segunda-feira, 6 de maio de 2019

MICHAEL

Os meus passeios musicais foram sempre intensos, imersos em sons e tonalidades. A minha mãe cantava o fado. O meu pai compunha melodias dançáveis e tocava-as com o seu grupo de música ligeira nos bailes das sociedades recreativas, em Vila Real; era grande a sua cultura musical, que já vinha do tempo da adolescência, em que ele fazia parte da Banda Filarmónica de Silves. Eu absorvia tudo: fazia perguntas, cantava o fado com a minha mãe, dançava o twist nos bailes abrilhantados pelo grupo do meu pai. Tive acesso a uma educação expressiva valiosa, em lugares privados e públicos, e sendo filha única no seio de uma família de origem humilde e harmoniosa, vivi momentos preciosos. Recordar a infância realça os fios brilhantes que ainda me seguram enquanto ser humano, os laços atados às coisas que ficaram para trás, os sons e os movimentos do amor que nos envolviam.

Um dia, o meu pai falou-me do Michael.
“Litinha, tens que ouvir este miúdo, ver como ele dança!” disse, entusiasmado. Confesso que fiquei um pouco ciumenta, ao perceber a admiração que o meu pai sentia por aquele desconhecido, um rapazinho da minha idade que actuava nos palcos do outro lado do mundo. Mas era impossível ficar indiferente ao Michael de voz doce e firme, aos movimentos coreográficos nunca antes vistos. Rapidamente, interessei-me pela sua vida e carreira de uma forma quase obsessiva, colecionando tudo o que conseguia encontrar sobre ele: recortes de jornais e revistas, fotografias, discos, e recordações trazidas da América por um familiar, incluindo cassetes e filmes. A minha cultura “jacksoniana” tornou-se considerável.

Michael Jackson

1971. Começa a carreira a solo de Michael, aos 13 anos de idade, ainda na companhia dos seus irmãos., os Jackson Five. “Got To Be There”, sim, eu tinha que estar lá. E cantei e dancei com ele, no meu quarto, sem ninguém ver.

1972. A balada “Ben” dedicada a um ratinho foi o primeiro single a solo de Michael. E o meu pai ofereceu-me um pequeno hamster, ao qual dei o nome de Ben. Eu e o ratinho cantávamos a nossa canção a toda a hora.

1973. Se não fosse o padrinho da América, provavelmente nunca teria conhecido este álbum do Michael, pois foi talvez o que menos sucesso teve. No entanto, o título era, indubitavelmente, a essência dele: “Music and Me”. A música e ele, a música e eu.

1975. “Forever, Michael” marcou uma viragem na sua vida artística, sendo este o seu último disco gravado na discográfica Motown. Era notória a mudança da sua voz, cujo timbre se situava entre a criança e o jovem adulto. Foi nessa altura que eu decidi: sim, Michael ainda para sempre na minha vida.

1979. Nasceu a minha primeira filha, mas tive sempre tempo para a mistura contagiante de pop e funk de “Off the Wall”. Eu, encostada à parede, encostada à obsessão da música de Michael.
1982. “Thriller”. O suspense criado por este teledisco correu mundo e parou junto ao espelho do meu guarda-fato rústico. E transformei-me num dos figurantes mortos-vivos, pelo menos nesse Carnaval…

1985. Nós dois – eu e Michael - éramos agora um lugar guardado em segredo, embora solidários com o mundo inteiro. “We Are The World”, a caridade entregue ao mundo inteiro por ele e outras estrelas da música.

1987. Michael passou mais de um ano na estrada em espectáculos ao vivo, a promover o álbum “Bad”, mas nunca chegou perto de mim. Quase que cortei relações com ele… bad, bad Michael.

1991. O álbum “Dangerous” ficou na memória através do hit “Black and White”. O vídeo desta música causou alguma controvérsia, tendo em conta os gestos sexuais e as acções violentas do artista consagrado, registadas publicamente para sempre. Fiquei decepcionada e preocupada: até onde pode ir alguém para atingir um objectivo artístico? Seria Michael um homem perigoso?

1995. A mesma voz. Mas é notória a transformação física. É nítido o declínio. Uma fraca recepção do público a novos trabalhos, apesar de ainda contemplar alguns sucessos mundiais. Surgem fortes críticas ao artista por ele utilizar um termo antissemita numa das faixas (“They Don’t Care About Us”) do álbum “HIStory: Past, Present, e Future, Book I”. Parecia que o passado e o presente de Michael não iriam salvar o seu futuro. Afinal, quem é que se importava connosco, contigo? Mas eu continuava ali, disposta a perdoar.

2001. Michael regressa invencível e grava o seu primeiro álbum completo de material novo. E eu sempre vigilante.

25 de junho de 2009. E tudo o que imaginaste, cantaste e dançaste se desmoronou. Toda a tua filantropia deixou de ter importância. Todo o bem que fizeste passou para segundo plano. A tua música e a paz que almejaste para as crianças do mundo foram cobertas de sombras. Pecados e difamações passaram a fazer parte da nossa memória colectiva. Mas eu ativo o meu mecanismo de sobrevivência e vejo-te a sorrir para mim, ainda inocente. Entre nós, essa tua música que a certa altura da minha vida me salvou. Descansa em paz, Michael.

Smile, my dear Michael, because «(…) the two of us need look no more, we both found what we were looking for, with a friend to cal my own, i’ll never been alone. And you, my friend, will see, you’re got a friend in me. You’re always running here and there, you feel you’re not wanted anywhere. If you ever look behind and don’t like what you find, there’s something you should know, you’ve got a place to go. I used to say I and me, now it’s us, now it’s we. Most people would turn you away, I don’t listen to a word they say, they don’t see you as I do, I wish they would try to, I’m sure they’d think again if they had a friend like you (…)».*

*Excerto da letra da balada “Ben” (1972).
Michael Jackson (29 de agosto de 1958 – 25 de junho de 2009, EUA) foi cantor, compositor, dançarino, produtor, empresário, filantropo, pacifista e activista. Segundo a revista Rolling Stone, facturou em vida cerca de sete bilhões de dólares, tornando-se o artista mais rico da história. A especulação sobre os excessos e as controvérsias da sua vida pública e privada continua a povoar os meios de comunicação social e o nosso imaginário, numa tentativa de apurar a verdade sobre este menino-homem que é ainda considerado por muitos como o Rei da Música Pop, ao criar um estilo de performance inimitável.

Adília César, in Algarve Informativo Nº 200

https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__200

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