25 de Abril de 1974. Um dia ameno que parecia não mais
acabar, infinito como o céu que transbordava esperança. A abóbada azul clara,
cor da narrativa da liberdade. O ar livre e libertador, sobre as cabeças de
todos nós, os que vivenciámos esse dia. Eu tinha apenas 15 anos e não percebi
muito bem o alcance da Revolução dos Cravos, mas andei com os outros que
andavam na rua, empunhando cartazes e gritando palavras de ordem. Guardei um
desses cartazes, o meu preferido, na parede do meu quarto, durante muito tempo.
Sabia-o de cor, era a minha bandeira de Abril: de olhos fechados, recordo um
fundo azul onde se inscrevia a vermelho o nome do meu país e o dia que o
definiu: Portugal – 25 abril 1974. Vejo
a imagem de um menino belo como um pequeno anjo, de pé, descalço, a pele clara
e os cabelos louros encaracolados, vestido com roupas sujas e esfarrapadas: é o
protagonista daquela cena; três mãos (onde se percebe a indumentária dos três
ramos das Forças Armadas) seguram firmemente uma arma apoiada na vertical e o menino
pequenino esforça-se para colocar um cravo vermelho no cano da arma, tal como
lhe pediram para fazer. Sinto que ele quer obedecer, e obedece porque todos
queremos obedecer àquela nova ordem das
coisas, como se fossemos crianças crédulas e inocentes: caía a Ditadura e renascíamos
livres, os novos e os velhos, os militares, os trabalhadores, os estudantes, os
homens e as mulheres de todas as condições sociais. Não sabíamos naquele dia
que afinal iriamos continuar a obedecer. No entanto, a fotografia apresenta uma
rara e criativa mudança de paradigma: o instrumento bélico é agora uma jarra de
flores. E isso é possível?
Bilioteca Nacional, acervo de cartazes: Portugal 25 Abril 1974/Sérgio Guimarães/Lisboa |
Onde andará o Diogo, a nossa "bandeira" de Abril? Há uns anos, foi tornado público que ele estaria a viver numa casa de tijolos vermelhos e jardim, no sul do Tamisa, em Londres, sendo um homem de família e director financeiro de uma empresa de distribuição... Um homem de "sucesso"?...
Façamos então uma viagem ao passado e entremos dentro da
fotografia que se tornou o símbolo da Revolução dos Cravos de 25 de Abril de
1974. A criança pequena chega ao estúdio fotográfico acompanhada pela mãe e
pelo pai, ambos visivelmente orgulhosos, pela expectativa do acontecimento que
se seguirá. O menino está entusiasmado. Disseram-lhe que vai tirar uma
fotografia muito importante, mas que tem de fazer exactamente o que lhe pedirem,
tem que obedecer. Num espaço mais reservado, despem-lhe as suas roupas janotas
de menino rico, as quais são substituídas por outras, sujas e esfarrapadas.
Descalçam-lhe os sapatos e as peúgas. Ajeitam-lhe os lindos caracóis louros.
Está finalmente pronto. O menino rico está agora disfarçado de menino pobre. O menino de caracóis louros e roupa
esfarrapada, descalço (é importante que se repitam estes pormenores), chama-se
Diogo Bandeira Freire e tem 3 anos. Foi fotografado por Sérgio Guimarães, a enfeitar
o cano de uma G3 com um cravo vermelho. O simbolismo da imagem resultou em
pleno e perdurou no tempo: um golpe publicitário de uma Democracia encenada que
para sempre fará parte da nossa memória particular e colectiva. Mas fomos todos
enganados. Na verdade, Diogo não era o menino de
classe humilde que o cenário da fotografia sugeria. Como o seu nome indica, é
filho de Pedro Bandeira Freire que, naquela altura, era o proprietário dos
cinemas Quarteto e a sua família vivia de acordo com um estilo de vida burguês.
Em 2006, aquando das comemorações do dia 10 de Junho, o Presidente da República Aníbal Cavaco e Silva, encontrou-se com Diogo Bandeira Freire, na época com 35 anos, em Serralves, no Porto, para o homenagear. Ficámos então a saber que até àquela data Diogo nunca tinha votado, nem em Portugal nem em Inglaterra, mas afirmava envergonhar-se desse facto.
