte da Banda
Filarmónica de Silves. Eu absorvia tudo: fazia perguntas, cantava o fado com a minha
mãe, dançava o twist nos bailes abrilhantados pelo grupo do meu pai. Tive
acesso a uma educação expressiva valiosa, em lugares privados e públicos, e
sendo filha única no seio de uma família de origem humilde e harmoniosa, vivi
momentos preciosos. Recordar a infância realça os fios brilhantes que ainda me
seguram enquanto ser humano, os laços atados às coisas que ficaram para trás,
os sons e os movimentos do amor que nos envolviam.
Um dia, o meu pai falou-me do Michael.
“Litinha, tens que ouvir este miúdo, ver
como ele dança!” disse, entusiasmado. Confesso que fiquei um pouco ciumenta, ao
perceber a admiração que o meu pai sentia por aquele desconhecido, um rapazinho
da minha idade que actuava nos palcos do outro lado do mundo. Mas era
impossível ficar indiferente ao Michael de voz doce e firme, aos movimentos
coreográficos nunca antes vistos. Rapidamente, interessei-me pela sua vida e
carreira de uma forma quase obsessiva, colecionando tudo o que conseguia
encontrar sobre ele: recortes de jornais e revistas, fotografias, discos, e recordações
trazidas da América por um familiar, incluindo cassetes e filmes. A minha
cultura “jacksoniana” tornou-se considerável.
Michael Jackson |
1971. Começa a carreira a solo de Michael, aos 13 anos de idade, ainda na companhia dos seus irmãos., os Jackson Five. “Got To Be There”, sim, eu tinha que estar lá. E cantei e dancei com ele, no meu quarto, sem ninguém ver.
1972. A balada “Ben” dedicada a um ratinho
foi o primeiro single a solo de Michael. E o meu pai ofereceu-me um pequeno
hamster, ao qual dei o nome de Ben. Eu e o ratinho cantávamos a nossa canção a
toda a hora.
1973. Se não fosse o padrinho da América,
provavelmente nunca teria conhecido este álbum do Michael, pois foi talvez o
que menos sucesso teve. No entanto, o título era, indubitavelmente, a essência
dele: “Music and Me”. A música e ele, a música e eu.
1975. “Forever, Michael” marcou uma
viragem na sua vida artística, sendo este o seu último disco gravado na
discográfica Motown. Era notória a mudança da sua voz, cujo timbre se situava
entre a criança e o jovem adulto. Foi nessa altura que eu decidi: sim, Michael ainda
para sempre na minha vida.
1979. Nasceu a minha primeira filha, mas
tive sempre tempo para a mistura contagiante de pop e funk de “Off the Wall”.
Eu, encostada à parede, encostada à obsessão da música de Michael.
1982. “Thriller”. O suspense criado por
este teledisco correu mundo e parou junto ao espelho do meu guarda-fato
rústico. E transformei-me num dos figurantes mortos-vivos, pelo menos nesse
Carnaval…
1985. Nós dois – eu e Michael - éramos
agora um lugar guardado em segredo, embora solidários com o mundo inteiro. “We
Are The World”, a caridade entregue ao mundo inteiro por ele e outras estrelas
da música.
1987. Michael passou mais de um ano na
estrada em espectáculos ao vivo, a promover o álbum “Bad”, mas nunca chegou
perto de mim. Quase que cortei relações com ele… bad, bad Michael.
1991. O álbum “Dangerous” ficou na memória
através do hit “Black and White”. O vídeo desta música causou alguma
controvérsia, tendo em conta os gestos sexuais e as acções violentas do artista
consagrado, registadas publicamente para sempre. Fiquei decepcionada e
preocupada: até onde pode ir alguém para atingir um objectivo artístico? Seria
Michael um homem perigoso?
1995. A mesma voz. Mas é notória a
transformação física. É nítido o declínio. Uma fraca recepção do público a
novos trabalhos, apesar de ainda contemplar alguns sucessos mundiais. Surgem
fortes críticas ao artista por ele utilizar um termo antissemita numa das
faixas (“They Don’t Care About Us”) do álbum “HIStory:
Past, Present, e Future, Book I”. Parecia que o passado e o presente de Michael não
iriam salvar o seu futuro. Afinal, quem é que se importava connosco, contigo? Mas
eu continuava ali, disposta a perdoar.
2001. Michael regressa invencível e grava o seu
primeiro álbum completo de material novo. E eu sempre vigilante.
25 de junho de 2009. E tudo o que imaginaste, cantaste
e dançaste se desmoronou. Toda a tua filantropia deixou de ter importância.
Todo o bem que fizeste passou para segundo plano. A tua música e a paz que
almejaste para as crianças do mundo foram cobertas de sombras. Pecados e
difamações passaram a fazer parte da nossa memória colectiva. Mas eu ativo o
meu mecanismo de sobrevivência e vejo-te a sorrir para mim, ainda inocente.
Entre nós, essa tua música que a certa altura da minha vida me salvou. Descansa
em paz, Michael.
Smile, my dear Michael, because «(…) the two of us
need look no more, we both found what we were looking for, with a friend to cal
my own, i’ll never been alone. And you, my friend, will see, you’re got a
friend in me. You’re always running here and there, you feel you’re not wanted
anywhere. If you ever look behind and don’t like what you find, there’s
something you should know, you’ve got a place to go. I used to say I and me,
now it’s us, now it’s we. Most people would turn you away, I don’t listen to a
word they say, they don’t see you as I do, I wish they would try to, I’m sure
they’d think again if they had a friend like you (…)».*
*Excerto da letra da balada “Ben” (1972).
Michael Jackson (29 de agosto de 1958 – 25
de junho de 2009, EUA) foi cantor, compositor, dançarino, produtor, empresário,
filantropo, pacifista e activista. Segundo a revista Rolling Stone, facturou em
vida cerca de sete bilhões de dólares, tornando-se o artista mais rico da
história. A especulação sobre os excessos e as controvérsias da sua vida
pública e privada continua a povoar os meios de comunicação social e o nosso
imaginário, numa tentativa de apurar a verdade sobre este menino-homem que é
ainda considerado por muitos como o Rei da Música Pop, ao criar um estilo de
performance inimitável.
Adília César, in Algarve Informativo Nº 200
https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__200
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