«A vida tornou-se-me leve, a mais
leve, quando exigiu de mim o mais pesado.»
Nietzsche, Ecce homo
1844 e a criança é o filho primogénito no
pequeno colo, na pequena casa, na pequena aldeia. A janela aberta de par a par
recebe a brisa do outono e convida o menino a fazer voar as suas ideias pelo
mundo inteiro. Friedrich.
1855 e o menino lia e escrevia
compulsivamente. Saber mais, fazer melhor, ser o seu próprio pai severo e
exigente. Anos e mais anos. Depois, a música poderosa de Wagner e a filosofia
pessimista de Schopenhauer indicam o foco de luz, a matéria pensante contida na
sua primeira obra: O Nascimento da
Tragédia, o prenúncio de tudo.
1879 e Friedrich já não era Friedrich. Ele
conhecera o olho do abismo e transformara-se no próprio abismo, caindo naquela
monstruosidade muito devagar. «Aquele que luta
com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro. Quando se
olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para ti». E ele ouvia este
chamamento abismal e profundo; caía numa realidade supra-sensível imaginada
pelos idealistas, um mundo racional e moral. Mas não, afinal não existia sequer
o mundo das aparências. Definitivamente, já nada existia. Apenas ir e vir de
nenhum sítio e para nenhuma parte, o Eterno
Retorno: oh eternidade… O inverno ao sul e o verão ao norte, assim, em
círculos concêntricos e eternos feitos de deterioração. Uma combinação
hipnótica para a sua a-realidade, a sua não-vida.
Mas eu sou ainda eu a viver a minha vida assim uma e outra
vez, eternamente?
Nietzsche_Nietzsche fotografado por Hans Olde no verão de 1899 |
1885 e Also spratch Zarathustra: Ein Buch für Alle und Keinen. Quem és tu, Zaratustra? Porque falas assim, para todos e para ninguém? E se o além-do-homem é uma transição entre as linhas da morte de deus? És um preguiçoso, falas, falas, mas não dizes nada. Olhas o sol ao amanhecer vindo do fundo do horizonte como se fosse uma poderosa entoação da melodia wagneriana da vitória. Mas é apenas a simplicidade do dia não eterno.
1889 e Friedrich habita o
quarto do delírio. Massacra as teclas do piano rangendo melodias macabras.
Subitamente, levanta-se e escreve palavras perturbadas em papéis espalhados por
todo o quarto: cartas, prefácios, notas, panfletos, irracionalidades, poemas, epílogos,
pensamentos filosóficos, heresias. Ele é o crucificado,
o assassino e grita Arianna ich liebe dich. O amor soa bem
melhor noutras línguas, noutras salivas pérfidas. A canção que trauteia
continuamente é um afecto que se envolve no lençol dos mortos. Percorre sem
destino as ruas de Turim e abraça cavalos açoitados por cocheiros. Não há
regresso desse lugar, dessa língua demente, dessa escrita desfigurada. Ainda
hoje o cavalo de Turim vagueia repetidamente os dezoito minutos de cena no
filme do genial Béla Tarr.
1897 e o colo da mãe é ainda
o néctar que lhe corre nas veias, mas os seus pensamentos são como uma lucidez
encarnada na demência pensada, falada e escrita. Friedrich é uma sombra no
corpo da humanidade, um olho branco que se perdeu no abismo a apontar para o
vazio da alma. Ele pensa a poesia de outrora. Queria não ter medo. Porque um poema é sempre demente ainda que calado
em murmúrio traiçoeiro. Suster a respiração do poema e ele a cair em câmara
muito lenta. Não há forças de gravidade no plano irracional, mas quando cai o
poema parte-se devagar e eu parto-me com ele. Às vezes conserto o poema com a
baba da minha demência e ele aceita o curativo, entende a sua própria
resignação como vitória das palavras humedecidas. Mas não. É apenas um episódio
surreal: um triste e anónimo poema colado com cuspo. Eu, cada vez mais partido.
E não consigo consertar-me https://www.facebook.com/TheQuintessence1/videos/2122410314717034.
1890 e o homem já não é o
homem: o corpo de Friedrich era, agora e definitivamente, o seu post-scriptum; o espírito retorna à
origem, pastoreia gestos de aprendiz na toca da loba. E pergunta:
Quem fez o sol e as estrelas do céu?
Quem implantou nas pessoas a sua natural bondade e justiça?
É o silêncio e a leveza
de deus que respondem. Oh meu deus tão calado e ausente.
Adília César in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__196.
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