Numa entrevista concedida ao Correio
da Manhã, em 2010, surgiram as seguintes questões, onde Diogo admite a sua
falta de interesse pelo tema:
«CM – “25
de Abril, sempre.” O que significa para si?
DBF – Nunca
pensei nisso, mas se o 25 de Abril representa democracia, liberdade e a
consciencialização das pessoas sobre deveres, como o de votarem, a frase é
válida.
CM – Mas
já a tinha ouvido?
DBF – Já,
mas nunca tinha pensado sobre ela. Há milhentas maneiras de interpretá-la: se
significa nacionalizar todas as indústrias, tirar os bens às pessoas, não muito
obrigado. O 25 de Abril, de certa forma, também tem duas faces.»
Das
muitas faces que o 25 de Abril de 1974 desde logo exibiu, realço a da própria
fotografia simbólica de Diogo Bandeira Freire, uma das primeiras ficções
históricas do Dia da Liberdade, da qual resultou de uma encenação irónica da
Democracia: um menino rico a fazer de conta que era pobre. Apesar de todo o
Povo estar na rua – os pais, as mães e os seus filhos – ninguém se lembrou de
dar protagonismo a uma criança de origem humilde, ou seja, ao Povo. E assim, dificilmente
posso admitir que num dos primeiros actos dessa peça monumental que foi a
Revolução, tenha existido um 25 de Abril destinado às classes desfavorecidas – “O
Povo é quem mais ordena”, mas só às vezes, como se foi verificando ao longo dos
anos. Em palco, ainda é possível assistirmos hoje ao grande evento que é esse “Teatro”
das Comemorações do Dia da Liberdade. Mas o rescaldo da festa é o que já
existia antes: “eles” – o Governo – é que
têm o poder e não sabem governar, diz o Povo (ainda) sofredor. Daí o estado
actual deste massacrado Portugal.
Mas ainda
bem que os Capitães de Abril nos ofereceram a Revolução dos Cravos. Encheram-nos
de esperança pela constituição efectiva de uma Democracia onde todos podemos
exercer plenos direitos de cidadania. Esta foi e é a ideia fundamental que
poderá condicionar as nossas vidas, num sentido de intervenção positiva. No
entanto, depois de tantos anos, causam mau estar e até alguma perplexidade
inúmeros “cenários” e “figurantes” da sociedade portuguesa onde impera a
corrupção e a pobreza, onde muitos políticos fazem de conta e nós fechamos os
olhos porque estamos fartos de esperar uma Democracia mais democrática que
tarda em chegar, estamos cansados de obedecer. Mas este é um outro 25 de Abril.
Afinal de contas, é ainda necessário escrever outra narrativa da liberdade,
mais justa e verdadeira., sem armas, sem cravos e sem bandeiras fictícias.
Adília César, in Algarve Informativo Nº 198
Em Abril de 1974, andava eu com catorze anos, no Liceu de São João do Estoril.Fiz parte da primeira turma mista, de meninos e meninas, pois anteriormente os rapazes tinham turmas separadas das raparigas. No dia 25 de Abril não houve aulas pois as rádios anunciavam uma revolução. Ficámos em casa assustados pois começou-se a espalhar pela vizinhança que o então quartel da Parede, poderia estar ameaçado, pois estaria repleto de munições. Foi um dia agitado e preocupante. Nos tempos que se seguiram, foi o sonho de confiar na Democracia e na liberdade de expressão. Foi um alívio pois a família tinha consciência dos avanços da censura e havia algum receio. Lembro que quando em casa começávamos a falar da miséria de vida que muitos levavam, meu pai fazia um gesto em sinal de silêncio. Receava que agentes da PIDE estivessem à escuta. Por isso no 1º de Maio acompanhava-o nas manifestações do trabalhador em Lisboa. Delegou-me essa responsabilidade. A de nunca me vergar perante as injustiças!
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