sábado, 18 de maio de 2019

ARQUITECTURA DA EMOÇÃO


«A arquitectura é música petrificada.»
Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)

Marion Mahoney Griffin (1871-1961)

Caminham devagar, em silêncio, ainda hesitantes. De repente, caem pingos de aguarelas. Ambos correm na direcção que Marion indica, até à parede mais próxima. Frank encosta as palmas das mãos à superfície vertical e quente do edifício antigo, onde ela pernoita. É o crepúsculo de todos os dias, repetitivo e mágico: a hora sublime em que a matéria guarda o desejo do sol de aquecer o mundo inteiro. Ela, de olhos fechados, os braços caídos ao longo do corpo, de costas coladas à barriga morna da estrutura. A imobilidade é total enquanto o plano tridimensional da substância da emoção começa a ganhar forma. Marion percepciona o corpo alto e rectilíneo, aquela espécie de parede interior que a segura, mas não sabe o que fazer em relação a isso. Adivinhou a sua força descomunal nos movimentos arquitectónicos junto à imensa parede acinzentada e rugosa, como uma pele velha que teima em sobreviver às intempéries.  É o corpo mais rectilíneo que ela já sentiu, ao mesmo tempo frágil como um vitral: imaginou os ossos brancos e a carne vermelha coberta por outra pele, um fato feito por medida que ela habitaria por dentro, servindo-lhe na perfeição. A porta logo ali, a chave imaginária cravada na mão direita: um prumo para a situação peculiar em que ambos se encontravam. Marion queria que ele entrasse, mas Frank não sabia que ela queria que ele entrasse.

- Vê, não olhes apenas: a tua mente é como um imenso guarda-chuva, será muito mais útil se a abrires.

Conheceram-se há duas horas, no mercado. Tocar a mesma laranja, olhar a superfície dos olhos. Nada foi dito, apenas adivinhado nos pequenos gestos: cortar a laranja ao meio, morder os gomos, deixar escorrer o sumo até aos cotovelos. Havia uma sintonia surreal nos gestos brandos e lentos, dir-se-ia uma coreografia de duas personagens num espectáculo que ninguém está a ver, actores a representar a vida. Uma quase perfeição estética, quase a decidir-se de uma vez por todas.

Marion tinha uma convicção que moldava todos os seus caminhos percorridos: não se conhece uma pessoa enquanto não a observarmos no interior do seu próprio lar. A casa, essa habitação completa que organiza as veias e o pensamento do ser humano através de uma melodia petrificada nas paredes, no chão, no tecto, no tempo. Uma bela canção feita de pedras, ferro, cimento, vidro, cal. Por vezes, pintada com sangue e outros martírios a pingar sobre desperdícios partidos. Ela queria que ele entrasse, queria dar-se a conhecer àquele homem denso e profundo. O clique da chave a abrir a fechadura é o bilhete de entrada. Frank agora também sabia que ela queria que ele entrasse. Dentro da casa a mão toca o desejo, o tempo pára na escuta dos corações. Fecha-se a janela para não sair a solidão, é imperioso que Frank perceba a solidão de Marion.

- Podes ler-me, tacteando tacteando, conhecer-me. Planeando mapas sentimentais, cravando alicerces na linguagem do espírito, preenchendo espaços vazios entre os gestos expressivos dos corpos. Pintar a urgente aguarela do amor, queres? Se no interior do corpo houver um lugar, uma opacidade que eu queira que transpareça, este véu sobre o soalho, este painel a revelar a nossa imaginação, os alicerces da vida. Tudo seria uma forma de ser tua, tudo seria um modo de te comoveres. Esta é a nossa casa, a nossa arquitectura emocional. O amor e o seu contrário, a casa verdadeira e a sua ruína tombada. Fica, na luz ou na sombra, tanto faz.

Olham-se agora como se olhassem um espelho, porque no discurso dos espelhos é permitido olhar para dentro. A pele abstracta, singular nos pigmentos escolhidos, quando os corpos se juntam e se misturam na primeira ornamentação. O coração dele estava cansado, tinha viajado de estátua em estátua, não se sabia porque ainda não tinha escolhido a sua deusa. A melodia era tão inaudível como o sussurro de lascas a cair sobre palavras não ditas, sobre aguarelas inacabadas.

Agurela de Marion Mahoney Griffin

(Marion Mahoney Griffin (1871-1961) é considerada a primeira mulher do mundo a ser oficialmente licenciada como arquitecta, em 1894. No ano seguinte começou a trabalhar no escritório do fulgurante Frank Lloyd Wright (1867-1959), desenhando prédios, móveis, vitrais e painéis decorativos. Foram as suas aguarelas que imprimiram a marca do estilo de Wright. Esta parceria profissional durou cerca de 15 anos. Em 1909 casa com Walter Burley Griffin e juntos desenvolveram projectos arquitectónicos de longo alcance, nos Estados Unidos, Austrália e Índia. Em 2005, o Block Art Museum da Universidade de Northwestern, Illinois, USA, apresentou uma extensa exposição com os trabalhos desta arquitecta e artista gráfica, uma das primeiras arquitectas invisíveis).

Adília César, in Algarve Informativo Nº 202 
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__202

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